sexta-feira, 15 de março de 2019

Neverland

Há sempre quem diga que vivemos numa altura em que não há heróis. Eu por vezes tenho a melancólica sensação de que esta é uma máxima definitiva... talvez nunca os tenha havido! Assim me sinto eu, após assistir às 4 horas dum documentário, promovido pela HBO e pelo Channel 4, realizado por Dan Reed. Terminei de vê-lo ontem, pouco antes da uma da manhã, absolutamente mal disposto, triste, desiludido, desconsolado pela crueza dos factos. O nome do documentário é Leaving Neverland. O tema do documentário: dois jovens que orbitaram a vida de Michael Jackson, cujas vidas mudaram para sempre desde então...

Antes de mergulhar no documentário em si, gostaria de afirmar que conheço as alegações de abusos sexuais a menores, perpetuados por MJ, desde que conheço o próprio astro musical - o que significa, desde pouco antes de MJ ter falecido (há uma particularidade quanto a mim, o facto de eu ter conhecido certos músicos muito pouco tempo antes deles terem falecido, o mesmo se passou com David Bowie ou com Leonard Cohen, que hoje valorizo muito mais, musicalmente). Já há vários anos tinha lido sobre as denúncias da década de 90, e a subsequente detenção de MJ na década passada. Devido à defesa judicial, efectiva, de MJ em tribunal, e devido a certas (aparentes) incoerências vindas do lado das alegadas vítimas, sempre fui céptico relativamente às estórias de abusos sexuais relatadas. Ontem, esse cepticismo foi demolido.

Durante 4 horas assisti a dois relatos, centrados na vida de dois homens que foram muito próximos de MJ, durante a infância e a pré-adolescência, e que durante vários desses anos mantiveram relações sexuais com MJ. Em suma, enquanto MJ lhes proporcionava portas fantásticas para uma carreira artística, juntamente com temporadas maravilhosas no rancho privado do músico - a Neverland -, de forma progressiva e calculada (sem nunca ter usado violência expressa ou ter sido psicologicamente agressivo com os jovens), MJ aproveitou-se sexualmente das vítimas. Os dois homens que vieram a público, e que, por questão de lealdade a MJ, tinham encoberto as alegações da década de 90, idolatravam numa dimensão apoteótica o astro, e por conseguinte nunca se tinham, de facto, sentido mal com as tais experiências durante a juventude. Mas, evidentemente, na idade adulta, tal sentimento de relativo apaziguamento não resistiu a uma idade mais madura. O que aqueles jovens receberam de MJ foi um admirável mundo novo, no qual conseguiram construir uma carreira e uma vida assegurada, mas também uma profunda sequela psicológica, fruto dum acto criminoso.

A pedofilia, não sendo um crime devido, exclusivamente, a um acto violento, é também um crime devido ao simples (mas crucial) facto de que jamais se deve submeter uma criança a tais actos sexuais - mesmo que o músico nunca tenha obrigado ninguém. Fazê-lo trará para sempre condicionantes psicológicas sérias para as vítimas, e ninguém tem o direito de fazê-lo a uma criança! Após assistir ao documentário, restam-me dúvidas quanto à veracidade dos relatos? Não, nem compreendo como é que ainda há tantos fanáticos que têm a certeza do contrário... as histórias são demasiado coerentes, francas e conclusivas para serem ignoradas.

Relativamente ao legado de Michael Jackson. É a terceira entidade musical comercialmente mais bem sucedida da História da Música Universal. Marcou de forma indelével a década de 80, e as Popstars em geral. É um ícone cultural, tendo também derrubado barreiras raciais nos EUA. Era um músico do qual eu não era um fã hardcore (como sou dos Doors ou dos Led Zeppelin, por exemplo) mas pelo qual sempre tive um grande apreço. Isto destrói a imagem dele? Bem, tenho pensado que, no final do dia, Michael Jackson não será diferente do que um qualquer padre pedófilo... será isto verdade? Wade Robson, uma das vítimas, discordará de mim. Até ao fim dos dias de MJ, Robson amou profundamente o seu ícone, tendo jantado com ele, na Neverland, poucos meses antes de MJ falecer, em 2009. Mas sabe melhor que ninguém o quanto ficou marcado. Há coisas que são certas: nunca deixarei de ficar maravilhado com o groove do Billie Jean, nunca deixarei de achar o álbum Thriller uma das melhores produções musicais dos anos 80, nunca deixarei de vibrar energicamente com o Smooth Criminal - isso seria impossível, a música em si é imortal - mas, enquanto as ouço, ficarei com um cão negro, nas minhas têmporas, lembrando-me de uma verdade obscura.

Há uma pergunta restante: MJ nutria mesmo carinho por crianças? O documentário nunca desmente isso... mas algo nele, clinicamente, nunca esteve bem. Se houve coisa, no meio disto tudo, que me deixou absolutamente destroçado, foi quando a mãe duma das vítimas afirmou que tinha festejado o dia da morte de Michael Jackson (lembrando-me eu que até a minha avó ficou triste nesse dia). Para tal sentimento de felicidade não há descrição, tal como também não há discrição - pelo menos eu sinto-me frustrado por não as encontrar - para os sentimentos que me correm o peito enquanto escrevo isto.

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