sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Sexta-Feira Negra com os mamíferos

Se é verdade que o consumismo exausta os alicerces da sustentabilidade do Planeta, se é verdade que o alento para este mesmo consumismo é a própria dinâmica dos mecanismo de produção capitalista - onde a Economia é por natureza desregulada (apesar da Classe Dominante nos fazer transparecer a ideia de que, magicamente, o Mercado reorganiza as coisas, quando a História prova o contrário) -, e se é verdade que o proletário - ou, se o leitor preferir, o cidadão comum dos nossos dias - é intimado e organicamente obrigado a entrar nesta lógica de relações de poder e civilização, então todas estas verdades (assumindo que de facto o são) se afiguram tragicamente assustadoras quando vistas, em tempo real, numa moção de histeria e frenesim consumista.

Adianto já o que alguns poderão pensar, lendo esta alegadamente pedantesca frase: "Ah, aí vem o dono da moral, ladrando às pessoas aquilo que elas devem e não devem fazer! Deve ter a mania que é diferente." Pois bem, quanto à moral, não é uma 'virtude' que me assista, quanto às pessoas, elas que façam o que entendam (só espero que num futuro, próximo ou longínquo, não uivem surpreendidas com as consequências deste paradigma civilizacional em que vivemos), diferente, dumas formas sou, doutras nem por isso.

O ónus deste texto é, claro está, a Black Friday. Peço então ao leitor que imagine uma horda de mamíferos, galvanizados e frenéticos, à entrada dum supermercado, esperando, ou que as portas se abram, ou que lhes seja dada ordem para entrarem. É dada ordem, e a horda de mamíferos invade o local, atropelando, puxando, placando, berrando, sendo que em certas latitudes do globo brigam e esmurram, inclusive. Em pouco tempo, o stock do supermercado foi encolhido, os mamíferos estão satisfeitos, e regressam mais ou menos ordeiramente para os seus habitats particulares. O rasto deixado por estes mamíferos difere, de local para local, país para país, continente para continente, havendo comportamentos para todos os gostos. Em algumas geografias, vídeos trazem-nos imagens impressionantes por parte destes mamíferos, em que os supermercados ficam do avesso, e alguns surgem aleijados, de mãos a abanar, enquanto outros saem satisfeitos do centro comercial, levando nos membros superiores coisas que, pouco tempo antes, nem se quer se tinham apercebido de que precisavam. Estes mamíferos são convocados pelo seu pastor, que se chama Saldo, e os grão-pastores do Saldo são senhores engravatados que, puxando os cordelinhos, mandam nisto tudo, inclusive no que sucede durante a Black Friday. O grande problema nisto tudo é que o mamífero em questão é o único racional: chama-se homo sapiens, e está no topo da cadeia alimentar. Nós somos mamíferos, e a Evolução da Espécies legou-nos a dádiva, através da Natureza, de com a nossa massa cinzenta fazermos coisas extraordinárias, inventos para lá da imaginação dos nossos ancestrais de há dez séculos. Mas a humanidade ainda teima em não ser mais que uma horda (altamente organizada e inteligente, é verdade) de mamíferos...

A Black Friday é nada mais que um mecanismo, que as grandes superfícies encontraram, para puxar a massa dos consumidores - outro termo tristemente usado para designar o cidadão - para as catedrais no mundo contemporâneo que são os centros comerciais, como uma vez disse, numa aula, a Professora Ana Isabel Buescu. Em remotos tempos, eram as catedrais o sítio de deambulação cultural da sociedade ocidental, hoje são os centros comerciais. Mudam-se os deuses, o objectivo mantém-se o mesmo. As pessoas são incitadas a comprar, a consumir, e acabam por adquirir muita coisa de que, na realidade, não precisavam. Quem perde é o bolso do cidadão. Quem ganha é o magnata, rindo-se a bandeiras despregadas do quão fácil é ludibriar esta horda de mamíferos. É consumismo por ordem velada, "Venham todos que nós temos aqui óptimos preços", e lá vão eles.

Nada disto é um apelo ao Minimalismo - embora também pudesse ser. É sim um apelo à sustentabilidade económica e ao Espírito Crítico. Quanto ao Minimalismo, eu próprio tento, quanto possível, ter aquilo de que estritamente necessito, embora sem radicalismos minimalistas ao ponto de transformar a minha vida num Ascetismo pegado, tendo em conta que eu sou um hedonista, e tal seria incompatível comigo. Defendo que o ser humano deve não só ter acesso, por direito, às suas necessidades básicas, mas também àquilo que lhe traz felicidade individual. Contudo, o que vemos na Black Friday é uma corrida desvairada a coisas supérfluas, que não trarão felicidade, e corrida essa guiada pela necessidade de consumo, accionada pela Classe Dominante. Tudo isto para não falar que esta coisa da Black Friday é simples mímica do que se começou a fazer nos EUA... E em cima disto, surgem as associações em defesa dos magnatas afirmar que o consumidor é inteligente e que não é manipulável. Se o consumidor fosse assim tão inteligente, ou tinha dado ouvidos à DECO, ou não trovejava pelos supermercados adentro como se o mundo estivesse nas iminências de acabar. 

É um atropelo de ansiedades sem necessidade nenhuma. E se para isto restarem dúvidas, consultem o YouTube e visualizem as milhentas de amostras deste comportamento admirável de mamíferos.

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