quarta-feira, 14 de agosto de 2019

E querem argumentar que Luta de Classes não existe...

Os círculos e sites, mais subterrâneos, duma Direita que se tenta regenerar e renovar - fazendo precisamente o contrário da renovação, voltando a assumir retóricas já decrépitas -, têm um tipo de argumentação que apela imenso ao medo e ao mito. O medo dos imigrantes. O medo das pessoas de cor diferente. O medo de pessoas que, na hora do sexo, gostam de coisas diferentes daquilo que vem nos textos sagrados. O medo de quem se identifica com a Esquerda. O medo duma sociedade mais liberta e com menos autoridade. O medo da Luta de Classes. E mitos! São tantos! Um dos que foi disseminado com mais sucesso é a teoria do Marxismo Cultural. Um dia destes, será um mito que eu abordarei, e desconstruirei - como outros já fizeram -, neste blog. 
Não só encontramos esta orientação de pensamento nestes círculos e correntes (em Portugal temos uma que me chama a atenção, muito mais que o PNR ou a Nova Ordem Social, que é a Esperança em Movimento, ala recentemente fundada dentro do CDS) como também a encontramos em vários políticos de grande responsabilidade, por esse Mundo fora. A Humanidade, em si, é divisível em muitas características, culturas, formas de interpretar a vida, formas de aplicar a Economia. Em todo o caso, sobre todas essas divisões, que nas melhores hipóteses também podem ser elos de união, há uma grande divisão entre duas partes: a Classe Dominante e a Classe Trabalhadora. Quase nunca podemos escolher a qual pertencemos. Mas podemos escolher apoiar, ideologicamente, uma ou outra. A Luta de Classes, durante boa parte do decorrer do Tempo, não se faz notar. É um conflito silencioso. Os tempos que vivemos são exemplo dessa mesma fase silenciosa. Possivelmente, chegaremos ao dia em que essa Luta não será silenciosa e será fortemente sentida em todos os lugares do Mundo, como outrora já aconteceu, para que na síntese desse conflito nasça um novo paradigma civilizacional. Mas, se é verdade que o conflito ainda é silencioso e passivo, também é verdade que aqui e ali encontramos uns poucos átomos, desse organismo, a movimentarem-se. Em Portugal há um exemplo que encandeia de tão evidente que é.
Primeiro tivemos um braço de ferro entre Professores e o Governo da República e boa parte da sociedade portuguesa. Agora temos os motoristas de matérias perigosas, em exigência de melhores condições no seu trabalho e de melhores salários. Quanto a mim, parece-me que é algo que qualquer trabalhador deve fazer. Bater à porta dos patrões e exigir-lhes condições laborais bem melhores. O sindicato em questão convocou uma greve, e esta tem estado a decorrer. Coisas como a ANTRAM - que é nada mais que um Sindicato do Patrão - vieram reclamar que as negociações com os sindicatos, que precederam a greve, foram feitas sob pressão e que os desgraçadinhos dos Patrões estavam a ser pressionados. O Governo tentou meter o apito de árbitro na boca, mas depois de certas reivindicações por parte dos patrões dos motoristas, o Governo, dum partido que se diz ser socialista - (gargalhadas) mas que não é - decidiu tomar um papel activo no jogo. O que poderíamos esperar dum governo socialista nesta questão? Que apelasse aos patrões a justiça de atribuírem melhores condições laborais aos seus trabalhadores? Que legislasse nesse sentido? Que, simplesmente, deixasse a greve acontecer, não tomando posição oficial sobre a legitimidade das reivindicações dos motoristas? Algo deste género... requisição civil, nunca! Isso não é próprio dum governo socialista. Governos socialistas não fazem o seguinte: permitir que greves aconteçam, mas assim que ela se torna um estorvo, uma verdadeira dor de cabeça à Classe Dominante, cortam-nas. Quem esmaga e atropela o direito à greve, quando esta é um direito laboral consagrado na Constituição, são os neo-liberais e os conservadores. O Governo de António Costa, accionando o botão de emergência de obrigar um trabalhador a trabalhar, quanto este não reconhece como legítimas as suas condições de trabalho, toma uma atitude autoritária e contrária ao Socialismo.
É legítimo discutir a profundidade legítima destas reivindicações. Eu não o farei por dois motivos. Porque se trata de um confronto laboral no qual há trabalhadores que simplesmente pedem maior justiça na sua remuneração, e porque não entendo ter competências para o fazer, num quadro técnico. Tudo o que eu sei é que sindicatos avisaram que haveria greve, convocaram greve, a greve aconteceu, uma franja da sociedade portuguesa indignou-se com estes trabalhadores que simplesmente fazem o que todos os trabalhadores deveriam fazer - indignou-se só porque a normalidadezinha energética foi temporariamente interrompido em nome da justiça no trabalho - e o Governo interrompeu, por decreto, a greve. Este método autoritário de resolver greves e problemas de trabalho não me agrada. A cartada da requisição civil faz lembrar a "democracia de Salazar", na verdade, Oh Xavier, que exagero, estás a levar esta conversa longe demais. Mas eu creio não estar. Por este andar, cada greve que faça danos ao status quo será contornada com uma simpática requisição civil. Não me convençam que Luta de Classes já não existe. Não me convençam que o mundo ocidental alcançou plena Democracia.
Que a Direita iria apoiar, efectivamente, o Governo nesta jogada, já se sabia mesmo antes de acontecer. É daqueles momentos clássicos em que o PS se vai sentar no sofá da direita. Mas o Partido Comunista Português? Como é que um partido comunista pode dizer que esta greve tem motivações obscuras? Que dissessem isso doutras greves até compreendia, mas esta? Que raio de bússola é que este partido anda a usar para se guiar ideologicamente? Também a posição do Bloco de Esquerda não foi muito satisfatória, com divisões claras entre aqueles que defendem a posição que aqui tomei e aqueles que piscam mais o olho ao Governo, contudo, ao menos sabemos que no Bloco de Esquerda há liberdade para a discussão pública e interna das questões. Claro que no meio de tanta miséria, possivelmente, a única coisa boa foi o PCP e o BE terem dito o óbvio, afirmando que a requisição civil é um mecanismo que alenta a limitação do direito à greve. 
Terminando, para além da requisição civil, o que mais me entristece é ver tantos trabalhadores portugueses a atacarem verbalmente os motoristas que estão em luta. Aconteceu o mesmo quando os professores protestavam nas ruas. E é esse um dos grandes entraves à conquista de uma sociedade para os muitos, não os poucos: quando são trabalhadores que minam o caminho de outros trabalhadores.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Princípio e Fim da Vida

Em tempos ele atravessava os corredores em passos determinados, fortes, com os pés bem assentes no chão. Antes, ele entrava em casa de forma enérgica, com um sorriso na cara, apesar da áurea circunspecta que, desde que me recordo, era imagem de marca dele. Noutros tempos, eu escutava-o, na sua voz clara, bem audível. Escutava um dos homens mais articulados que me lembro de ter conhecido, com uma eloquência considerável, tendo em conta que, na sua formação, ele nada mais teve além de uma 4ª Classe. Escutava-o, enquanto paginava comigo livros temáticos editados pela Verbo, quer o livro fosse sobre o Egipto Antigo, a China Antiga, os répteis pré-históricos, ou fosse o Atlas do Mundo. Ele escutava-me, eu escutava-o, e íamos falando sobre os temas que viessem. Alguns deles foram a primeira chama para muita coisa que hoje me interessa. Ainda guardo todos esses livros. Não os vendo por fortuna que seja. Só venderia coisas como estes livros para comprar vida, tempo, ou para comprar sanidade mental. Eu escutei-o durante muito tempo. Ele era parte muito presente da minha vida. Hoje só o posso observar, enquanto uma forma definitiva de velhice toma conta dele.
Nos últimos tempos tenho pensado imenso no envelhecimento... e na morte. Mas, francamente, desde sempre que tenho pensado na terminalidade da vida. O processo de envelhecer tem-me surgido na mente como um espectro que está sempre à margem, mas que de quando em vez se mostra, lembrando-me que não se foi embora, que não me abandonou. Por consequência desta presença espectral nos assuntos da minha mente, a minha obsessão com o ideal de juventude tem crescido. Tem crescido a minha vontade de para sempre ser jovem. De acabar no meu leito de morte ainda jovem. Muito provavelmente, quando morrer, não será assim. Terei perdido a minha juventude física, e, quando estiver a envelhecer, a única coisa que me restará para manter a máxima juventude possível será a minha mente. É essencial, quer eu morra aos 30, aos 40, aos 60, que a mente nunca vacile e se mantenha sempre absolutamente sã.
O facto do meu avô, hoje, ser nada mais que uma concha daquilo que em tempos foi tem-me colocado em diálogo com estes pensamentos. Olho para ele, sem articulação, sem força, com a memória a voar da sua mente em velozes asas, com um olhar lasso, e não é propriamente a morte que me preocupa. A morte é um instante, é o fim da linha, e após isso não há mais nada. É como um barco que durante décadas deu aquilo que tinha a dar, e que finalmente chegou ao destino da sua última viagem, para depois ser permanentemente descontinuado. A morte há muito que me deixou de preocupar. Mas o processo de morrer é diferente. Na última entrevista que Christopher Hitchens deu à BBC, já a falecer de cancro (2011), ele também disse que, ao contrário da morte, aquilo que o assustava era o processo de morrer. E olhar para o meu avô - pensando eu que um homem que durante a sua longa vida foi tão ponderado, lúcido, com uma memória colossal, e que agora se vê na injustiça de perder a sua personalidade a passos largos - a chegar às estações decisivas desse comboio que é o Alzheimer, ou olhar para um lar, enraíza-me um pensamento: Antes viver 60 anos com a minha mente intacta, do que viver 80 e nos últimos 10 anos já não ser eu de todo. Bem sei que há quem vive 90 anos, sempre em perfeita sanidade mental, mas as perspectivas de no futuro perder a juventude é das coisas que mais me preocupa, no que a mim próprio concerne. 

Apraz-me saber (tenho a certeza) que este texto vai proporcionar diferentes leituras a quem o ler.