domingo, 14 de agosto de 2022

Um Crime Anunciado

Anteontem, um crime que tinha sido anunciado 33 anos antes foi efectuado e, com azar, pode atingir o seu hediondo objectivo derradeiro: o assassinato de um escritor por fazer uso do seu universal direito de se exprimir livremente. Sir Salman Rushdie, autor anglo-americano de origem indiana e muçulmana, 75 anos de idade, é um dos maiores embaixadores das letras inglesas das últimas décadas e, amiúde, por motivos não directamente relacionados com o conteúdo da sua obra literária, um dos mais famosos escritores vivos, tendo sido também professor universitário a título de convidado. Sobre a sua bibliografia sei muito pouco. Tanto quanto o meu conhecimento alcança, o palco da acção dos seus romances situa-se geralmente na Índia e as suas estórias estão ligadas à corrente do realismo mágico. Com excepção da Fátua que foi lançada - e que é um dos assuntos primeiros deste texto -, o que conheço concretamente sobre Rushdie resume-se a debates e intervenções, sobre selectos temas, que ele tem feito ao longo das duas últimas décadas (sei, por exemplo, que o autor é ateu), e sei que ele era amigo de duas grandes referências intelectuais para a minha pessoa: Christopher Hitchens e José Saramago.


Em 1988, Salman Rushdie publicou um romance, Versículos Satânicos. O livro foi pessimamente recebido pela comunidade islâmica internacional, que sempre que algo não ortodoxo é dito sobre o seu profeta, levanta-se numa gritaria imensa e dedica-se a um desporto que os fanáticos adoram: a queima de livros. No imediato foi isso que aconteceu com a nova obra de Rushdie. Desde Londres a Islamabad, fogueiras públicas foram ateadas, com os Versículos Satânicos como combustível. A oeste da Península Arábica, o romance foi bem recebido pelo público e pelos críticos literários. No Reino Unido, onde o autor residia na altura, a classe política dividiu-se em condenações e elogios… e não, esta não foi uma previsível divisão de Esquerda e Direita. Elogios a Rushdie houve-os em ambas as alas, por motivos variados, assim como as condenações. Entretanto, na capital da República Islâmica do Irão, o Ayatollah Khomeini tinha emitido uma Fátua - decreto absoluto do Supremo Líder do Irão sem hipótese de revogação, a não ser pelo próprio Supremo Líder -, ordenando todos os muçulmanos à necessidade moral de assassinar Salman Rushdie e todos aqueles que estivessem envolvidos com a publicação da obra. Anos mais tarde, o seu sucessor e actual Supremo Líder, Ali Khamenei, reforçaria a necessidade virtuosa da Fátua oferecendo uma recompensa de 3 milhões de dólares à ovelha cega que cometesse o homicídio… em nome de uma alegada religião da paz. Desde então, foram diversas as tentativas de atentado à vida de Rushdie, a ponto da polícia britânica ter sido destacada para assegurar a integridade física do escritor, e o então tradutor do livro para japonês, Hitoshi Igarashi, foi assassinado em 1991. No Reino Unido, perante a Fátua de Khomeini, vários deputados do Partido Conservador e do Partido Trabalhista optaram por não defender o direito de liberdade de expressão de Rushdie e antes preferiram juntar-se ao lamaçal de condenações. O conservador Norman Tebbit rotulou Rushdie como um "notável vilão" (uma desforra, certamente, das críticas que Rushdie já havia articulado no passado sobre a fé cristã), e o deputado trabalhista Keith Vaz apelou à censura dos Versículos Satânicos. Desde a Fátua e dos Versículos Satânicos que Rushdie é considerado um escritor controverso (apesar de eu considerar que, enquanto ateu e crítico da religião, é um pensador bastante moderado e contido), constantemente ameaçado de morte por fundamentalistas islâmicos e pelo Estado Iraniano, não obstante também ter sido defendido em praça pública por admiradores e colegas escritores, entre os quais os já referidos Hitchens e Saramago - estes sim, muito mais radicais nas críticas que expressaram relativamente à religião e, em especial, às religiões abraâmicas. Felizmente, Saramago e Hitchens faleceram sem alguma vez terem sido vítimas de um ataque motivado por ódio religioso. Salman Rushdie não teve essa sorte.


Foi há dois dias, no Estado de New York, EUA, pouco antes de dar uma palestra no Instituto Chautauqua, que Salman Rushdie foi violentamente esfaqueado por um desgraçado de 24 anos chamado Hadi Matar. Rushdie foi golpeado em sítios tão diversos como o pescoço, o abdómen e uma mão, tendo sofrido danos consideráveis no fígado. O agente literário de Rushdie tem adiantado que o escritor corre o risco de perder um olho. Imagino eu que alguns golpes terão sido desferidos no rosto. Felizmente, a criatura foi neutralizada por atendentes do evento e detido pela polícia. Oficialmente, ainda não se conhecem as motivações de Hadi Matar para tentar matar tão sereno escritor, já idoso, todavia, não é necessário ser um génio para deduzir as suas razões se tivermos em conta que este indivíduo professa a corrente xiita da fé islâmica, aquela que venera o Ayatollah do Irão como líder religioso máximo do Islamismo. 


Rushdie, no hospital, já acordou. A Fátua quase foi cumprida, mas o escritor ainda respira e o inimigo da liberdade vai para o cárcere. Mas este que vai para a prisão é apenas um soldado raso, manipulado e torturado por uma vida de medos e ilusões e promessas de uma esplêndida vida depois de esta que vivemos nesta Terra. Os seus mestres tiranos, negando a liberdade aos seus súbditos, gozam-na e quase abririam uma garrafa de champanhe não tivesse Rushdie sobrevivido, e não fossem eles abstencionistas do álcool como manda o Alcorão. Pelo menos é o que eles garantem. Acredite quem quiser.


As sociedades seculares têm um grande problema em mãos. É um problema antigo, mas que se vai mutando com o passar dos tempos, com a transformação de circunstâncias, pensamentos e conjunturas. O que fazer com as religiões que usam da violência e/ou do discurso de ódio para fazer avançar as suas agendas? O que fazer com determinadas igrejas cristãs manhosas que escravizam mentalmente os seus fiéis? O que fazer com as mesquitas fundamentalistas que continuam a funcionar em culturas que rejeitam os mais basilares direitos humanos? Temo que, nesta sociedade de tolerância que felizmente se vai fortalecendo, pouco a pouco, a liberdade religiosa está a ser sobreposta à liberdade de expressão. A partir do momento que criticamos um escritor, por criticar uma religião, apelando a que as pessoas não ofendam esta ou aquela religião, estamos a oferecer santuário seguro às vozes odiosas que apelam à eliminação desse escritor que lhes ofereceu crítica. É um paradoxo ideológico do Século XXI: muitos movimentos progressistas, em nome da defesa da liberdade e dos direitos humanos, optam por tentar calar críticas à religião - ainda que uma crítica de uma religião não implique nenhum comprometimento da liberdade religiosa, da mesma forma que criticar um partido político não implica um ataque à liberdade política -, mesmo que essas práticas e dogmas religiosas/os criticadas/os representem uma ofensa a esses mesmos direitos humanos e liberdades que os movimentos progressistas dizem defender. Que direitos humanos e liberdades são esses, colocados em perigo por fundamentalistas cristãos e islâmicos? Direitos das mulheres. Direito à autodeterminação de género. Liberdade religiosa e separação entre Estado e Religião. Liberdade política. Direito à apostasia. Liberdades do foro sexual. A pessoa leitora deste texto poderá inquirir porque é que tantos liberais e progressistas alinharam neste paradoxo. Eu próprio me pergunto porque é que quando chega a hora de se defenderem causas feministas ou direitos LGBTQ, critica-se tudo o que de direito é justo criticar, com excepção das práticas de comunidades islâmicas e das políticas de regimes islâmicos ditatoriais. Um tiro no pé, quanto a mim. O filósofo esloveno Slavoj Zizek tem explicações interessantes para este esquisito fenómeno. Segundo Zizek, muitos progressistas elegem por não condenar grupos islâmicos pelas suas práticas e posições, temendo serem acusados de racismo, julgando estes que ser islâmico é pertencer a uma etnia. Ser islâmico não significa pertencer a uma etnia. Ninguém nasce crendo numa religião. Ser muçulmano, sim, é uma etnia, tal como Salman Rushdie… que não era islâmico. Se dúvidas houver do que escrevi, repare-se no seguinte: raro é o órgão de comunicação social que está a noticiar a religiosidade do atacante. Porquê? Não querem identificar uma pessoa islâmica como perpetuadora desse crime. É relevante essa informação? Muito. 33 anos antes um amo seu tinha emitido a tal Fátua. Temos aqui o resultado.


O esfaqueamento de Rushdie é mais que uma tentativa de homicídio. O ataque a Rushdie é um ataque a qualquer pessoa defensora do Espírito Crítico do indivíduo e é um ataque contra a sociedade secular. No que me concerne, o ataque físico a Rushdie é um ataque a toda a sociedade ateísta mundial. Aqui na Europa, e na República Portuguesa, toda a vigilância é pouca e o obscurantismo está sempre à espreita.


Nota final:

JK Rowling exprimiu solidariedade por Salman Rushdie na rede social Twitter. Um internauta, comentando a publicação, ameaçou Rowling dizendo que ela seria a próxima. Rowling já reportou o caso à polícia. Aqui será certamente um daqueles lunáticos que acusa JK de transfobia e que julga que ela é o Hitler renascido. Há gente doida para tudo. Há pessoas fascistas que nem sequer sonham que o são.


Domingo, 26 de Termidor CCXXX

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