sábado, 18 de janeiro de 2025

O Perigoso Caso da Gronelândia

A Gronelândia é uma das nações mais fascinantes, interessantes e apelativas para o meu imaginário. Há qualquer coisa de acolhedor, misterioso e reconfortante num país com cerca de 56 mil habitantes e cuja maior parte do território se encontra congelado. Um terço da população vive na capital Nuque (Nuuk na grafia gronelandesa), que é uma das urbes com o clima ‘menos frio’ do país. As pescas, o mar e a extracção de recursos naturais são os principais motores da economia gronelandesa. Quase toda a população vive nas zonas costeiras devido ao clima inóspito e gelado no interior e no norte. Em Dezembro é quase sempre noite e em Junho é quase sempre dia. Afinal, a Gronelândia, terra situada já dentro do Círculo Polar Ártico, está a uma distância próxima do Pólo Norte (que se situa no Oceano Glacial Ártico, a norte do país). Não existe nação na generalidade mais fria que a Gronelândia. 

Na capital existe a Universidade da Gronelândia com dezenas de docentes e centenas de pessoal administrativo e alunos, oferecendo cursos de licenciatura, mestrado e doutoramento em variadas áreas, desde as humanidades, ao direito e à medicina. Dividida em cinco municípios (apesar de ser uma área territorial superior a dois milhões de quilómetros quadrados, são apenas cinco porque a densidade populacional é extremamente baixa), a Gronelândia tem o seu próprio governo, chefiado por um primeiro-ministro, tem o seu próprio parlamento (unicameral) e o seu próprio sistema judicial. Todavia, como nas últimas semanas tem vindo a ser do conhecimento do público, a Gronelândia não é um estado soberano e independente. 


Ainda que tenha condição de nacionalidade e país autónomo, a Gronelândia pertence ao Reino da Dinamarca. A Gronelândia não é a Dinamarca (país escandinavo com metade do tamanho de Portugal em área), os gronelandeses não são dinamarqueses, mas a Gronelândia é, efectivamente, um território autónomo do estado dinamarquês. A Dinamarca reconhece aos gronelandeses o estatuto de nacionalidade; reconhece o gronelandês como idioma oficial na ilha (a maior ilha do mundo, por acaso), a par com o dinamarquês; os cidadãos gronelandeses, para além de serem cidadãos dinamarqueses, são também cidadãos da União Europeia; os órgãos do poder político gronelandês têm um elevado grau de autonomia; os cidadãos gronelandeses têm o direito de eleger dois deputados para o Parlamento da Dinamarca; e todos os anos, no orçamento de estado do Reino da Dinamarca, estão previstas milhões de coroas (moeda da Dinamarca, Gronelândia e Ilhas Faroé) para sustentar e financiar a Gronelândia. Escusado será dizer que o Rei da Dinamarca é também soberano da Gronelândia. 


Portanto, a relação que existe entre a Dinamarca e a Gronelândia é semelhante à relação que Portugal Continental tem com os arquipélagos da Madeira e dos Açores, com a diferença dos gronelandeses serem uma nacionalidade à parte, com uma língua própria, e com um grau de autonomia um pouco mais elevado. O representante do Rei na Gronelândia é o Alto Comissário da mesma forma que a Madeira e os Açores também têm Representantes da República. Eis então um sintético perfil de uma das nações que mais me tem fascinado nos últimos quinze anos e que, para grande transtorno dos gronelandeses e meu, se encontra agora numa situação política surreal e medonha. 


A História da Gronelândia, sendo muito pouco conhecida dos portugueses e tendo um peso insignificante na historiografia portuguesa, é muito interessante e ligeiramente complexa. O povo inuíte da Gronelândia (muitas vezes referidos como esquimós) habita a ilha há milhares de anos, tendo para aí migrado, durante uma glaciação, pelo actual Canadá. De acordo com as sagas nórdicas, no final do século X, durante a Idade dos Víquingues, marinheiros e guerreiros - liderados por Erik, o Vermelho, expulsos do Reino da Noruega e exilados na Islândia - viajaram para noroeste em busca de uma terra gelada e encontraram a Gronelândia. A etimologia do nome do país também é interessante e tem origem nesta época: Groenland, que significa “terra verde”, parecido em inglês, Greenland. Os exploradores víquingues terão dado tão irónico nome a uma terra tão gelada porque terão visto tudo verde quando chegaram a uma costa no sul da ilha. No idioma gronelandês o nome do país é Kalaallit Nunaat, que significa “terra dos kalaallit", que é o povo inuíte que habita o ocidente da ilha. Foi já no primeiro quartel do século XI que Leif Erikson (filho de Erik, o Vermelho) viajou da Gronelândia pelas ilhas canadianas até ao espaço continental da América do Norte, tendo chegado à actual Newfoundland. Esta campanha de Leif Erikson trouxe, portanto, os primeiros europeus às Américas. Não foi Cristóvão Colombo em 1492, quase meio milénio depois. Nesta época os reinos nórdicos da Escandinávia (Dinamarca, Noruega e Suécia) ainda abraçavam a sua autóctone cultura víquingue, maior parte da população ainda venerava a religião nórdica e o processo de cristianização da Escandinávia ainda estava numa fase inicial.


Foi já durante o século XIII que o Reino da Noruega passou a deter oficialmente a Gronelândia no seu território, após a população se ter submetido à soberania do Rei Magnus VI em 1261. Foi o início do período da primeira colonização da ilha, tendo a monarquia norueguesa tomado proveito das raízes escandinavas que já tinham sido instaladas mais de 200 anos antes. Também na Gronelândia o processo de cristianização já tinha começado. Estudos arqueológicos apontam a construção das primeiras igrejas para a primeira metade do século XII. Em 1397 é formalizada a União de Kalmar que congrega a Noruega, a Suécia e a Dinamarca numa única monarquia (até 1527), a única época na História em que a Escandinávia esteve unificada. Pelo facto da ilha gronelandesa estar reclamada pela Noruega, assim como a Islândia, a Gronelândia passou a pertencer a esta união monárquica. Todavia, ao que a historiografia nos indica, no século XVI, todas as comunidades e localidades escandinavas na ilha - com origem nos tais víquingues noruegueses do século X - tinham desaparecido do mapa e mal deixaram rasto para os historiadores e os arqueólogos. Ainda hoje não há certezas sobre o porquê da extinção destas comunidades. Causas apontadas vão desde as dificuldades económicas e perda de contacto com os nórdicos europeus até aos conflitos com a população inuíte. Sabemos que a Gronelândia voltou a ser exclusivamente habitada pelo povo inuíte e que os noruegueses, assim como toda a Europa, se esqueceram daquela colónia perdida no Ártico.


Após a dissolução da União de Kalmar, devido à secessão da Suécia, a Noruega e a Dinamarca mantiveram-se juntas num reino unido no qual a Dinamarca conseguiu alcançar hegemonia. Eventualmente, o fenómeno de expansão marítima iniciado por Portugal e Espanha no século XV havia de despertar o interesse dos escandinavos e também estes haveriam de se investir pelo mar fora como tinham feito no seu passado histórico. Foi, então, durante os séculos XVII e XVIII, que os dinamarqueses decidiram iniciar a segunda colonização da Gronelândia e evangelização protestante dos povos autóctones. Com a celebração do Tratado de Kiel em 1814, derivado das Guerras Napoleónicas, assinado pelo Reino Unido e a Suécia, por um lado, e a Noruega e Dinamarca (aliadas do Império Francês), pelo outro, ficou estipulado que as autoridades dinamarquesas entregariam a Noruega ao Reino da Suécia, podendo manter, em contrapartida, as possessões coloniais do Ártico - Ilhas Faroé e Gronelândia, nomeadamente. E é assim que chegamos ao século XXI e esses mesmos territórios ainda hoje pertencem ao Reino da Dinamarca. Evidentemente, nos dias presentes, e desde o século passado, que as configurações dessas pertenças territoriais não são as mesmas que no século XIX. Já não se trata de uma relação entre colónia e metrópole. Como referi no início deste texto, a Gronelândia é hoje uma região autónoma, com as suas leis e o seu próprio governo, sendo reconhecida como uma nação. Desta relação entre território autónomo e a coroa surgiu um conflito há algumas décadas que tem vindo a ganhar força durante este século. Esse conflito ideológico e político, que existe entre os gronelandeses e os dinamarqueses, está associado ao lugar da Gronelândia no mundo. Deve a Gronelândia recuar nas concessões de autonomia legisladas em 1979 e 2009? Deve a Gronelândia manter-se unida à Dinamarca, mantendo o actual nível de autonomia? Deve a Gronelândia declarar independência e proclamar uma república? A grande discussão política, na Gronelândia e na Dinamarca, divide-se precisamente entre a autonomia e a independência. O próprio primeiro-ministro da Gronelândia, Múte Bourup Egede, assim como o seu partido, Inuit Ataqatigiit (força política da esquerda socialista), defendem a independência gronelandesa. Não obstante haver um conflito ideológico, a discussão prossegue em plena paz e serenidade. A Gronelândia não é uma ilha conhecida pelo crime, a violência e a desordem. O povo gronelandês vive, e quer continuar a viver, em paz total. Contudo, uma outra dimensão do problema haveria de a seu tempo ser criada, uma dimensão com a qual ninguém contava: não contavam os dinamarqueses, nem os gronelandeses, nem eu, nem a maior parte das pessoas. Um novo capítulo na História do Imperialismo Americano, desta vez protagonizado por Donald Trump.


Quando ainda decorria o primeiro mandato presidencial de Trump, já este mencionava em viva voz, com o apoio da sua administração e da restante máquina política, o seu interesse em comprar a Gronelândia à Dinamarca. Recordo-me de já nessa altura, antes da pandemia, ter ocorrido essa polémica ainda que os media portugueses não lhe tenham dado grande relevo ou cobertura. Agora que Trump foi reeleito (toma posse dentro de dois dias), o assunto voltou à ordem do dia, pela boca do próprio, mas desta vez com meandros mais sinistros. O assunto não se tornou mediático por haver um presidente dos EUA com intenções de comprar território a outro estado. A Administração Jefferson fez a Compra da Louisiana (1803) à República Francesa, duplicando a área do país (implicando o que hoje são vários estados), e em 1867, durante a Administração de Andrew Johnson, o Alaska foi comprado ao Império Russo, território que um século depois foi admitido como o 49º estado da união. O que torna agora a situação bizarra é a reacção de Trump à recusa da Dinamarca em vender a Gronelândia e o facto dos gronelandeses não quererem para eles tão dantesco destino. E a reacção de Trump, no plano da sua estratégia subsequente, não coloca de lado a possibilidade de que a ilha seja tomada à força. Ordenar uma invasão militar de um território que pertence a um estado-membro da União Europeia (cujos países são aliados próximos dos EUA) e um estado-membro da NATO, aliança militar que os próprios EUA fundaram. Quase que me atrevo a dizer que se alguém tivesse escrito isto numa obra de ficção, muita boa gente teria dito que isso não faria sentido e que isso nunca aconteceria. Por vezes a realidade é mais absurda que a ficção. E é essa dimensão do absurdo que tornou o caso mediático. Um presidente norte-americano mencionar a vontade de comprar para os EUA um grande pedaço de território, o estado a que pertence esse território - e que ainda por cima é um aliado muito próximo e fundamental - afirma taxativamente que o território não está à venda, e esse mesmo presidente responde que esse território é fundamental para a segurança dos EUA e que a hipótese de invasão não está excluída - defender isto, justificar isto ou dar desculpas para esta afronta, esta atitude agressiva e repugnante, é ser cúmplice de um imperialismo que procura a servidão de todos, incluindo os europeus. Quem se apresenta como advogado de Donald Trump, afirmando que ele só procura proteger o seu país, tem de defender também a invasão da Ucrânia, a violência israelita contra os palestinianos, a invasão da Polónia em 1939 e, já agora, terá de também defender Trump caso um dia ele afirme que os Açores, situados no meio do Oceano Atlântico, são uma peça chave fulcral para os interesses dos EUA. E a pior parte é que de facto são. Quem vive com a paranoia dos russos a leste esquece-se da outra ameaça a ocidente, no outro lado do mar.


Será também pertinente perguntar porque é que os dirigentes norte-americanos, e, mais especificamente, a nova administração presidencial que em breve tomará posse, entendem que a obtenção da Gronelândia é muito importante para a segurança norte-americana. Muitos poderão afirmar que a Gronelândia é uma ilha gelada demasiado grande e muito desabitada, não chegando a ter 100 mil habitantes. Todavia, sucede que a Gronelândia, dada a sua localização geográfica e devido ao seu manto de gelo (derivado da sua localização), representa um el dorado para os interesses económicos e militares dos EUA. No que concerne ao âmbito militar, a detenção da Gronelândia significa mais 2 milhões de quilómetros quadrados, dentro do Ártico, com mais espaço marítimo e mais próximo da Rússia e da China. Os EUA já têm algumas bases militares instaladas na Gronelândia. Evidentemente, Trump e toda a máquina que está por trás dele ambicionam muito mais do que meia dúzia de bases militares. Quanto ao âmbito económico, devido ao progressivo degelo do manto de gelo gronelandês - o segundo maior no planeta a seguir ao manto de gelo antártico -, a ilha está a revelar uma mina gigantesca de recursos naturais não explorados e que agora estão a tornar-se acessíveis para a sua prospecção. Alguns desses recursos naturais são o cobre, minérios de terras raras (cuja extracção, presentemente, é dominada pela China), gás natural e petróleo. Historicamente já sabemos que qualquer nação com elevadas reservas de petróleo está na mira dos EUA.


É de extrema importância que o governo dinamarquês não faça mais concessões aos EUA e que não ceda perante as pressões e ameaças veladas que de agora em diante serão dirigidas pela Administração Trump. É também de igual importância que o povo gronelandês não se deixe ludibriar por promessas de independência, progresso e mais liberdade por parte do complexo militar-industrial norte-americano. É muito importante que o governo gronelandês compreenda que apoiar os EUA na sua missão de convencer a Dinamarca a vender a ilha significa comprometer todos os cidadãos gronelandeses e o próprio equilíbrio ambiental da Gronelândia e dos seus ecossistemas. Todavia, no que toca ao actual governo gronelandês, não há motivos para preocupações, ainda que haja ambição de um dia separarem-se da Dinamarca. O governo gronelandês e o seu povo preferem cem vezes pertencer à Dinamarca e não alcançar soberania do que pertencer ao império norte-americano.


Se o pior acontecer e Trump ordenar a invasão da Gronelândia - invadindo território de um estado-membro da União Europeia e da NATO - é muito importante que as nações europeias estejam preparadas para tomar decisões muito difíceis e drásticas. Uma dessas decisões seria deixar de se considerar os EUA como país amigo dos europeus. Outra seria fechar todas as bases militares norte-americanas em território europeu e ordenar a expulsão dos respectivos militares. Outra decisão seria expulsar os EUA da NATO, mantendo no território europeu o armamento nuclear da NATO, e constituir-se uma liga militar europeia para assegurar a paz na Europa. Compreendo que quem estiver a ler se indigne perante o meu apelo a que uma futura liga militar europeia conserve o armamento nuclear da NATO que se encontra na Europa. Se dependesse de mim, todo o armamento nuclear seria destruído. Mas nós vivemos num mundo em que potências rivais têm essas armas e não demonstram ter qualquer vontade de as destruir. Se assim é, é sensato que as nações europeias unidas não abram mão desse elemento dissuasor de hipotéticas agressões à Europa. É um mal necessário, infelizmente. Seria também importante que o Reino Unido e a Suíça compreendessem que, ainda que não sejam estados-membro da União Europeia, os britânicos e os helvéticos são europeus, tal como os dinamarqueses e os portugueses, e que portanto fechar os olhos aos abusos imperialistas dos EUA significa trabalhar contra os seus próprios interesses. Todas estas decisões são radicais mas seriam as únicas decisões possíveis face a uma agressão norte-americana. O cidadão português que não compreende porque se haveriam de tomar todos estes passos só precisa de substituir Gronelândia por Açores. O ocidente europeu aparentemente vive com receio da ameaça russa, mas, concretizando-se, a ameaça norte-americana seria muito mais grave e medonha. Esta perigosa situação é uma evidência de que há várias décadas aquilo que os EUA mais procuram na Europa é o semear de sentimentos nacionalistas e a divisão. Dividir para reinar, como já afirmava Machiavelli. No dia em que o Reino Unido abandonou a União Europeia - mediante um processo democrático, sublinho - os altos dirigentes norte-americanos (de ambos os partidos dominantes) festejaram. Mais razões terão para festejar se tiver início o fim da integração europeia.


Claro que todas essas decisões difíceis que enumerei só seriam tomadas se os EUA ocupassem a Gronelândia. Ainda tenho esperança que no Pentágono haja comandantes que percebem os riscos de elevado isolamento que a invasão da Gronelândia significaria e que, a seu tempo, algo ou alguém demova Trump de continuar a falar das suas ambições gronelandesas.


Quem diria que a Gronelândia, a ilha que eu quero tanto visitar um dia, seria assunto na boca da opinião pública internacional. Uma grande ilha que tem permanecido ignorada pelas sociedades e que, até há pouco tempo, muita gente nem imaginaria que tivesse localidades e fosse habitada por dezenas de milhar de pessoas que também têm cidadania europeia. Mas agora que o principal porta-voz da oligarquia norte-americana vira as suas atenções para norte, também as atenções do mundo focam-se, apreensivas, no coração do Ártico. A terra dos ursos polares, das auroras boreais, da Lua do meio-dia e do Sol da meia-noite. Protejam a terra onde é sempre Inverno.


Sábado, 28 de Nivoso CCXXXIII


terça-feira, 30 de julho de 2024

A Bala de Trump e a Sucessão Presidencial

A tentativa de assassinato do candidato do PR (Partido Republicano), e anterior Presidente dos EUA, na Eleição Presidencial deste ano, é um fenómeno criminal e política que, no meu entendimento, demasiadas pessoas não compreenderam, e aparentemente ainda não compreendem, e é uma grande vitória para Donald Trump. O autor da tentativa de assassinato é um jovem, pouco mais novo que eu, registado no partido de Trump, branco, e já não está entre nós. O seu nome, quer se goste ou não goste, viverá para sempre na infâmia: Thomas Matthew Crooks. Este acontecimento, que desde já fica inscrito na História dos EUA, pode ser analisado em três domínios: 1) a tentativa de assassinato em si, e a relação de Donald Trump, candidato presidencial, com o facto da sua vida quase ter terminado; 2) a forma como este acontecimento influecia a campanha política e o Presidente Joe Biden; 3) e o que teria acontecido se Crooks tivesse sido bem sucedido nos seus desígnios. Passo a abordar os domínios de análise, por mim propostos, um de cada vez.


1) - Logo na noite (lá ainda era de dia) em que anunciaram “notícia de última hora”, que Donald Trump tinha sido alvejado num comício do PR, em Butler, Pensilvânia, as redes sociais - e a opinião pública generalizada, devo imaginar - lançaram-se em conjecturas de que tudo se tratava de uma encenação, da qual o atirador fazia parte, e que aquilo que Trump tinha na face não era sangue mas sim molho de tomate. O público português, assim como o público norte-americano, lançou imediatamente essa hipótese, antes de ver as filmagens, e por aí muitos continuaram depois de terem visto as filmagens. Eu próprio, assim que fui informado (pelo meu namorado, estávamos em casa), ponderei essa possibilidade. Mas ponderei essa possibilidade sem ter a mais breve ideia do que tinha acontecido. Quis, portanto, ver com os meus próprios olhos. Foi logo no momento em que vi as filmagens que essa hipótese, para mim, perdeu muita força. Na manhã seguinte, inteirando-me de mais informações relativas ao acontecimento, essa hipótese caiu no ridículo e na cegueira política. Obviamente que não foi uma encenação! O atirador foi morto no local por agentes dos serviços secretos! Da salva de tiros que Crooks disparou, para além de um ter levado um pedacinho da orelha de Trump, outro matou uma pessoa presente no comício! Não há encenações assim! Foram também feitas suposições em torno da forma como Trump reagiu ao ataque. Depois do atirador ter sido morto e do perigo ter sido neutralizado, o candidato presidencial ergueu o punho, celebrou o facto de ainda estar vivo e galvanizou o público, com a orelha ensanguentada, sendo, segundos depois, escoltado para fora do comício por agentes dos serviços secretos. Ainda sobre a hipótese de encenação, será oportuno referir algo muito importante: nenhuma farsa de tentativa de assassinato envolveria um tiro de raspão na orelha. Encenações deste tipo envolvem uma bala na perna ou no braço. Uma encenação com uma bala na orelha seria extremamente arriscada, pois a mínima falha poderia implicar uma bala na cabeça e a morte instantânea. Nesta ordem de ideias será pertinente também afirmar que Trump evadiu a morte por milímetros. Tivesse o disparo sido feito uns meros milímetros para a esquerda, neste momento estaríamos a falar de Donald Trump morto. Para remate deste primeiro ponto quero desde já expressar a minha pessoal condenação deste acto de violência política e também deixar escrita a minha condenação de retóricas acéfalas que procuraram ridicularizar, apoucar ou desvalorizar a tentativa de assassinato de um opositor político à actual administração norte-americana.


2) - Aquilo que teria sido uma desforra da eleição de 2020 estava a dar, desta vez, uma vantagem muito assinalável a Trump relativamente ao Presidente Joe Biden. Se Trump, em 2020, tinha pelo menos metade do país contra ele - e a fraca resposta dos EUA à Pandemia contribuiu para isso - e Biden apresentava-se como um candidato forte derivado da sua longa carreira, da sua experiência, de ser promovido como um sucessor de Barack Obama, e por apresentar energia suficiente para encarar a campanha de Trump, em 2024 a realidade é muito diferente. A enorme nódoa sobre o nome de Trump, derivado dos acontecimentos de 6 de Janeiro de 2021, já perdeu peso e Trump consegue apresentar-se novamente como um candidato fresco. A péssima presidência de Biden também tornou isso possível, e eu afirmo que a presidência de Biden é péssima numa perspectiva objectiva e histórica, mas também na perspectiva do eleitorado típico do PD (Partido Democrático). A Administração Biden não conseguiu oferecer respostas aos problemas sociais e económicos nos EUA, e a Administração Biden conduziu uma política externa desastrosa que levou à tomada do Afeganistão por parte dos talibãs, que dá cobertura ao Estado de Israel para levar a cabo a sua agressão contra o povo palestiniano (aqui não há nenhuma diferença entre Biden e Trump) e deu confiança a Vladimir Putin para iniciar uma invasão da Ucrânia. A forma como Biden tem relativizado o derramamento de sangue na Palestina tem, inclusive, alienado o eleitorado esquerdista do PD, eleitorado árabe e também eleitorado negro que podem ou não inserir-se dentro do possível eleitorado esquerdista. Em adição a estas circunstâncias, Biden tem vindo a perder as suas faculdades mentais nos últimos quatro anos (saliento que isto não é de agora e já se constata há muito tempo), culminando com a calamitosa prestação de Biden no primeiro debate que teve com Trump. Foi um debate mais cívico e organizado que aqueles que tiveram há quatro anos, foi um debate onde Trump procurou uma postura mais correcta e onde foi eficaz a transmitir a sua mensagem, e foi um debate no qual Biden se perdia constantemente, tropeçando no discurso, perdendo o fio à meada, fazendo confusões entre uma coisa e outra e entre um assunto e outro. Foi na sequência deste debate que fortes preocupações começaram a surgir dentro do PD. Investidores de peso começaram a retirar apoio à campanha de Biden - gente da Disney e da Netflix, por exemplo. Também destacadas figuras do PD começaram a fazer pressão para Biden desistir da corrida, entre estes o próprio Obama. Biden, por fim, a perder apoio dos Democratas na cúpula do seu partido e no Congresso dos Estados Unidos, cedeu à pressão e fez algo acertado: anunciou não se candidatar a um segundo mandato. Para além de tudo o que enunciei neste ponto, também a tentativa de assassinato de Trump contribuiu para a queda de Biden e irá contribuir para a vitória de Trump em Novembro. Trump sai reforçado depois da bala, passando a ser visto como um mártir na causa nacionalista dos EUA e como uma vítima de violência política. A forma carismática como Trump reagiu à sua tentativa de assassinato e a materialização de Trump enquanto vítima não só deram ainda mais força política a Donald Trump como também, no mesmo ritmo, retiraram ainda mais idoneidade política a Biden. Portanto, a tentativa de assassinato foi também um factor que contribuiu para a queda de Biden. As lideranças do PD compreenderam que a tentativa de assassinato tinha fortalecido (ainda mais) a demanda de Trump e dadas as circunstâncias entenderam que o afastamento de Biden seria imperativo. Dias depois, a muito custo, Biden haveria de ceder e abrir o caminho à Vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris.


3) - O que teria acontecido se por alinhamento de circunstâncias a bala tivesse encontrado o crânio de Trump, tal como aconteceu a outros presidentes norte-americanos? Haveria motins, insurreições e rebeliões em boa parte dos estados da União. Em especial aqueles que são dominados pelo PR. O ambiente político nos EUA, neste momento, seria um barril de pólvora. Seria de uma instabilidade tremenda que poderia anunciar o espoletar de uma guerra civil. Há gente, claro, que considera tal cenário um exagero, mas eu considero que o talento histórico que os EUA têm para a divisão violenta, o sectarismo e o antagonismo da outra facção política não deve ser subestimado. Aqui falamos tanto no domínio civil como no domínio militar. É por isto que é minha convicção que todos aqueles que encontraram motivo de chacota neste acontecimento não estão a compreender o que estaria em jogo se Trump tivesse sido morto. Uma guerra civil nos EUA representaria instabilidade internacional e, dada a infortuna dependência que as nações europeias têm em relação aos EUA, representaria também um grande abalo na Europa. É do nosso profundo interesse, portanto, que as contendas políticas e eleitorais nos EUA envolvam o menor volume de violência. Muitos poderão subestimar a capacidade de liderança de Trump - por virtude de não gostarem dele - mas Donald Trump é um dos intervenientes políticos mais influentes das últimas décadas. A lealdade cega e a euforia acéfala que Trump inspira no seu eleitorado não devem ser subestimadas. Ele foi subestimado em 2015 e 2016 e contrariamente às preconizações de muitos (não as minhas, devo dizer) Trump foi eleito Presidente dos EUA. Agora é diferente. Agora Trump inspira uma massa de seguidores ainda mais fanáticos, facciosos e dogmáticos… e o PD não tem a coragem política de enfrentar verdadeiramente esta maré. O que nos leva à última etapa deste texto.


A candidata que o PD apresenta para defrontar Trump, ainda que, à primeira vista, seja a opção mais óbvia - tratando-se da Vice-presidente e sendo mulher (nunca na História dos EUA houve uma mulher presidente) -, é também a opção que confirma a vitória de Trump. Kamala Harris não reúne apoio suficiente nos eleitores típicos do seu partido. Não levanta entusiasmo dentro dos eleitores independentes da Esquerda. Não inspira confiança nem consegue convencer os eleitores independentes da Classe Trabalhadora, brancos e protestantes, que presentemente (muitos deles) se encontram encantados pelo feitiço de Trump. Não tem uma estrutura programática de governo sólida e uma base ideológica suficientemente vincada e robusta que permita inspirar o eleitorado em valores universalistas e humanitários. Em suma, Kamala Harris não é de Esquerda. É mais do mesmo. Mais do mesmo Liberalismo americano que promete progresso colectivo e avanços sociais mas que fica muito aquém das promessas, à semelhança da Administração Obama, e as pessoas já viram este filme. Para concorrer contra Donald Trump em Novembro, o PD precisaria de apresentar um candidato ou candidata que reunisse os créditos políticos que Kamala Harris não tem. Talvez fosse o momento de dar uma última oportunidade ao Senador Bernie Sanders. Só um socialista convicto como Sanders - o líder da ala esquerdista do PD -, com a experiência que tem, com a reputação de honestidade e coerência de décadas, tem força popular e ideológica bastante para evitar que Trump volte a ser eleito Presidente dos Estados Unidos. Todavia, o centrismo liberal que domina as estruturas do partido e os interesses das grandes corporações não permitem que um socialista, com grande experiência, com convicções, e com grande ligação junto das camadas sociais ignoradas pelo PR, seja o candidato oficial do PD e ‘corra o risco’ de ser eleito Presidente. Para tal seria preciso uma crise socioeconómica profunda como aquela que caiu sobre os EUA em 1929 e que culminou com a eleição de Roosevelt - um estadista tão à esquerda que até Noam Chomsky o admira. No século XXI, o PD antes prefere a eleição de Trump do que ter uma administração presidencial aderente ao Socialismo.


Numa última nota, o PD sempre poderia apoiar a candidatura do Robert Kennedy Jr que presentemente se apresenta como um candidato independente, e que como tal já tem superado os 10% em sondagens, o que, atendendo à realidade política norte-americana, é um grande feito. Um candidato sensível à condição da Classe Trabalhadora nos EUA, com uma visão progressista da sociedade e um candidato preocupado com a questão climática. Também um candidato que se opõe aos massivos interesses da indústria farmacêutica nos EUA e um candidato genuinamente decidido em perceber, e dar ao público a conhecer, porque razão, e por quem, o seu pai e o seu tio foram mortos nos anos 60. Claro que por muitas destas razões, e pela promessa que Kennedy seria, os Media fazem uma campanha activa contra este candidato. E claro, o PD antes prefere ter o Trump presidente do que dar uma hipótese a Robert Kennedy Jr. Eles não detestam assim tanto o Trump.


Martes, 11 de Termidor CCXXXII

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Crimes de Guerra no Conflito dos Séculos


Como são, tantas vezes, as tragédias e as desgraças do mundo o alento para a proliferação de textos, ensaios, panfletos e manifestos, também a actual e antiga tragédia não podia deixar de voltar a ser abordada no Pensatório. Logo nesse fatídico dia em que o Hamas iniciou a sua ofensiva, pensei em começar logo a escrever, o mais rápido que pudesse, e depois publicar no tempo mais célere possível, um texto sobre o conflito entre Israel e Palestina. Mas elegi não o fazer porque os corpos de tantos jovens, que apenas queriam estar num festival de música, ainda não tinham arrefecido, e também porque decidi esperar para ver como se desenrolaria a situação em vez de mergulhar em suposições e vaticínios. E não se desenrola, claro está, a favor da Humanidade. Para quem estiver a ler este texto e ainda não tiver lido aquele que eu escrevi há dois anos, e porventura queira ler a minha sintética interpretação histórica deste conflito e a ligação com a milenar centralidade cultural de Jerusalém naquela região do mundo, pode consultar no Pensatório da Divisão o texto de Maio de 2021 intitulado Israel & Palestina e além: Conflito dos séculos. Para este texto ofereço uma abordagem mais directa e, provavelmente, mais emocional.


Desde o início que esta nova etapa da guerra entre o Estado de Israel e as forças fundamentalistas da Palestina se tem pautado pela coerência em cometer crimes de guerra. Antes que se façam quaisquer balanços de culpa, sejam históricos ou presentes, há que reconhecer que esses crimes de guerra são praticados tanto pelo Hamas como pelo Governo e lideranças das Forças Armadas do Estado de Israel. São estas duas facções que estão em guerra e são ambas as facções prevaricadoras exímias de crimes de guerra: da pior criminalidade que pode existir que torna malévolo algo que já per se - a guerra - é horrível.


Faz hoje um mês que o Festival Supernova - um evento musical de género transe de espírito liberal - foi atacado por uma horda de bárbaros do Hamas, que tinham invadido território na jurisdição de Israel a partir da Faixa de Gaza. 260 corpos foram encontrados no recinto, jovens muitos deles, da minha geração, massacrados à lei da bala e da lâmina. Outros tantos, de tantas origens e nacionalidades, foram raptados e feitos reféns por aqueles bárbaros. Reféns permanecem em parte incerta. O Hamas tinha feito uma manobra para reacender a guerra. Alguém que não me conheça minimamente e que leia isto, e que seja solidário com a causa palestiniana (que não tem de ser a causa do Hamas), poderá pensar que eu sou ligeiramente parcial perante o conflito a favor do Estado de Israel. Pois bem, não sou, e também não temos de ir à pressa escolher lados e levantar bandeiras, como foi feito com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. O conflito é tão antigo e tão complexo que nos perdemos no número de lados que há, porque não são apenas dois lados. Há mais lados para além das vontades do sistema sionista de Israel (a ironia de hoje haver judeus que se comportam como fascistas) e das ambições de destruição total dos bárbaros do Hamas. Há israelitas e palestinianos, dentro e fora da política, velhos e jovens, religiosos ou agnósticos, que querem a paz e querem coexistir em harmonia. Há organizações políticas israelitas e palestinianas que querem soluções e querem o fim da guerra. Temos a Fatah na Palestina (partido no governo da Autoridade Palestiniana), que infelizmente não consegue exercer controlo sobre a Faixa de Gaza, e temos no Knesset de Israel deputados eleitos pelo Partido Trabalhista e pelo partido marxista Hadash-Ta'al. Todavia, os focos mediáticos não incidem sobre os grupos nas sociedades israelita e palestiniana que defendem o fim da guerra e a secularização dos respectivos países mas incidem antes sobre o Hamas e sobre Netanyahu e o complexo militar-industrial que ele lidera.


Algumas pessoas poderão relativizar o facto de acontecerem crimes de guerra - porque a guerra em si já é violenta e assassina - mas a verdade é que, perante o Direito Internacional e a ONU (Organização das Nações Unidas), até a guerra tem regras. Algumas dessas regras são: não usar como alvo civis indefesos; não atacar escolas e hospitais; não violar sexualmente; não fazer reféns civis; não torturar. Israel já atacou campos de refugiados, escolas e hospitais, os seus soldados já violaram e torturaram, e Israel já bombardeou civis indefesos. O Hamas, por seu turno, já fez reféns civis, já torturou e violou e já tentou bombardear civis, sem dó nem piedade, não fosse o sistema de defesa anti-aérea de Israel denominado Iron Dome. Ambas as partes fazem dos crimes de guerra procedimento casual nas suas operações militares, tendo o Hamas, na minha estimativa, ainda menos escrúpulos que as lideranças do Estado de Israel. O ataque ao Festival Supernova - escolha deste evento feita devido ao ódio que o fundamentalismo islâmico tem à música e à liberdade - e as matanças e atrocidades bestiais, que o Hamas tem levado a cabo, em várias localidades vulneráveis, por onde os bárbaros passaram para derradeira desgraça dessas comunidades, quase que fazem da guerra entre a Rússia e a Ucrânia um duelo de cavalheiros.


Há décadas que a Assembleia-Geral das Nações Unidas aprova resoluções no sentido de encontrar o caminho para a paz nesta guerra interminável, quer seja no sentido de tornar possível a construção de dois estados soberanos, quer seja no sentido de neutralizar o extremismo religioso, quer seja no sentido de encontrar uma solução duradoura para Jerusalém. Os comunicados e pareceres que nos chegam da ONU, da Amnistia Internacional, e de tantas outras organizações, governamentais ou não, que têm observado o último mês de mortes e chacinas, que têm prestado auxílio humanitário, e que têm socorrido o melhor possível, relatam-nos cenários de atrocidades e manobras militares torpes, cobardes e infanticidas completamente vazias de ética e ignorantes perante as leis da guerra. A Amnistia Internacional dá-nos notícia, numa nota publicada no site oficial da organização, datada de 15 de Outubro, que a rapidez da escalada do conflito entre israelitas e palestinianos não tem precedentes e que milhares de pessoas, de ambas nacionalidades, já perderam a vida devido à guerra. A Amnistia Internacional tem insistido, com propriedade, no facto de que o sofrimento de civis em contexto de guerra é chocante, e aqui sublinhando sobretudo os civis que residem na Faixa de Gaza - o território palestiniano controlado pelo Hamas e onde Israel iniciou musculosas operações militares. Do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, chegaram apelos de cessar-fogo imediato, salvaguarda de vidas inocentes e apelos desesperados ao fim do infanticídio que está acontecendo na Faixa de Gaza. Perante os apelos e exigências do Secretário-Geral da ONU, o embaixador de Israel na Assembleia-Geral da Nações Unidas proclamou que este devia de ter vergonha e que já não reunia condições para ocupar o dito cargo. Diz Eli Cohen, o referido diplomata, que o problema não é o exército de Israel mas sim o Hamas que detém refém a população de Gaza e a impede de se refugiar em território mais seguro. Ainda que seja verdade o facto de o Hamas usar populações inteiras como escudo humano - a táctica mais cobarde e repugnante que pode haver em cenário de guerra -, Eli Cohen quer omitir-nos de que tal não justifica o bombardeamento de hospitais e bairros inteiros onde vivem pessoas indefesas e onde certamente crianças serão um alvo condenado à morte.


Enquanto for o Hamas a mais poderosa facção política que se apresenta como a força pela libertação da Palestina - ainda que os ditadores do Hamas nada mais queiram do que libertarem-se a eles próprios e escravizar ainda mais pessoas -, e enquanto o status quo do Estado de Israel se conservar, o conflito nunca terá solução. O Hamas quer aniquilar todos os judeus no planeta e impor a religião islâmica sobre todo o pedaço de terra que conseguir ocupar. A única coisa que verdadeiramente diferencia o Hamas do exército nazi é que estes últimos, ainda que movidos pelo ódio e pelas mais degradantes motivações, tinham nas suas fileiras autênticos guerreiros munidos de coragem prontos a enfrentar o adversário em campo aberto, nos mares e no ar. Fora a cobardia do Hamas, é tudo farinha do mesmo saco. Quanto aos governantes de Israel, a única motivação destes é a expansão do território e a multiplicação das suas riquezas. Para atingirem esse fim estes estão preparados para cometer genocídio. Com duas partes tão sedentas de poder e sangue, tão cegas, tão decididas em obliterar o outro, é difícil encontrar a paz e a conciliação antes que um autêntico cancro de mortandade se espalhe na Ásia Ocidental. Seria necessário que o povo judaico de Israel acordasse e percebesse que o regime que os governa os leva num caminho medonho de crimes de guerra e de hipotéticas guerras futuras com entidades mais perigosas e poderosas que o Hamas, e seria necessário que o povo palestiniano conseguisse unir-se e cilindrar os seus opressores de dentro. O povo palestiniano não é o Hamas e a prova disso é a quantidade de palestinianos que reconhecem os dirigentes da Fatah como seus líderes e representantes.


Como é a diplomacia portuguesa perante esta deprimente desgraça? Nem magnânima, nem terrível… tirando a mais recente patinagem desastrosa do Presidente da República. Foi na semana passada que, perante as câmaras do mundo, Marcelo Rebelo de Sousa achou apropriado começar uma ligeira discussão com o embaixador da Autoridade Palestiniana sobre quem tinha começado e quem tinha acabado. Lamentável! Triste figura que a República Portuguesa fez aos olhos dos estados do mundo, sob representação do seu Chefe de Estado. Mas também é verdade que o ‘desabafo’ do Professor Marcelo perante as câmaras, dizendo ao diplomata palestiniano que os palestinianos é que iniciaram esta nova etapa de guerra, deverá ter agradado ao complexo militar-industrial dos Estados Unidos que com cobiça na alma espreita do outro lado do Atlântico. Se fosse tão fácil dizer quem é que começou, distribuir a panóplia das culpas e encerrar os diferendos, não teríamos chegado até onde chegámos. Se por um lado se pode argumentar que o Hamas é que reacendeu os fogos da guerra com o ataque terrorista ao Festival Supernova, Israel já tinha lá deixado as achas e as acendalhas com a sua política de colonização e despejo de tantas comunidades palestinianas que ao longo dos anos têm acumulado tantas amarguras e tantos ódios. É com a marginalização, segregação e desprezo que as comunidades se radicalizam e se deixam cegar pelas promessas de glória eterna oferecidas por abutres que nada mais querem desses civis tornados guerrilheiros que sejam carne para canhão. O ciclo de ódio já é tão antigo e complexo nos meandros que já ninguém sabe quem é o quê, e chegará o dia em que já ninguém recorda, enquanto dispara mais um roquete, porque é que foi disparada a primeira bala. 


O conflito só terá um fim quando as organizações terroristas islâmicas desaparecerem do mapa (e se esse dia chegar será um grande dia para a liberdade dos palestinianos e do mundo) e quando haja um governo israelita que ponha termo aos colonatos e permita o pleno estabelecimento do Estado da Palestina. No que concerne a dificílima, complexa e fulcral questão da Cidade de Jerusalém - a questão que tantas vezes tem sido salientada como um problema-chave no conflito -, creio cada vez menos que a resolução passa pela solução de dois estados. E não. Obviamente também não passa por se ceder Jerusalém em exclusividade, a uma nação ou à outra. Mas deixarei uma nova abordagem a este assunto particular para outro dia.


Foi há um mês que, enquanto tantos jovens, no apogeu da sua felicidade, viviam a vida num festival musical, um batalhão de homens enlouquecidos e mentalmente degradados entrou pelo recinto dentro e disparou sobre tudo o que movia. Estes bárbaros do Hamas - também colocando, em simultâneo, um grande alvo nas costas das populações palestinianas -, munidos de metralhadoras e granadas, acharam que seria a vontade de deus abater e destruir pessoas que ainda tinham uma vida pela frente, todos eles desarmados, todos eles sem condições para se defenderem. Uns foram mortos, vivendo os últimos minutos de vida em terror, outros foram sequestrados e ainda são reféns da barbárie. Este texto é também a minha forma de fazer uma homenagem às jovens vítimas da teocracia islâmica.


A guerra tem de terminar. Uma solução tem de ser encontrada para Jerusalém. A Palestina tem de ser libertada e providenciada com território. O fundamentalismo islâmico tem de ser eliminado.


Martes, 15 de Brumário CCXXXII

domingo, 6 de agosto de 2023

A Igreja Católica e o seu Festival de Verão

O que escrevi há cinco meses:

Durante uma semana, no Verão do presente ano, terá lugar na República Portuguesa um evento com uma estrondosa potencialidade de ridículo. Um evento que expõe na luz do dia a elementar megalomania que assombra as consciências das lideranças da Igreja Católica. É também um evento que vem confirmar que as religiões ainda têm muita força, que o Cristianismo ainda tem muita força, e que o Catolicismo em particular ainda tem uma capacidade de influência surpreendente. Pela parte que me toca, nada disto são boas notícias, evidentemente. O nome da efeméride é Jornada Mundial da Juventude (World Youth Day, em inglês, Dies Iuvenum Totius Orbis, em latim), uma aglomeração de milhões de jovens fiéis católicos (também lhes chamam peregrinos, ainda que muitos destes sejam peregrinos voadores, pois viajarão para cá de avião) numa única cidade com o único intuito de se juntarem, escutarem homilias enfadonhas e rezarem. Lisboa será a cidade vitimada este ano, todavia, segundo consta, haverá peregrinações a outros pontos do país, nomeadamente Fátima (obviamente). 


O que me levou a dedicar um texto a esta Jornada Mundial da Juventude - à parte, claro, das polémicas que têm surgido em torno dos dinheiros à volta do evento - foi a própria natureza demográfica da coisa e o facto de ter lugar na minha nação republicana. A grandes e pequenos eventos religiosos (concentremo-nos na Igreja Católica) estou habituado: romarias, procissões, missas, peregrinações. O Santuário de Fátima, por exemplo, é um gerador contínuo e ininterrupto de religiosidade… e receitas financeiras. Mas nesta multitude de eventos religiosos, grosso modo, a demografia presente está nas faixas etárias mais envelhecidas, e com isso eu consigo lidar. Todavia, a JMJ distingue-se da regularidade dos eventos católicos na medida em que, neste evento específico, é a gente nova que detém protagonismo, e gente nova, portanto, que se afirma católica. Quanto aos gastos envolvidos, que chegarão também à bolsa do Estado, uns tantos enervam-se com o facto de haver pessoas a demonstrarem preocupação com isso. Afirma Joana Petiz, no Diário de Notícias, num texto assinado no dia 5 de Fevereiro: «E, no entanto, em vez de nos alegrarmos e puxarmos por um momento que pode verdadeiramente empurrar Portugal para a frente e para cima, concentramo-nos na mesquinhez das contas de mercearia, debatemo-nos na espuma da cada vez mais vazia e suja luta política. (...) O orgulho nacional foi substituído pelo desprezo nacional, o autoelogio pela automaledicência. É triste. E impede-nos de lutar pelo país que devíamos estar a construir e a anunciar ao mundo. O que queremos deixar aos nossos filhos.» Orgulho nacional e contas de mercearia. Para quem tenha ficado atordoado com a citação, passo a clarificar: quando Joana Petiz escreve sobre orgulho nacional, refere-se ao orgulho que é Portugal acolher um evento internacional católico, omitindo, claro, a escassez de orgulho que a Igreja Católica inspirou no passado e no presente (a pedofilia clerical está na ordem do dia) e esquecendo que o orgulho é um dos sete pecados capitais da fé cristã, mas sobre isso ela saberá muito pouco ou nada; quando Joana Petiz escreve sobre hipotéticos milhões de euros a serem queimados neste festival, refere-se a tal como contas de mercearia. A Joana Petiz deve estar cheia de dinheiro para milhões lhe equivalerem a «contas de mercearia». Na cúpula de tudo isto, Joana Petiz demonstra não compreender aquilo que discute - um evento internacional católico, no âmago da sua razão de ser e dentro daquilo que são as lógicas da universalidade da Igreja Católica (afinal, católico é um termo sinónimo de universal), não serve para engrandecer o estatuto daquele país ou daqueloutra cidade. Enquanto Igreja que é transnacional e pluricontinental, os eventos internacionais da fé cristã católica são fenómenos que servem somente para engrandecer a Igreja, Jesus Cristo e o deus que veneram. Isto sei eu que não sou católico nem cristão, ao contrário da Joana Petiz. Para quem achou excessivo o estilo da contra-argumentação que eu lancei à postura desta cronista, eu peço a devida licença e sublinho que já há bastante tempo que a tinha atravessada.


Cinco meses volvidos:


Os dois primeiros parágrafos deste texto foram escritos há cinco meses. Nos últimos cinco meses esperei para ver o que acontecia e de que forma a concretização da realidade coincidia com a mensagem que eu procurava transmitir. Procurava ir digerindo a sucessão de acontecimentos e apalpar a ambiência societal que nos circunda. Agora escrevo durante a realização da JMJ e a realidade aí se afigura tão irónica mas também tão desgraçada. Temos aí o ridículo e temos aí a hipocrisia. Peguem no comando da televisão e metam na transmissão de um qualquer noticiário, e verifiquem se observam o mesmo que eu. Tentem ver muito para lá do Papa Francisco e da sua recta postura institucional e humanitária. Um aspecto em que me equivoquei, quando escrevi os dois primeiros parágrafos há cinco meses, foi que os jovens católicos vinham no «intuito de se juntarem, escutarem homilias enfadonhas e rezarem.» Afinal o intuito não era só esse. Aliás, em retrospectiva, as rezas e as missas são uma parte menor de todo o festival. Em paralelo com os espectáculos de 'música' electrónica, produzidos pelos DJ (pelo menos um deles é padre), onde jovens e magotes de freiras pulam e dançam, em paralelo, também, com as participações e depoimentos de bispos e políticos em uníssono, a JMJ está a ser um evento catalisador de desordem pública e comportamentos ridículos. Que seja vista a forma como quadrilhas inteiras de juventude católica se tem comportado não só dentro dos comboios metropolitanos de Lisboa - fazendo barulho sem fim e executando números que tiram a paz e o sossego a quem quer ter uma simples viagem de metro (no Japão, por exemplo, aquelas macacadas não seriam toleradas) - e também aquando da transposição das barreiras do metro, como nos têm mostrado vídeos que foram gravados a documentar estes comportamentos para registo histórico. Como nos mostra um vídeo, filas paralelas destas pessoas furam pelas barreiras, sem passarem cartão, desrespeitando o serviço público de transportes e causando estorvo ao transeunte comum. Em Lisboa isto chama-se passar à pica. Mas neste caso não são um nem dois, são dezenas deles, católicos de confissão e cristãos de acção (dizem… )


Antes de voltar às vicissitudes de hipocrisia e contradição que dominam a mentalidade da JMJ, gostaria de falar da parte política e económica que assiste toda esta problemática. Em primeiro lugar, à semelhança da cronista Joana Petiz, Carlos Moedas, autarca do Município de Lisboa, também não tem a mínima noção dos fundamentos universalistas que assistem o Cristianismo e que assistiram a instituição das Jornadas Mundiais da Juventude, em 1985, com a assinatura do Papa João Paulo II. Mais nada fala o indivíduo que não seja a projecção de Lisboa para o mundo e a instituição de Lisboa como capital mundial da juventude. É banalidade atrás de banalidade e politiquice atrás de politiquice. Se elegermos levar a sério os fundamentos que são a raiz da instituição das JMJ, estes não têm que ver com a elevação da urbe para onde a peregrinação irá confluir mas sim com o alcançar de uma experiência espiritual colectiva e multicultural e a colocação da juventude no centro da reflexão religiosa do Catolicismo. Ainda que se diga católico, Moedas percebe muito pouco daquilo que se passa com a sua cegueira na sua preciosa cidade (cidade essa que é o nosso eucalipto nacional, pois seca tudo à volta) e comete o pecado de meter o nacional e provinciano à frente dos alegados propósitos universalistas, religiosos e espirituais, desta enorme peregrinação.


Quanto ao Presidente da República e ao Governo, e a todos os deputados complacentes, para eles a Constituição só deve ser respeitada quando é conveniente. A JMJ acontece em plena circunstância de inconstitucionalidade, e tal não se deve, obviamente, à realização da própria peregrinação em território nacional - o artigo 41 da Constituição da República assegura a liberdade de culto e a liberdade religiosa, estando tal evidente nas alíneas 1, 2 e 4 - mas deve-se sim ao oficial envolvimento do Estado e dos Órgãos de Soberania no desenrolar da efeméride. Isso sim é inconstitucional. O artigo 41 assegura a legalidade da liberdade religiosa dentro da República Portuguesa, mas a alínea 4 deste artigo contém uma passagem fundamental para aquilo que eu aqui discuto: "As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado (...)". Em nenhum ponto da Constituição surge reconhecido o divino e o transcendente. Em nenhum ponto da Constituição o Catolicismo é afirmado como a religião oficial do Estado. O Estado é laico, isto é, não tem religião, isto é, o Estado e os Órgãos de Soberania tem de ter total imparcialidade perante todas as religiões e formas de espiritualidade, não só porque o Estado é laico mas também porque é assegurada a liberdade a todas as formas de culto religioso. Todas as religiões, perante a Constituição, estão no mesmo plano de igualdade perante o Estado e a Lei e perante elas o Estado não apresenta qualquer religião, nem a Lei apresenta quaisquer directrizes religiosas. Tudo o que sucede contrário a isto encontra-se em situação ilegal e inconstitucional. O Governo, o Presidente da República e a Câmara Municipal de Lisboa estão a agir contra a Constituição e contra a legalidade democrática. Um leitor mais desinformado ou um leitor de postura mais cínica poderia perguntar "então e de que forma é que os Órgãos de Soberania estão em tão severa situação inconstitucional?"


Se o Estado é laico e imparcial perante todas as religiões, então o Estado não pode participar com dinheiros públicos na contribuição para a realização de eventos religiosos - a JMJ, por exemplo. Mas a verdade é que só a Câmara Municipal de Lisboa já empreendeu cerca de 40 milhões de euros a respeito da JMJ. Dinheiros camarários são dinheiros públicos, e portanto dinheiro do Estado, e portanto dinheiro dos contribuintes. Se já é gritante ver o Presidente da República a comportar-se como um mero devoto perante o papa e a efeméride católica, quebrando absolutamente o princípio de neutralidade religiosa do Estado enquanto seu representante máximo, não se comportando como o Chefe de Estado que devia ser, ainda mais gritante é ver dinheiros públicos canalizados em festins religiosos. Mas quase ninguém quer saber disto. Faz parte da trilogia da ditadura que ainda tanto molda as mentalidades portuguesas: Fado, Football e Fátima. A Constituição é violada, os cães (como eu) ladram, mas a caravana passa.


Voltando à vergonha alheia, ao ridículo e à hipocrisia, há tanto mais para pegar. É um autêntico laboratório de dissecação das contradições de uma pretensa religião da paz e do amor. Podemos pegar, como já dissertei, na desordem pública e na eventual excessiva criação de lixo. Podemos pegar no cartaz que foi exposto no Município de Oeiras, baluarte do antigo presidiário Isaltino Morais, no qual aparecia o número 4800. Era um cartaz escrito em inglês que chamava a atenção do público internacional para os achados da comissão independente que foi incumbida de investigar o histórico das últimas décadas de abuso sexual de crianças e jovens por clérigos da Igreja Católica. O número a que essa comissão chegou foi a cerca de 4800 crianças nas últimas décadas, e sabemos que estes números ficam sempre aquém da realidade. Este achado fez manchete nos jornais internacionais. Mas o executivo camarário de Isaltino Morais achou por bem - deverão ser estes os tais portugueses de bem de que fala o outro - 'limpar' a paisagem urbana, pois factualidade tão grosseira só poderia afligir as sensibilidades dos jovens católicos e do seu Clero, e assim se praticou um exercício de censura em Portugal do Século XXI. Por caminhos apertados e à margem do Estado de Direito o cartaz foi retirado do outdoor. Podemos também pegar no incidente que há poucos dias sucedeu, no Parque Eduardo VII, em plena luz do dia e no meio de uma multidão católica, no qual um jovem português, empunhando uma bandeira arco-íris - símbolo da Comunidade LGBTQ a nível mundial - foi abordado por um conjunto de outros jovens estrangeiros que pretendiam barrar-lhe a circulação e retirar-lhe a bandeira, gerando-se no local uma discussão conduzida no idioma inglês. Também um destes dias se celebrava uma eucaristia dirigida a pessoas LGBTQ, no pretenso âmbito inclusivo da JMJ, quando a cerimónia presidida por um padre católico foi invadida por um grupo de católicos fanáticos (também estes peregrinos da JMJ) que afirmavam ir expiar pecados mortais. A PSP foi inclusive chamada ao local. E por mais que o Papa Francisco fale sobre inclusão e superação do ódio, é perceptível que muitas ovelhas do rebanho estão furiosas com esta nova tentativa de inclusão no seio da Igreja, e este descontentamento é encontrado nos fiéis comuns mas também em bispos, arcebispos e cardeais. E se a Igreja Católica é composta pelo todo dos seus crentes e clérigos, então não será um Sumo Pontífice bem intencionado que vai alterar permanentemente as mentalidades. As mentalidades poderão progredir, mas o caminho ainda será custoso.


Será legítimo para qualquer leitor deste texto presumir que a minha posição filosófica de análise assenta numa mentalidade asceta. Afinal, eu já ironizei a propósito de festins de DJ com a participação de fiéis e membros do clero. Também podia ironizar a propósito das noites boémias dos jovens peregrinos, quer seja noites repletas de copos ou noites floreados por sexo heterossexual ou homossexual (não tenham dúvidas que as noites boémias da JMJ também tem disto). No final de contas eu podia ser aqui visto como um asceta conservador que com maus olhos vê as incursões hedonistas da juventude. O problema com essa hipotética análise é que eu próprio sou um hedonista (ainda que bastante moderado nos dias que correm) e portanto nunca poderia criticar o hedonismo dos outros. Onde eu quero chegar é precisamente à hipocrisia da massa católica. Tanta coisa com o pecado, a moderação, a espiritualidade, a introspecção, as orações, o modo de vida asceta para se ascender ao Reino Celeste, tanta coisa com tanto dogma católico e no final de contas, em larga medida, a JMJ é nada mais que o Festival de Verão da Igreja Católica onde a malta de junta para a diversão.


As questões que faltam colocar são as seguintes: em que dimensão é que esta peregrinação mundial à capital portuguesa contribuiu para a reflexão sobre o significado e o sentido da religiosidade? Para que serve rezar? Para que serve ter fé na existência de deus? Em que dimensão é que esta peregrinação contribuiu para a reflexão sobre os erros passados e presentes da Igreja Católica? Que oportunidades de reflexão é que este evento gerou sobre a forma como os agnósticos e os ateus críticos das religiões (como eu) podem interpretar e compreender este fenómeno histórico que é a Igreja Católica? Será que a elevada participação da juventude nesta peregrinação católica significa que a Cristandade tem um grande futuro? Ou será que um dia estes jovens despertarão da ilusão e se aperceberão que não há deus que nos valha e que a concretização de um futuro próspero e feliz depende do ser humano? Quantos destes jovens acreditam se quer em deus e na vida celeste (ou infernal) depois da vida terrena? Tudo isto são interrogações muito válidas. Interrogações que estão ausentes do repertório de perguntas e pedidos de esclarecimento que estes dias têm assistido a comunicação social.


Para os Media têm sido dias luminosos e esplendorosos. Foram dias de pureza e sensatez para a maioria dos jornalistas de televisão que têm acompanhado a JMJ. Fossem jovens activistas marxistas ou ambientalistas a protagonizar certos comportamentos e atitudes primários e desordeiros, estava a comunicação social em bloco a chamar a atenção das massas para a decadência e a falta de civismo da juventude radical. Aliás, nem precisariam de ser jovens politizados. Durante a época da pandemia e do confinamento, qualquer foco de propagação do vírus ou qualquer incidente de desordem era logo interpretado pela classe jornalística como mais um episódio de ignóbil e irresponsável anarquia juvenil. Mas nestes dias não tem sido assim. Como se trata de juventude de igreja está tudo bem. É tudo boa gente que nem se quer parte um prato.


Bem sei que qualquer pessoa razoável poderá classificar este texto como excessivo, agreste, negativista, arrogante, ácido nas palavras e injusto nas considerações. Estaria eu disposto a diminuir o volume destes elementos não fossem a opinião pública e as posições da imprensa nacional tão monolíticas. Quase que nos temos de contentar à força com a JMJ e a participação financeira do Estado no festival, não podendo haver dissidência perante uma invisível linha oficial conjunta da República e da Santa Sé. Como se explica que da noite para o dia o histórico e actual fenómeno criminoso de abuso sexual de crianças por parte de clérigos da Igreja Católica tenha sido empurrado para o desterro da amnésia colectiva? E ai de quem respingue e faça disso assunto público enquanto o Papa e demais altas sumidades se encontram em território nacional! Como vimos acontecer, quem isso tentar é tratado como um dissidente e é mandado calar. E no meio de tanta conversa sobre universalidade, multiculturalismo, inclusão, amor, a Igreja Católica continua como sendo uma força reaccionária que se propõe a condicionar a liberdade social e a atordoar o ímpeto da Luta de Classes. Os exemplos são muitos: a Igreja está contra a interrupção voluntária da gravidez; está contra a eutanásia; está contra a emancipação feminina dentro (e fora, por vezes) da Igreja; tem múltiplos discursos em simultâneo relativamente à homossoxualidade, sendo que se por um lado afirma querer acolher e incluir por outro lado mantém a narrativa do pecado e do vício decadente, que tudo o que faz é criar estigmas e situações de discriminação, e recusando reconher teologicamente casamentos entre pessoas do mesmo sexo; a Igreja ainda hoje olha com elevada desconfiança para a luta sindical e ao fortalecimento da Segurança Social por parte do Estado, em oposição à caridade e à esmola da Igreja. Se houve entidade na História de Portugal que mais semeou esta eterna paciência resignada e passiva do povo português, a Igreja Católica está na primeira linha, e sempre que essa paciência se converteu em revolta e acção revolucionária lá estava a Igreja para abafar a transformação e o progresso. Foi a Igreja que esteve ao lado de Castela durante a crise dinástica de 1383-85, em oposição às massas populares e ao Mestre de Avis. Foi a Igreja que apoiou a tomada do trono português pelo Rei de Espanha Filipe II em 1581. Foi a Igreja que se colocou no caminho do Marquês de Pombal quando este se apresentou para modernizar Portugal no terceiro quartel do Século XVIII. Foi a Igreja que se colocou na vanguarda do terror miguelista que deu origem a uma sangrenta Guerra Civil (1832-34), opondo-se portanto ao regime constitucional e à construção de uma nação livre. Foi a Igreja que se apresentou para derrubar a I República (1910-26) e foi a Igreja que prestou apoio social e político de primeira importância à ditadura criada pelos militares e Oliveira Salazar. Só com o Concílio do Vaticano II dos anos 60 é que a Igreja Católica começou de facto a mudar muitas das suas mentalidades e modos de operação. Foi só nesse concílio ecuménico que a Igreja Católica levantou o anátema contra o povo judaico, que até então se encontrava sob acusação colectiva de deicídio. Mais vale tarde do que nunca…  


É por isto e muito mais que eu não confio na Igreja Católica e olho com grande desconfiança para a JMJ, especialmente se tivermos em conta as circunstâncias em que esta jornada sucede. Nada tenho contra o mais comum dos jovens que tenha optado por participar nesta peregrinação. Como já escrevi e afirmei tantas vezes, nada tenho contra os católicos praticantes: a minha mãe, a minha avó materna e a minha tia Ana, pessoas que eu amo com todo o meu coração, são mulheres católicas, muito ligadas à Igreja, sem por isso serem, todavia, mulheres com consciência de classe. Foram várias as pessoas na minha vida que sendo católicas são pessoas muito importantes. Na minha demanda não é contra os religiosos que me apresento mas sim contra a estrutura e altas hierarquias que passam sentenças sobre aquilo que é correcto e aquilo que é errado, e passam-nas não com base em filosofia ética mas sim tendo por base pústulas de épocas obscurantistas quando ainda não conseguíamos definir o relâmpago. Apresento-me contra a mentalidade e a ideologia, e não contra as pessoas, com excepção daquelas que activamente propagam o ódio e a discriminação. E o que dizer de deus? O que dizer da Santíssima Trindade, que é o divino em três planos de existência: o pai, o filho e o espírito santo? O que dizer a esta juventude que foi convencida que procurando o divino encontrará a paz interior e a força para tornar este mundo um lugar melhor? É começar por dizer que deus não existe nem nunca existiu. É dizer que o transcendente e o numinoso são ficções (de grande peso cultural, sublinho) criadas há milénios para arregimentar as massas ingovernáveis. Basta dizer-lhes que quando se juntam e rezam numa missa nada os ouve porque nada há para além disto que temos enquanto estamos com os olhos abertos.



18 de Termidor CCXXXI

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Um regulamento a favor do fogo

Aproxima-se o Verão, e com o Verão virá uma das endémicas pragas que assolam Portugal: o fenómeno incendiário [para mais referências minhas sobre esta questão, ver o texto Verão em chamas, publicado neste blog no ano anterior]. É na sequência deste facto que eu partilho o seguinte texto, com o mesmo título desta minha publicação. Um regulamento a favor do fogo foi um texto publicado anonimamente por José Saramago, na edição do Diário de Lisboa de 12 de Junho de 1972, no qual está patente uma preocupação grave que já na época havia com os incêndios portugueses. A razão principal de eu partilhar este texto é para chamar a atenção para um facto no qual eu insisto sempre que, por qualquer motivo, se discute a questão dos incêndios: não é só de hoje ou de há 10 anos que a governação e a sociedade gerem de forma errónea este conflito entre o fogo e os humanos, em Portugal, e não é só de hoje ou de há 10 anos que os incêndios de Verão, em Portugal, levam o território a eito, destruindo, queimando, matando. Já nos [para alguns] saudosos tempos da Ditadura os incêndios eram uma calamidade tão devastadora como é hoje, havendo, contudo, algumas diferenças de um tempo para outro. Naquela época, por exemplo, o regime não estava interessado em fazer registos, levantar dados e elaborar estatísticas, e tampouco estava para se maçar com canalização de fundos para apoiar logística e tecnologicamente as corporações de bombeiros. Não havendo recolha de dados e elaboração de estatísticas, o desenvolvimento de estudos era impossível, tornando, portanto, impossível uma melhor compreensão sobre a natureza deste fenómeno e como o combater, e não havendo apoios - à semelhança de hoje, provavelmente - os bombeiros estavam mais ou menos entregues à sua sorte. Também não havia o menor esforço para coordenar a actividade dos bombeiros com as demais instâncias da sociedade portuguesa cuja tarefa também passaria pela prevenção e combate dos incêndios. É com o objectivo de relembrar o fenómeno que se aproxima com o passar dos dias, e é com o objectivo de recordar que este triste fenómeno já é muito antigo no tempo histórico [não sendo, portanto, uma solitária culpa do actual (des)Governo], que eu partilho este texto de uma lucidez brilhante, como é costume em Saramago.


Quanto à natureza do texto em si, eu retirei-o directamente do livro Os apontamentos [Saramago, José (2014). Os apontamentos (5ª Ed.). Lisboa: Porto Editora, p. 54-55.] - uma compilação de artigos, sendo que a primeira parte diz respeito aos artigos que foram publicados anonimamente no Diário de Lisboa entre 1972 e 1973, e que só depois se soube que o autor desses textos fora José Saramago, e a segunda parte concerne os artigos que José Saramago assinou no Diário de Notícias durante o PREC, em 1975, na qualidade de sub-director do jornal. Em nome da defesa da identidade da Língua Portuguesa, tomei a liberdade de aqui citar o texto consoante a ortografia do Português de lei, isto é, a anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 e que desde há alguns anos é o que vigora oficialmente. O abuso de alteração da ortografia do texto editado pela Porto Editora, está, todavia, em consonância com a ortografia que José Saramago usava em 1972, à semelhança de todo o povo português alfabetizado, e que o escritor sempre haveria de usar até à sua morte no ano 2010, de acordo com o Calendário Gregoriano. Segue então o magistral texto que retrata uma realidade tão ridícula e tão aflitiva:


"Com a chegada do Verão, destes grandes calores que tornaram as matas e os pinhais inflamáveis como estopa, é certo e sabido que começam por esse país fora os incêndios. Devoram as encostas das serras, deixam-nas negras, despidas, terras de desolação onde, por muitos anos, se erguerão apenas os troncos queimados. Neste tempo se levantam inúmeras vozes a pedir protecção para o nosso património florestal, já de si tão escasso. A vulnerabilidade das nossas matas, se bem pensamos nela, é, a toda a hora, um convite à ruína total. Depois o tempo refresca, vem a chuva, adia-se a catástrofe para o ano.


Na falta de um sistema de defesa eficiente, conta-se sempre com a dedicação e a ousadia das populações que, mal se ouve o sinal de fogo, correm montes e vales, gritando, ofegando, para irem atacar o incêndio, sem curarem de saber a quem pertencem as árvores que as chamas vão furiosamente destruindo. Acudir ao fogo é obrigação cívica a que ninguém foge, e não têm sido poucos os actos de grande coragem praticados nessas ocasiões, com total desinteresse, pois ninguém pensa em apresentar depois a factura dos serviços prestados. Também não há veneras nem condecorações: estes episódios passam-se em serranias anónimas, longe das vistas da grande publicidade.


Já os incêndios começaram a sua tarefa e, lá para diante, não se passará um dia sem que o inferno lavre num ponto qualquer do País. E tudo será como de costume, e repetir-se-ão casos como este de que hoje falamos, acontecido numa povoação chamada Bogas de Baixo, próxima do Fundão. Ali, os sinos da igreja chamaram os habitantes ao combate. E foram todos, os novos e os velhos, as mulheres e as crianças. Fazia vento, e, como sempre acontece nessas circunstâncias, o fogo saltava de árvore em árvore, propagando-se pelas ramadas superiores, inutilizando os trabalhos no chão. Diante da ameaça cada vez maior, telefonou-se para as povoações em redor e mais pessoas acorreram ao fogo, animando-se umas às outras, usando uma experiência já antiga, vinda de gerações. Por fim conseguiu-se travar o alastramento do incêndio. O desastre não foi total.


E os bombeiros? Após algumas dificuldades de comunicação, e graças à intervenção de terceiras pessoas, foi possível chamar os da vila próxima. Também se recorreu aos serviços dos bombeiros de outra vila, a de Oleiros, mas o comandante destes disse que «não podia mandar deslocar os seus homens para concelho diferente, sem que o comandante dos bombeiros do concelho onde havia o sinistro os requisitasse». Segundo a fonte onde colhemos estas informações, o comandante de Oleiros mostrou-se «muito compreensivo», chegando a oferecer-se para um entendimento com o Fundão. Ficaram os combatentes voluntários e paisanos à espera do que viesse, mas nada se conseguiu. Enquanto os pinheiros de Bogas de Cima ardiam, enquanto as gentes da terra se afadigavam a lutar por bens que só a poucos pertenciam, um artigo de regulamento impedia o auxílio que deveria poder ser dado por uma corporação de bombeiros, mas que não foi porque o concelho era outro…


Estranhos casos se passam em Portugal! Muito mais estranhos ainda quando nos lembramos de que, durante a recente visita do presidente do Conselho a Castelo Branco, um dos mais brilhantes números dos festejos foi um longuíssimo desfile de bombeiros, com dezenas de viaturas. Vindos de muitos quilómetros e concelhos em redor… E não havia fogo."



Lues, 16 de Prairial CCXXXI