sábado, 18 de janeiro de 2025

O Perigoso Caso da Gronelândia

A Gronelândia é uma das nações mais fascinantes, interessantes e apelativas para o meu imaginário. Há qualquer coisa de acolhedor, misterioso e reconfortante num país com cerca de 56 mil habitantes e cuja maior parte do território se encontra congelado. Um terço da população vive na capital Nuque (Nuuk na grafia gronelandesa), que é uma das urbes com o clima ‘menos frio’ do país. As pescas, o mar e a extracção de recursos naturais são os principais motores da economia gronelandesa. Quase toda a população vive nas zonas costeiras devido ao clima inóspito e gelado no interior e no norte. Em Dezembro é quase sempre noite e em Junho é quase sempre dia. Afinal, a Gronelândia, terra situada já dentro do Círculo Polar Ártico, está a uma distância próxima do Pólo Norte (que se situa no Oceano Glacial Ártico, a norte do país). Não existe nação na generalidade mais fria que a Gronelândia. 

Na capital existe a Universidade da Gronelândia com dezenas de docentes e centenas de pessoal administrativo e alunos, oferecendo cursos de licenciatura, mestrado e doutoramento em variadas áreas, desde as humanidades, ao direito e à medicina. Dividida em cinco municípios (apesar de ser uma área territorial superior a dois milhões de quilómetros quadrados, são apenas cinco porque a densidade populacional é extremamente baixa), a Gronelândia tem o seu próprio governo, chefiado por um primeiro-ministro, tem o seu próprio parlamento (unicameral) e o seu próprio sistema judicial. Todavia, como nas últimas semanas tem vindo a ser do conhecimento do público, a Gronelândia não é um estado soberano e independente. 


Ainda que tenha condição de nacionalidade e país autónomo, a Gronelândia pertence ao Reino da Dinamarca. A Gronelândia não é a Dinamarca (país escandinavo com metade do tamanho de Portugal em área), os gronelandeses não são dinamarqueses, mas a Gronelândia é, efectivamente, um território autónomo do estado dinamarquês. A Dinamarca reconhece aos gronelandeses o estatuto de nacionalidade; reconhece o gronelandês como idioma oficial na ilha (a maior ilha do mundo, por acaso), a par com o dinamarquês; os cidadãos gronelandeses, para além de serem cidadãos dinamarqueses, são também cidadãos da União Europeia; os órgãos do poder político gronelandês têm um elevado grau de autonomia; os cidadãos gronelandeses têm o direito de eleger dois deputados para o Parlamento da Dinamarca; e todos os anos, no orçamento de estado do Reino da Dinamarca, estão previstas milhões de coroas (moeda da Dinamarca, Gronelândia e Ilhas Faroé) para sustentar e financiar a Gronelândia. Escusado será dizer que o Rei da Dinamarca é também soberano da Gronelândia. 


Portanto, a relação que existe entre a Dinamarca e a Gronelândia é semelhante à relação que Portugal Continental tem com os arquipélagos da Madeira e dos Açores, com a diferença dos gronelandeses serem uma nacionalidade à parte, com uma língua própria, e com um grau de autonomia um pouco mais elevado. O representante do Rei na Gronelândia é o Alto Comissário da mesma forma que a Madeira e os Açores também têm Representantes da República. Eis então um sintético perfil de uma das nações que mais me tem fascinado nos últimos quinze anos e que, para grande transtorno dos gronelandeses e meu, se encontra agora numa situação política surreal e medonha. 


A História da Gronelândia, sendo muito pouco conhecida dos portugueses e tendo um peso insignificante na historiografia portuguesa, é muito interessante e ligeiramente complexa. O povo inuíte da Gronelândia (muitas vezes referidos como esquimós) habita a ilha há milhares de anos, tendo para aí migrado, durante uma glaciação, pelo actual Canadá. De acordo com as sagas nórdicas, no final do século X, durante a Idade dos Víquingues, marinheiros e guerreiros - liderados por Erik, o Vermelho, expulsos do Reino da Noruega e exilados na Islândia - viajaram para noroeste em busca de uma terra gelada e encontraram a Gronelândia. A etimologia do nome do país também é interessante e tem origem nesta época: Groenland, que significa “terra verde”, parecido em inglês, Greenland. Os exploradores víquingues terão dado tão irónico nome a uma terra tão gelada porque terão visto tudo verde quando chegaram a uma costa no sul da ilha. No idioma gronelandês o nome do país é Kalaallit Nunaat, que significa “terra dos kalaallit", que é o povo inuíte que habita o ocidente da ilha. Foi já no primeiro quartel do século XI que Leif Erikson (filho de Erik, o Vermelho) viajou da Gronelândia pelas ilhas canadianas até ao espaço continental da América do Norte, tendo chegado à actual Newfoundland. Esta campanha de Leif Erikson trouxe, portanto, os primeiros europeus às Américas. Não foi Cristóvão Colombo em 1492, quase meio milénio depois. Nesta época os reinos nórdicos da Escandinávia (Dinamarca, Noruega e Suécia) ainda abraçavam a sua autóctone cultura víquingue, maior parte da população ainda venerava a religião nórdica e o processo de cristianização da Escandinávia ainda estava numa fase inicial.


Foi já durante o século XIII que o Reino da Noruega passou a deter oficialmente a Gronelândia no seu território, após a população se ter submetido à soberania do Rei Magnus VI em 1261. Foi o início do período da primeira colonização da ilha, tendo a monarquia norueguesa tomado proveito das raízes escandinavas que já tinham sido instaladas mais de 200 anos antes. Também na Gronelândia o processo de cristianização já tinha começado. Estudos arqueológicos apontam a construção das primeiras igrejas para a primeira metade do século XII. Em 1397 é formalizada a União de Kalmar que congrega a Noruega, a Suécia e a Dinamarca numa única monarquia (até 1527), a única época na História em que a Escandinávia esteve unificada. Pelo facto da ilha gronelandesa estar reclamada pela Noruega, assim como a Islândia, a Gronelândia passou a pertencer a esta união monárquica. Todavia, ao que a historiografia nos indica, no século XVI, todas as comunidades e localidades escandinavas na ilha - com origem nos tais víquingues noruegueses do século X - tinham desaparecido do mapa e mal deixaram rasto para os historiadores e os arqueólogos. Ainda hoje não há certezas sobre o porquê da extinção destas comunidades. Causas apontadas vão desde as dificuldades económicas e perda de contacto com os nórdicos europeus até aos conflitos com a população inuíte. Sabemos que a Gronelândia voltou a ser exclusivamente habitada pelo povo inuíte e que os noruegueses, assim como toda a Europa, se esqueceram daquela colónia perdida no Ártico.


Após a dissolução da União de Kalmar, devido à secessão da Suécia, a Noruega e a Dinamarca mantiveram-se juntas num reino unido no qual a Dinamarca conseguiu alcançar hegemonia. Eventualmente, o fenómeno de expansão marítima iniciado por Portugal e Espanha no século XV havia de despertar o interesse dos escandinavos e também estes haveriam de se investir pelo mar fora como tinham feito no seu passado histórico. Foi, então, durante os séculos XVII e XVIII, que os dinamarqueses decidiram iniciar a segunda colonização da Gronelândia e evangelização protestante dos povos autóctones. Com a celebração do Tratado de Kiel em 1814, derivado das Guerras Napoleónicas, assinado pelo Reino Unido e a Suécia, por um lado, e a Noruega e Dinamarca (aliadas do Império Francês), pelo outro, ficou estipulado que as autoridades dinamarquesas entregariam a Noruega ao Reino da Suécia, podendo manter, em contrapartida, as possessões coloniais do Ártico - Ilhas Faroé e Gronelândia, nomeadamente. E é assim que chegamos ao século XXI e esses mesmos territórios ainda hoje pertencem ao Reino da Dinamarca. Evidentemente, nos dias presentes, e desde o século passado, que as configurações dessas pertenças territoriais não são as mesmas que no século XIX. Já não se trata de uma relação entre colónia e metrópole. Como referi no início deste texto, a Gronelândia é hoje uma região autónoma, com as suas leis e o seu próprio governo, sendo reconhecida como uma nação. Desta relação entre território autónomo e a coroa surgiu um conflito há algumas décadas que tem vindo a ganhar força durante este século. Esse conflito ideológico e político, que existe entre os gronelandeses e os dinamarqueses, está associado ao lugar da Gronelândia no mundo. Deve a Gronelândia recuar nas concessões de autonomia legisladas em 1979 e 2009? Deve a Gronelândia manter-se unida à Dinamarca, mantendo o actual nível de autonomia? Deve a Gronelândia declarar independência e proclamar uma república? A grande discussão política, na Gronelândia e na Dinamarca, divide-se precisamente entre a autonomia e a independência. O próprio primeiro-ministro da Gronelândia, Múte Bourup Egede, assim como o seu partido, Inuit Ataqatigiit (força política da esquerda socialista), defendem a independência gronelandesa. Não obstante haver um conflito ideológico, a discussão prossegue em plena paz e serenidade. A Gronelândia não é uma ilha conhecida pelo crime, a violência e a desordem. O povo gronelandês vive, e quer continuar a viver, em paz total. Contudo, uma outra dimensão do problema haveria de a seu tempo ser criada, uma dimensão com a qual ninguém contava: não contavam os dinamarqueses, nem os gronelandeses, nem eu, nem a maior parte das pessoas. Um novo capítulo na História do Imperialismo Americano, desta vez protagonizado por Donald Trump.


Quando ainda decorria o primeiro mandato presidencial de Trump, já este mencionava em viva voz, com o apoio da sua administração e da restante máquina política, o seu interesse em comprar a Gronelândia à Dinamarca. Recordo-me de já nessa altura, antes da pandemia, ter ocorrido essa polémica ainda que os media portugueses não lhe tenham dado grande relevo ou cobertura. Agora que Trump foi reeleito (toma posse dentro de dois dias), o assunto voltou à ordem do dia, pela boca do próprio, mas desta vez com meandros mais sinistros. O assunto não se tornou mediático por haver um presidente dos EUA com intenções de comprar território a outro estado. A Administração Jefferson fez a Compra da Louisiana (1803) à República Francesa, duplicando a área do país (implicando o que hoje são vários estados), e em 1867, durante a Administração de Andrew Johnson, o Alaska foi comprado ao Império Russo, território que um século depois foi admitido como o 49º estado da união. O que torna agora a situação bizarra é a reacção de Trump à recusa da Dinamarca em vender a Gronelândia e o facto dos gronelandeses não quererem para eles tão dantesco destino. E a reacção de Trump, no plano da sua estratégia subsequente, não coloca de lado a possibilidade de que a ilha seja tomada à força. Ordenar uma invasão militar de um território que pertence a um estado-membro da União Europeia (cujos países são aliados próximos dos EUA) e um estado-membro da NATO, aliança militar que os próprios EUA fundaram. Quase que me atrevo a dizer que se alguém tivesse escrito isto numa obra de ficção, muita boa gente teria dito que isso não faria sentido e que isso nunca aconteceria. Por vezes a realidade é mais absurda que a ficção. E é essa dimensão do absurdo que tornou o caso mediático. Um presidente norte-americano mencionar a vontade de comprar para os EUA um grande pedaço de território, o estado a que pertence esse território - e que ainda por cima é um aliado muito próximo e fundamental - afirma taxativamente que o território não está à venda, e esse mesmo presidente responde que esse território é fundamental para a segurança dos EUA e que a hipótese de invasão não está excluída - defender isto, justificar isto ou dar desculpas para esta afronta, esta atitude agressiva e repugnante, é ser cúmplice de um imperialismo que procura a servidão de todos, incluindo os europeus. Quem se apresenta como advogado de Donald Trump, afirmando que ele só procura proteger o seu país, tem de defender também a invasão da Ucrânia, a violência israelita contra os palestinianos, a invasão da Polónia em 1939 e, já agora, terá de também defender Trump caso um dia ele afirme que os Açores, situados no meio do Oceano Atlântico, são uma peça chave fulcral para os interesses dos EUA. E a pior parte é que de facto são. Quem vive com a paranoia dos russos a leste esquece-se da outra ameaça a ocidente, no outro lado do mar.


Será também pertinente perguntar porque é que os dirigentes norte-americanos, e, mais especificamente, a nova administração presidencial que em breve tomará posse, entendem que a obtenção da Gronelândia é muito importante para a segurança norte-americana. Muitos poderão afirmar que a Gronelândia é uma ilha gelada demasiado grande e muito desabitada, não chegando a ter 100 mil habitantes. Todavia, sucede que a Gronelândia, dada a sua localização geográfica e devido ao seu manto de gelo (derivado da sua localização), representa um el dorado para os interesses económicos e militares dos EUA. No que concerne ao âmbito militar, a detenção da Gronelândia significa mais 2 milhões de quilómetros quadrados, dentro do Ártico, com mais espaço marítimo e mais próximo da Rússia e da China. Os EUA já têm algumas bases militares instaladas na Gronelândia. Evidentemente, Trump e toda a máquina que está por trás dele ambicionam muito mais do que meia dúzia de bases militares. Quanto ao âmbito económico, devido ao progressivo degelo do manto de gelo gronelandês - o segundo maior no planeta a seguir ao manto de gelo antártico -, a ilha está a revelar uma mina gigantesca de recursos naturais não explorados e que agora estão a tornar-se acessíveis para a sua prospecção. Alguns desses recursos naturais são o cobre, minérios de terras raras (cuja extracção, presentemente, é dominada pela China), gás natural e petróleo. Historicamente já sabemos que qualquer nação com elevadas reservas de petróleo está na mira dos EUA.


É de extrema importância que o governo dinamarquês não faça mais concessões aos EUA e que não ceda perante as pressões e ameaças veladas que de agora em diante serão dirigidas pela Administração Trump. É também de igual importância que o povo gronelandês não se deixe ludibriar por promessas de independência, progresso e mais liberdade por parte do complexo militar-industrial norte-americano. É muito importante que o governo gronelandês compreenda que apoiar os EUA na sua missão de convencer a Dinamarca a vender a ilha significa comprometer todos os cidadãos gronelandeses e o próprio equilíbrio ambiental da Gronelândia e dos seus ecossistemas. Todavia, no que toca ao actual governo gronelandês, não há motivos para preocupações, ainda que haja ambição de um dia separarem-se da Dinamarca. O governo gronelandês e o seu povo preferem cem vezes pertencer à Dinamarca e não alcançar soberania do que pertencer ao império norte-americano.


Se o pior acontecer e Trump ordenar a invasão da Gronelândia - invadindo território de um estado-membro da União Europeia e da NATO - é muito importante que as nações europeias estejam preparadas para tomar decisões muito difíceis e drásticas. Uma dessas decisões seria deixar de se considerar os EUA como país amigo dos europeus. Outra seria fechar todas as bases militares norte-americanas em território europeu e ordenar a expulsão dos respectivos militares. Outra decisão seria expulsar os EUA da NATO, mantendo no território europeu o armamento nuclear da NATO, e constituir-se uma liga militar europeia para assegurar a paz na Europa. Compreendo que quem estiver a ler se indigne perante o meu apelo a que uma futura liga militar europeia conserve o armamento nuclear da NATO que se encontra na Europa. Se dependesse de mim, todo o armamento nuclear seria destruído. Mas nós vivemos num mundo em que potências rivais têm essas armas e não demonstram ter qualquer vontade de as destruir. Se assim é, é sensato que as nações europeias unidas não abram mão desse elemento dissuasor de hipotéticas agressões à Europa. É um mal necessário, infelizmente. Seria também importante que o Reino Unido e a Suíça compreendessem que, ainda que não sejam estados-membro da União Europeia, os britânicos e os helvéticos são europeus, tal como os dinamarqueses e os portugueses, e que portanto fechar os olhos aos abusos imperialistas dos EUA significa trabalhar contra os seus próprios interesses. Todas estas decisões são radicais mas seriam as únicas decisões possíveis face a uma agressão norte-americana. O cidadão português que não compreende porque se haveriam de tomar todos estes passos só precisa de substituir Gronelândia por Açores. O ocidente europeu aparentemente vive com receio da ameaça russa, mas, concretizando-se, a ameaça norte-americana seria muito mais grave e medonha. Esta perigosa situação é uma evidência de que há várias décadas aquilo que os EUA mais procuram na Europa é o semear de sentimentos nacionalistas e a divisão. Dividir para reinar, como já afirmava Machiavelli. No dia em que o Reino Unido abandonou a União Europeia - mediante um processo democrático, sublinho - os altos dirigentes norte-americanos (de ambos os partidos dominantes) festejaram. Mais razões terão para festejar se tiver início o fim da integração europeia.


Claro que todas essas decisões difíceis que enumerei só seriam tomadas se os EUA ocupassem a Gronelândia. Ainda tenho esperança que no Pentágono haja comandantes que percebem os riscos de elevado isolamento que a invasão da Gronelândia significaria e que, a seu tempo, algo ou alguém demova Trump de continuar a falar das suas ambições gronelandesas.


Quem diria que a Gronelândia, a ilha que eu quero tanto visitar um dia, seria assunto na boca da opinião pública internacional. Uma grande ilha que tem permanecido ignorada pelas sociedades e que, até há pouco tempo, muita gente nem imaginaria que tivesse localidades e fosse habitada por dezenas de milhar de pessoas que também têm cidadania europeia. Mas agora que o principal porta-voz da oligarquia norte-americana vira as suas atenções para norte, também as atenções do mundo focam-se, apreensivas, no coração do Ártico. A terra dos ursos polares, das auroras boreais, da Lua do meio-dia e do Sol da meia-noite. Protejam a terra onde é sempre Inverno.


Sábado, 28 de Nivoso CCXXXIII


Sem comentários:

Enviar um comentário