No momento em que começo a escrever este texto, termino a visualização do debate entre André Ventura e Mariana Mortágua para as eleições legislativas. Representam, de certa forma, a antítese e a tese, respectivamente, do meu pensamento político na actual vida política portuguesa. Dois debatentes experientes com estilos diferentes, dois comunicadores eficientes com mensagens muito distintas. Este debate (e qualquer outro debate promovido pelas televisões) está muito longe de ser óptimo. 15 minutos para cada debatente é muito pouco. A falta de uma moderação presente e informada também prejudica o desenvolvimento e aproveitamento intelectual do debate. A falta de imaginação para as perguntas principais colocadas aos intervenientes também auxilia a alienar o português comum da política. Muitas vezes torna o debate aborrecido e esvaziado de interesse.
Neste debate, André Ventura prosseguiu a estratégia do costume, a mesma estratégia que ele aprendeu com os seus amigos Rui Gomes da Silva e Pedro Guerra e que com tanta entrega desenvolveu naqueles debates horríveis sobre football na televisão do Correio da Manhã. Foi aqui que o André criou o Ventura. Foi aqui que o Cofina lhe deu palco e tempo para ele criar seguidores e admiradores e foi aqui que André Ventura desenvolveu a sua personalidade política incendiária, paranoica e histérica. Não creio que André Ventura acredite em muito do que diz. O conteúdo da sua tese de doutoramento - em matéria do código penal e em matéria da relação entre a polícia e as minorias - contradiz imenso o que está estipulado no programa político do partido de Ventura. Contradiz aquilo que Ventura pela sua própria voz defende. Porque afirmaria Ventura todas estas enormidades? Quais enormidades, muitos poderão inquirir: todas aquelas em que Ventura procura grupos sociais específicos e usa-os como bode expiatório para justificar os males da sociedade portuguesa. Defende o Chega que o problema são os dependentes de subsídios quando os subsídios existem para manter tantas famílias acima da linha de pobreza. Defende o Chega que o problema são os ciganos quando esta etnia representa uma ínfima fatia da população portuguesa. Defende o Chega que o problema está em exportarmos da China, da Índia, do Paquistão, do Bangladesh, quando estes países juntos, como explicou Mortágua no debate, não representam juntos 7% das importações portuguesas. 75% das importações portuguesas já são feitas dentro da União Europeia. Diz o Chega que temos de defender a soberania portuguesa, mas por outro lado afirma que é excelente Portugal arregimentar-se nas fileiras dos interesses norte-americanos e que também está óptimo o estado português não possuir a companhia de energia que abastece tantas casas portuguesas. Diz o Chega que quer resolver o triste problema da habitação em Portugal mas não apresenta nenhuma solução. Diz sim à carta branca para os grandes negócios continuarem a controlar a habitação desta nação e nem quer ouvir falar de uma proposta tão normal como aplicar tectos às rendas. Mas porque haveria de Ventura defender tanta coisa em que não acredita?
Ventura, como tantos outros, infelizmente, ao longo dos tempos, não está na política para fazer reformas na nossa sociedade nem para tornar a República Portuguesa mais livre e próspera. Ventura está na política porque quer servir os seus próprios interesses, quer poder, quer deter controlo sobre as pessoas, e para tal tem de também servir os interesses capitalistas daqueles que o têm ajudado a crescer, e também tem de servir os interesses dos Estados Unidos do outro lado do Atlântico que procuram a miséria da Europa. Ventura admira a agenda política de Donald Trump e do complexo militar-industrial que o sustenta politicamente. Nenhum internacionalista ou nacionalista na Europa que se preze e que seja íntegro nos seus príncipios pode admirar o movimento trumpista. Como pode Ventura afirmar-se como patriota quando defende a agenda de um governante que procura atingir seriamente os europeus? Ventura e o seu partido para além de estarem contra aquilo que nesta república se construiu nos últimos 51 anos também não estão a favor da soberania portuguesa ou da prosperidade e liberdade na Europa.
A tragédia que coroa todo este filme dos horrores é que um milhão de portugueses são capazes de assistir a um debate em que André Ventura participa e deixarem-se enganar pelos slogans e pelos sound bites. Um milhão de portugueses são capazes de se deixar inspirar pela postura jocosa, trocista e berrante de um homem que nada disto leva a sério. Todas as tácticas de desestabilização e provocação, no decorrer do debate, são uma evidência da má fé de Ventura e da estrutura psicológica de um homem inseguro de si e do seu programa político. Mais de metade do trabalho de Ventura enquanto comunicador é a ofensa, o grito, as comparações injustas e a enunciação de máximas enquanto esconde o conteúdo concreto que vem no programa, programa esse que só é lido pela elite do partido, e só a elite sabe para que direcção é que o barco ruma.
Mariana Mortágua demonstrou estar à altura de Ventura. Não cedeu às pressões e manteve-se sempre firme e psicologicamente estável face às provocações e interrupções constantes do seu adversário. Devo até dizer que Mortágua, neste debate, defrontou Ventura como poucos fizeram até agora. Recordo-me de já há algum tempo Miguel Sousa Tavares ter demonstrado tenacidade e destreza semelhantes face às provocações e à argumentação reaccionária do líder do Chega, num debate que teve lugar na TVI. Mortágua brilhou, inclusive, quando Ventura a provocou afirmando que ela - uma mulher com um doutoramento em economia pela Universidade de Londres - não percebe nada de economia, e Mortágua, em resposta, quase que lhe fez um desenho usando legos para explicar a Ventura a realidade das importações da República Portuguesa. Já no debate com o secretário-geral do Partido Comunista, Ventura usou a mesma provocação afirmando que Paulo Raimundo também não percebe nada de economia. Admiro a compostura de Mortágua e Raimundo face às provocações torpes e imundas de Ventura. Será pertinente assinalar que Ventura só se atreve a fazer estes números em televisão porque está num debate muito controlado a nível de rumo e de tempo. Igualmente pertinente será afirmar que o que Ventura procura em usar esta retórica em televisão nacional é descredibilizar os candidatos políticos da Esquerda ante o eleitorado e ligar o ideário socialista, no que concerne a economia, a ignorância e incompetência intelectual, fazendo do pensamento capitalista o único caminho viável e inteligente. É um caso clássico da falácia ad hominem (com mais outras falácias à mistura). É dever de qualquer moderador responsável desmascarar o debatente que usa este tipo de tácticas desonestas em debate. Também é dever do debatente opositor não deixar que indivíduos do calibre de André Ventura escapem com estas falácias. A oposição ao Chega precisa de reagir mais, estar mais alerta, ser mais enérgica e, sem fazer recurso a falácias, demonstrar um grau equivalente de frieza que Ventura demonstra nos debates em que participa. Ventura acusa os seus adversários de responsabilidade sobre todas as calamidades imagináveis. Naquilo em que o adversário de Ventura precisa de se concentrar é demonstrar às pessoas, com eficácia, que André Ventura é um aldrabão num partido de aldrabões.
Não é segredo nenhum que eu admiro a coordenadora nacional do Bloco de Esquerda e também não faço segredo de que será no Bloco de Esquerda onde eu depositarei o meu voto. Faço-o por pura convicção e puro alinhamento ideológico, pois sei que no distrito onde votarei o BE não tem a mínima hipótese de eleger um único deputado. Mas também devo dizer que a minha convicção se encontra algo abalada. Foi a controvérsia das grávidas e têm sido as dissidências sistemáticas para fora da organização que primeiramente me abalaram a convicção, mas não ficou por aqui. O regresso de Francisco Louçã, Luís Fazenda e Fernando Rosas à luta política nas fileiras do BE podem ser excitantes, podem trazer muita força e experiência à campanha e podem apelar à nostalgia daqueles, como eu, que cresceram ainda no tempo em que Louçã era o coordenador nacional, desempenhando suas funções com excelência. Mas tal não significará também que as novas gerações falharam em manter o BE, enquanto projecto político, íntegro aos seus princípios fundacionais? Tal não poderá sugerir também um certo grau de desespero por parte dos decisores do partido? Não me interpretem mal! Considero excelente Francisco Louçã ser cabeça de lista por Braga, Luís Fazenda por Aveiro e Fernando Rosas por Leiria. Tenho grande estima por estes três homens. São três dos quatro fundadores do BE (falta-nos Miguel Portas), foram eles que no passado permitiram que um projecto político nacional como o BE fosse possível. Mas não será este recurso às velhas guardas um sinal de desespero perante a hecatombe que talvez se aproxima? Uma pergunta em aberto.
Se por ventura um apoiante do Chega ler este texto e se indignar ante o meu discurso altamente antagónico relativamente ao Chega e o seu líder supremo, eu farei uso das próximas linhas para deixar claro, mais uma vez, porque é que eu não dou tréguas ao projecto político do Chega. Este partido usa como alvo grupos sociais com base em etnias para explicar os defeitos da nossa sociedade, quando estes representam uma pequena parte da nossa demografia. Este partido quer minguar o Estado ainda mais. Não quer nacionalizar os CTT, nem a EDP, nem a REN, e, provavelmente, procura ainda mais privatizações, embora ainda não falem nisso. Antevejo um partido como o Chega querer privatizar a Caixa Geral de Depósitos, a RTP ou a Museus e Monumentos de Portugal. Na senda da diminuição do Estado, este partido procura cortar nos apoios sociais e procura também encontrar novas alternativas que substituam o Serviço Nacional de Saúde e a Escola Pública. Este partido quer esvaziar o Estado das suas responsabilidades socioeconómicas e reforçar o pulso do poder político nas forças policiais. O Chega não procura melhores condições laborais para os polícias mas antes procura a sua vassalagem. Este é um partido que procura pulverizar (ainda que não falem muito disso, por enquanto) a lei de separação entre Estado e Igreja. Este é um partido que quer instituir - à semelhança da Iniciativa Liberal - apenas dois escalões de tributação do IRS, com as consequências que isso importe para o Estado de Providência. O Chega procura também anular milhares de casamentos na República Portuguesa, entre os quais o meu casamento com o meu marido Filipe. Porquê? Porque o Chega é contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Depois de enumerar tudo isto, o que é que os seguidores do Chega estão à espera? Ouvir palavras amigas? Simpatia? Tréguas? Não, senhor. O Chega procura a desgraça da Europa e vender-nos aos Estados Unidos de Trump. O Chega procura fazer de Portugal uma segunda Hungria na União Europeia. André Ventura é a pior coisa que aconteceu a Portugal desde que Aníbal Cavaco Silva foi indigitado primeiro-ministro em 1985.
Nestas eleições legislativas há duas coisas que importam: a queda do Chega e o crescimento da Esquerda no Parlamento. Só assim está assegurada a integridade do Estado. Caso contrário, o Estado será continuamente esvaziado e a liberdade e prosperidade da República Portuguesa estarão comprometidas.
3 de Floreal CCXXXIII