Como são, tantas vezes, as tragédias e as desgraças do mundo o alento para a proliferação de textos, ensaios, panfletos e manifestos, também a actual e antiga tragédia não podia deixar de voltar a ser abordada no Pensatório. Logo nesse fatídico dia em que o Hamas iniciou a sua ofensiva, pensei em começar logo a escrever, o mais rápido que pudesse, e depois publicar no tempo mais célere possível, um texto sobre o conflito entre Israel e Palestina. Mas elegi não o fazer porque os corpos de tantos jovens, que apenas queriam estar num festival de música, ainda não tinham arrefecido, e também porque decidi esperar para ver como se desenrolaria a situação em vez de mergulhar em suposições e vaticínios. E não se desenrola, claro está, a favor da Humanidade. Para quem estiver a ler este texto e ainda não tiver lido aquele que eu escrevi há dois anos, e porventura queira ler a minha sintética interpretação histórica deste conflito e a ligação com a milenar centralidade cultural de Jerusalém naquela região do mundo, pode consultar no Pensatório da Divisão o texto de Maio de 2021 intitulado Israel & Palestina e além: Conflito dos séculos. Para este texto ofereço uma abordagem mais directa e, provavelmente, mais emocional.
Desde o início que esta nova etapa da guerra entre o Estado de Israel e as forças fundamentalistas da Palestina se tem pautado pela coerência em cometer crimes de guerra. Antes que se façam quaisquer balanços de culpa, sejam históricos ou presentes, há que reconhecer que esses crimes de guerra são praticados tanto pelo Hamas como pelo Governo e lideranças das Forças Armadas do Estado de Israel. São estas duas facções que estão em guerra e são ambas as facções prevaricadoras exímias de crimes de guerra: da pior criminalidade que pode existir que torna malévolo algo que já per se - a guerra - é horrível.
Faz hoje um mês que o Festival Supernova - um evento musical de género transe de espírito liberal - foi atacado por uma horda de bárbaros do Hamas, que tinham invadido território na jurisdição de Israel a partir da Faixa de Gaza. 260 corpos foram encontrados no recinto, jovens muitos deles, da minha geração, massacrados à lei da bala e da lâmina. Outros tantos, de tantas origens e nacionalidades, foram raptados e feitos reféns por aqueles bárbaros. Reféns permanecem em parte incerta. O Hamas tinha feito uma manobra para reacender a guerra. Alguém que não me conheça minimamente e que leia isto, e que seja solidário com a causa palestiniana (que não tem de ser a causa do Hamas), poderá pensar que eu sou ligeiramente parcial perante o conflito a favor do Estado de Israel. Pois bem, não sou, e também não temos de ir à pressa escolher lados e levantar bandeiras, como foi feito com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. O conflito é tão antigo e tão complexo que nos perdemos no número de lados que há, porque não são apenas dois lados. Há mais lados para além das vontades do sistema sionista de Israel (a ironia de hoje haver judeus que se comportam como fascistas) e das ambições de destruição total dos bárbaros do Hamas. Há israelitas e palestinianos, dentro e fora da política, velhos e jovens, religiosos ou agnósticos, que querem a paz e querem coexistir em harmonia. Há organizações políticas israelitas e palestinianas que querem soluções e querem o fim da guerra. Temos a Fatah na Palestina (partido no governo da Autoridade Palestiniana), que infelizmente não consegue exercer controlo sobre a Faixa de Gaza, e temos no Knesset de Israel deputados eleitos pelo Partido Trabalhista e pelo partido marxista Hadash-Ta'al. Todavia, os focos mediáticos não incidem sobre os grupos nas sociedades israelita e palestiniana que defendem o fim da guerra e a secularização dos respectivos países mas incidem antes sobre o Hamas e sobre Netanyahu e o complexo militar-industrial que ele lidera.
Algumas pessoas poderão relativizar o facto de acontecerem crimes de guerra - porque a guerra em si já é violenta e assassina - mas a verdade é que, perante o Direito Internacional e a ONU (Organização das Nações Unidas), até a guerra tem regras. Algumas dessas regras são: não usar como alvo civis indefesos; não atacar escolas e hospitais; não violar sexualmente; não fazer reféns civis; não torturar. Israel já atacou campos de refugiados, escolas e hospitais, os seus soldados já violaram e torturaram, e Israel já bombardeou civis indefesos. O Hamas, por seu turno, já fez reféns civis, já torturou e violou e já tentou bombardear civis, sem dó nem piedade, não fosse o sistema de defesa anti-aérea de Israel denominado Iron Dome. Ambas as partes fazem dos crimes de guerra procedimento casual nas suas operações militares, tendo o Hamas, na minha estimativa, ainda menos escrúpulos que as lideranças do Estado de Israel. O ataque ao Festival Supernova - escolha deste evento feita devido ao ódio que o fundamentalismo islâmico tem à música e à liberdade - e as matanças e atrocidades bestiais, que o Hamas tem levado a cabo, em várias localidades vulneráveis, por onde os bárbaros passaram para derradeira desgraça dessas comunidades, quase que fazem da guerra entre a Rússia e a Ucrânia um duelo de cavalheiros.
Há décadas que a Assembleia-Geral das Nações Unidas aprova resoluções no sentido de encontrar o caminho para a paz nesta guerra interminável, quer seja no sentido de tornar possível a construção de dois estados soberanos, quer seja no sentido de neutralizar o extremismo religioso, quer seja no sentido de encontrar uma solução duradoura para Jerusalém. Os comunicados e pareceres que nos chegam da ONU, da Amnistia Internacional, e de tantas outras organizações, governamentais ou não, que têm observado o último mês de mortes e chacinas, que têm prestado auxílio humanitário, e que têm socorrido o melhor possível, relatam-nos cenários de atrocidades e manobras militares torpes, cobardes e infanticidas completamente vazias de ética e ignorantes perante as leis da guerra. A Amnistia Internacional dá-nos notícia, numa nota publicada no site oficial da organização, datada de 15 de Outubro, que a rapidez da escalada do conflito entre israelitas e palestinianos não tem precedentes e que milhares de pessoas, de ambas nacionalidades, já perderam a vida devido à guerra. A Amnistia Internacional tem insistido, com propriedade, no facto de que o sofrimento de civis em contexto de guerra é chocante, e aqui sublinhando sobretudo os civis que residem na Faixa de Gaza - o território palestiniano controlado pelo Hamas e onde Israel iniciou musculosas operações militares. Do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, chegaram apelos de cessar-fogo imediato, salvaguarda de vidas inocentes e apelos desesperados ao fim do infanticídio que está acontecendo na Faixa de Gaza. Perante os apelos e exigências do Secretário-Geral da ONU, o embaixador de Israel na Assembleia-Geral da Nações Unidas proclamou que este devia de ter vergonha e que já não reunia condições para ocupar o dito cargo. Diz Eli Cohen, o referido diplomata, que o problema não é o exército de Israel mas sim o Hamas que detém refém a população de Gaza e a impede de se refugiar em território mais seguro. Ainda que seja verdade o facto de o Hamas usar populações inteiras como escudo humano - a táctica mais cobarde e repugnante que pode haver em cenário de guerra -, Eli Cohen quer omitir-nos de que tal não justifica o bombardeamento de hospitais e bairros inteiros onde vivem pessoas indefesas e onde certamente crianças serão um alvo condenado à morte.
Enquanto for o Hamas a mais poderosa facção política que se apresenta como a força pela libertação da Palestina - ainda que os ditadores do Hamas nada mais queiram do que libertarem-se a eles próprios e escravizar ainda mais pessoas -, e enquanto o status quo do Estado de Israel se conservar, o conflito nunca terá solução. O Hamas quer aniquilar todos os judeus no planeta e impor a religião islâmica sobre todo o pedaço de terra que conseguir ocupar. A única coisa que verdadeiramente diferencia o Hamas do exército nazi é que estes últimos, ainda que movidos pelo ódio e pelas mais degradantes motivações, tinham nas suas fileiras autênticos guerreiros munidos de coragem prontos a enfrentar o adversário em campo aberto, nos mares e no ar. Fora a cobardia do Hamas, é tudo farinha do mesmo saco. Quanto aos governantes de Israel, a única motivação destes é a expansão do território e a multiplicação das suas riquezas. Para atingirem esse fim estes estão preparados para cometer genocídio. Com duas partes tão sedentas de poder e sangue, tão cegas, tão decididas em obliterar o outro, é difícil encontrar a paz e a conciliação antes que um autêntico cancro de mortandade se espalhe na Ásia Ocidental. Seria necessário que o povo judaico de Israel acordasse e percebesse que o regime que os governa os leva num caminho medonho de crimes de guerra e de hipotéticas guerras futuras com entidades mais perigosas e poderosas que o Hamas, e seria necessário que o povo palestiniano conseguisse unir-se e cilindrar os seus opressores de dentro. O povo palestiniano não é o Hamas e a prova disso é a quantidade de palestinianos que reconhecem os dirigentes da Fatah como seus líderes e representantes.
Como é a diplomacia portuguesa perante esta deprimente desgraça? Nem magnânima, nem terrível… tirando a mais recente patinagem desastrosa do Presidente da República. Foi na semana passada que, perante as câmaras do mundo, Marcelo Rebelo de Sousa achou apropriado começar uma ligeira discussão com o embaixador da Autoridade Palestiniana sobre quem tinha começado e quem tinha acabado. Lamentável! Triste figura que a República Portuguesa fez aos olhos dos estados do mundo, sob representação do seu Chefe de Estado. Mas também é verdade que o ‘desabafo’ do Professor Marcelo perante as câmaras, dizendo ao diplomata palestiniano que os palestinianos é que iniciaram esta nova etapa de guerra, deverá ter agradado ao complexo militar-industrial dos Estados Unidos que com cobiça na alma espreita do outro lado do Atlântico. Se fosse tão fácil dizer quem é que começou, distribuir a panóplia das culpas e encerrar os diferendos, não teríamos chegado até onde chegámos. Se por um lado se pode argumentar que o Hamas é que reacendeu os fogos da guerra com o ataque terrorista ao Festival Supernova, Israel já tinha lá deixado as achas e as acendalhas com a sua política de colonização e despejo de tantas comunidades palestinianas que ao longo dos anos têm acumulado tantas amarguras e tantos ódios. É com a marginalização, segregação e desprezo que as comunidades se radicalizam e se deixam cegar pelas promessas de glória eterna oferecidas por abutres que nada mais querem desses civis tornados guerrilheiros que sejam carne para canhão. O ciclo de ódio já é tão antigo e complexo nos meandros que já ninguém sabe quem é o quê, e chegará o dia em que já ninguém recorda, enquanto dispara mais um roquete, porque é que foi disparada a primeira bala.
O conflito só terá um fim quando as organizações terroristas islâmicas desaparecerem do mapa (e se esse dia chegar será um grande dia para a liberdade dos palestinianos e do mundo) e quando haja um governo israelita que ponha termo aos colonatos e permita o pleno estabelecimento do Estado da Palestina. No que concerne a dificílima, complexa e fulcral questão da Cidade de Jerusalém - a questão que tantas vezes tem sido salientada como um problema-chave no conflito -, creio cada vez menos que a resolução passa pela solução de dois estados. E não. Obviamente também não passa por se ceder Jerusalém em exclusividade, a uma nação ou à outra. Mas deixarei uma nova abordagem a este assunto particular para outro dia.
Foi há um mês que, enquanto tantos jovens, no apogeu da sua felicidade, viviam a vida num festival musical, um batalhão de homens enlouquecidos e mentalmente degradados entrou pelo recinto dentro e disparou sobre tudo o que movia. Estes bárbaros do Hamas - também colocando, em simultâneo, um grande alvo nas costas das populações palestinianas -, munidos de metralhadoras e granadas, acharam que seria a vontade de deus abater e destruir pessoas que ainda tinham uma vida pela frente, todos eles desarmados, todos eles sem condições para se defenderem. Uns foram mortos, vivendo os últimos minutos de vida em terror, outros foram sequestrados e ainda são reféns da barbárie. Este texto é também a minha forma de fazer uma homenagem às jovens vítimas da teocracia islâmica.
A guerra tem de terminar. Uma solução tem de ser encontrada para Jerusalém. A Palestina tem de ser libertada e providenciada com território. O fundamentalismo islâmico tem de ser eliminado.
Martes, 15 de Brumário CCXXXII