Em Defesa do Intelecto
O tema do marxismo cultural chegava perfeitamente para uma tese de doutoramento, quer seja sobre as suas origens, quer seja sobre o impacto que a ideia tem na Extrema-Direita dos nossos dias (ou Alt-Right, se for preferível). A pessoa, não familiarizada com o específico conceito, tem toda a legitimidade para se achar confusa com uma equação desta natureza, que junta Direita e Marxismo. A realidade é que foram movimentos reaccionários que deram vida ao conceito. Mas qual é o seu significado?
O tema do marxismo cultural chegava perfeitamente para uma tese de doutoramento, quer seja sobre as suas origens, quer seja sobre o impacto que a ideia tem na Extrema-Direita dos nossos dias (ou Alt-Right, se for preferível). A pessoa, não familiarizada com o específico conceito, tem toda a legitimidade para se achar confusa com uma equação desta natureza, que junta Direita e Marxismo. A realidade é que foram movimentos reaccionários que deram vida ao conceito. Mas qual é o seu significado?
Como digo, um estudo colossal a propósito disto poderá um dia ser feito, mas muitas introduções já foram feitas, e para lá do mar obscuro de mistificações, já muita luz foi incidida sobre o assunto. Há um artigo conciso, escrito para o jornal inglês The Guardian há quase cinco anos, autoria de Jason Wilson, que pode iniciar-nos no conceito. Marxismo cultural é, portanto, uma teoria da conspiração - quero afirmar que, a este respeito, há aquelas que têm fundamentos, e há outras que não têm um único, como é esta exemplo - que afirma que existe uma conspiração mundial, promovida por marxistas, com o objectivo de minar a civilização ocidental, chamando-nos Wilson à atenção para o facto de que esta teoria da conspiração grosso modo envolve sempre a participação dos judeus como sendo esses marxistas conspiradores. Não o afirmo só porque Wilson o afirma. Eu próprio tive oportunidade, inúmeras vezes, de constatar a existência dessa crença, quer seja nas mirabolantes secções de comentário dos jornais, no Facebook, ou até em determinado conteúdo publicado no YouTube. Isso para não falar dos inúmeros sites e blogs dedicados a garantir a continuidade futura desta teoria. A procura na Internet é rápida e simples.
Indo ao cerne da questão, Wilson diz-nos que os antecedentes directos desta teoria remontam ao início do século passado. Segundo ele (e devo dizer que juntando o puzzle tem todo o sentido) a Alt-Right forjou o conceito a partir da seguinte circunstância histórica: "Quando a revolução socialista falhou em materializar-se para lá da União Soviética [eu digo que nem aí se materializou, mas isso é outra história], pensadores marxistas como Antonio Gramsci e Georg Lukacs [nomes que neste blog não são estranhos] tentaram explicar porquê. As suas sugestões foram que a cultura e a religião enublaram o desejo do proletariado por revolta, e que a solução passaria pelos marxistas que fariam a 'longa marcha pelas instituições' - universidades e escolas, administração governamental e media - para que os valores culturais fossem transformados desde o topo" [trad. própria]. Desde aqui, Wilson leva-nos até aos intelectualmente produtivos tempos da Escola de Frankfurt (que surgiu como resposta duma Nova Esquerda, aos três fenómenos políticos internacionais da sua época, a Grande Depressão nos EUA, o Fascismo na Europa, e o Totalitarismo na URSS, sinteticamente falando), na qual os seus académicos teorizaram que "a chave para destruir o capitalismo seria fazer uma mescla de Marx e Freud, uma vez que os trabalhadores não estavam só oprimidos economicamente, mas arregimentados ordeiramente através da repressão sexual e outras convenções sociais. O problema não era só o capitalismo enquanto sistema económico, mas também a família [no que à sua concepção tradicional e abraâmica concerne], hierarquias de género, sexualidade normal [entenda-se normatividade exclusiva da heterossexualidade] - em suma, toda a panóplia de valores tradicionais ocidentais" [trad. própria, Wilson].
Convém explicar que, aquando da ascensão de Hitler e do III Reich, Max Horkheimer, Herbert Marcuse e Theodor Adorno - citando apenas alguns entre os proeminentes da Escola de Frankfurt - tiveram de rapidamente abandonar a Alemanha - pois não só qualquer pensamento marxista como também o simples facto de ser judeu, ou ter descendência de judeus como era o caso dos três, era suficiente para justificar a encarceração e liquidação - e instalaram-se nos EUA, em New York, local para onde transferiram o Instituto para Pesquisa Social, a Academia dos frankfurtianos. E é neste ponto que tudo começa! Os indivíduos que desenvolveram esta teoria da conspiração afirmam que, uma vez a Escola de Frankfurt estando instalada nos EUA, minaram as instituições norte-americanas, a todos os níveis, desde as universidades até ao cinema de Hollywood, promovendo e instaurando, nas sombras, ideário que tinha como objectivo "destruir valores cristãos tradicionais e liberdade empresarial", e tal ideário circunscreve-se ao "feminismo, multiculturalismo, direitos gay e ateísmo" [trad. própria, Wilson]. Devo neste ponto chamar atenção para a tremenda ignorância dos promotores desta teoria, cujo objectivo nunca foi olhar para a realidade como ela é, mas sim, desenhar um quadro maquiavélico de conspiração mundial perpetuada pelos defensores das ideias antagónicas às posições totalitárias dos fascistas. Vejamos: apesar de ser verdade que os valores há pouco citados ganharam enorme poder de reivindicação, durante a Contracultura dos anos 60 (com o esmagador movimento dos Direitos Civis e do desarmamento nuclear), nenhum deles é uma invenção do Século XX. O Feminismo foi um conceito de igualdade de género, fundado no Século XIX, pelo socialista utópico Charles Fourier. O multiculturalismo, visto enquanto fenómeno positivo, já tem largos séculos, sendo muito difícil localizar o seu alvor - não obstante ter ganho grande dimensão com os séculos XVIII e XIX. Os direitos para a homossexualidade, enquanto surgimento político, remontam ao pensamento hedonista dos iluministas radicais - como Rousseau - tendo sido a Revolução Francesa (1789) o primeiro fenómeno histórico a entrar em tais domínios. O ateísmo remonta, pelo menos, até à Grécia Antiga, tendo ganho os contornos argumentativos dos nossos tempos, através de inúmeros pensadores, quer socialistas, anarquistas ou iluministas, no Século XIX. Em todo caso, é totalmente verdade que a visão neo-marxista da Escola de Frankfurt promoveu tais premissas no Século XX. Aos frankfurtianos há que agradecer a riqueza científica e argumentativa que trouxeram à mesa da defesa de tais direitos, assim como sendo um dos responsáveis pela aurora da New Left (Nova Esquerda), todavia, a ideia de que tudo fazia parte dum plano maquiavélico, por parte dum punhado de intelectuais, para subverter a ordem mundial, é alucinante. Wilson, no seu artigo, coloca a seguinte proposição na mesa que, quanto a mim, somente no campo da Lógica, faz desmoronar qualquer aspiração (por parte dos desgraçados que inventaram a rocambolesca teoria, claro) da veracidade do marxismo cultural: "Se as faculdades humanísticas estão realmente engendradas para lavar o cérebro dos estudantes a aceitarem os postulados da ideologia da extrema-esquerda, a composição dos parlamentos ocidentais e presidências e o sucesso tonitruante do capitalismo corporativo sugerem que eles estão a fazer um impressionante mau trabalho. Quem quer que enxergue as últimas três décadas de política vai considerar bizarro que alguém possa interpretar tal como o triunfo de uma esquerda omnipotente" [trad. própria, Wilson].
Sobre este assunto, Wilson chama-nos à atenção para outro aspecto que, para além de eu achar pertinente, também acho sombrio. A lógica do forjamento e aproveitamento do falso Protocolo dos Sábios de Sião - documento congeminado por proto-fascistas, que justificou a perseguição do Nazismo aos judeus, que falava duma conspiração mundial dos judeus para subverter o Mundo - é similar ao forjamento desta teoria de marxismo cultural. E a primeira teoria tresloucada está associada com a segunda. Ambas implicam anti-semitismo. Ambas propagam o medo do Anticristo, que, efectivamente, não existe. Tudo o que existe são tentativas do mais absoluto Totalitarismo fazer vingar a sua retórica e praxis. Tudo o que existe é a tragédia a pairar nestas cabeças, repelentes à própria intelectualidade, vendo o mundo a transformar-se, apercebendo-se que o medo do Inferno é cada vez menos vivo. Vendo que o controlo sobre os povos da Terra está cada vez mais distante do pulso dos seus desígnios tirânicos e inquisitoriais (embora os povos da Terra estejam sujeitos a outro tipo de circunstâncias, não conspirativas, palpáveis sim, orgânicas, natureza do próprio sistema de produção económica). E quem são eles? Eles têm rosto e nome! Ao contrário da ordem de pensamento deles, não joga aqui nenhuma ciência oculta. Um deles é o guru da Alt-Right, e um dos maiores divulgadores desta teoria. O seu nome é Olavo de Carvalho.
Em Defesa da Cultura
O Olavo, nascido no Brasil, é um pobre frustrado no meio intelectual. Nunca produziu obra académica significativa. Nunca foi convidado para uma grande universidade. Vive da sua influência junto dos seus seguidores, como é exemplo o actual Presidente do Brasil. Vive também do vilipendiar de grandes nomes da Ciência, como Dawkins, Hawking, Kinsey, Einstein, Darwin ou Newton. Por sinal, o Olavo considera que os defensores da proposição de que a Terra é plana e não redonda (porque ainda há crackpots deste estilo) têm razão em muitos pontos - mais um hino à sua santa ignorância. Vive também da astrologia e da miríade infindável de disparates escritos e ditos... Enfim, em tempos um jovem comunista arrependido (imagine-se onde já ouvi eu isto), que sucumbiu aos deleites da cidade de Richmond, na Virginia, EUA.
Ora, a pessoa leitora, na eventualidade de aqui ter chegado, perguntar-se-á, para quê tamanha hostilidade da minha parte, para com esse senhor já idoso? Por tudo o que já foi aqui escrito. É suficiente... e, todavia, por mais uma coisa. Para o Olavo, a Esquerda só não se combate com o cárcere porque tal faria de nós esquerdistas mártires, o que lhe seria inconveniente. O Olavo, após uma vida de raciocínio a motor de carvão, entendeu que a Esquerda se deve combater mediante a simples e rudimentar humilhação, para que nem os passeios sejam abrigo seguro para nós, esquerdistas. O plano de génio do Olavo é o princípio do ódio. Promover o ódio para que o hipotético esquerdista nunca mais queira aparecer à rua. É só impressão minha ou este texto tem mesmo um fio condutor?
Bem, acontece que muitos já foram alvo deste indivíduo, que nunca se dignou a apresentar-se em debate público (wonder why). Um grupo de quatro rapazes foram há bem pouco tempo vilipendiados por um insignificante qualquer, nomeado para um lugar qualquer ligado à cultura, pelo Capitão Bolsonaro. Acontece que as críticas que a pobre alma expressou - devo avisar que o coitado é compositor - já tinham sido papagueadas em ata do evangelho pelo mestre Olavo. E de que falo eu? Falo das atrocidades ditas sobre os Fab Four e o Theodor Adorno.
De marxismo cultural já está tudo dito (na generalidade), mas o que diz o Olavo especificamente sobre a improvável relação entre o músico e sociólogo frankfurtiano, Adorno, e a histórica banda dos anos 60, The Beatles? Já se está a ver onde é que o raciocínio desta gente vai dar... Pois bem, o Olavo afirma que John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr eram analfabetos musicais. Pela parte que lhes toca, os álbuns Sgt. Pepper's (1967) e White Album (1968), per se, irão perdurar na História da Humanidade muito para lá do Olavo. Da qualidade e complexidade musical destas duas obras nem falo, que nem o notável e por vezes obtuso Hans Keller se propôs a dilacera-las, na altura. O McCartney nem se vai dar ao trabalho de responder, porque a primeira coisa que ele perguntaria seria "Quem é o Olavo de Carvalho?", e claro, está ocupado em dar concertos fantásticos constantes na flor dos seus 77 anos de idade. Portanto, tudo o que um jovem como eu pode fazer, que adora a música que os Beatles e todo o movimento da Contracultura nos trouxeram - e que o Olavo classifica como apelo explícito ao satanismo -, e que recusa a ideia de que a criação cultural e artística deve seguir um Pensamento Único, é expor ao ridículo os raciocínios ilógicos de broncos como o Olavo. Explicando sinteticamente o que o indivíduo defende a este respeito, ele afirma que, pelo facto dos Beatles serem analfabetos musicais, foi Theodor Adorno, na sua suposta cruzada frankfurtiana para subverter a ordem mundial, que compôs todos os álbuns da autoria dos Beatles, entre 1960 e 1970, de modo a incutir os tais valores conspiratórios no cânone da cultura popular ocidental. Nas suas palavras, "Se você pega toda essa música drogada que se espalhou pelo mundo, desde a década de 60, tudo isso foi a Escola de Frankfurt, gente. Woodstock foi a Escola de Frankfurt. LSD é a Escola de Frankfurt. Rock paulera é a Escola de Frankfurt. Tudo o que veio na Indústria da música de massas - eles são a favor da Indústria da música de massas? Não, eles falam horrores dela, e ao mesmo tempo trabalham para ela - que é isso aí: Dialéctica Negativa, destruição, destruição, destruição". O que dizer disto? Nem Olavo alguma vez ouviu falar de George Martin (o quinto Beatle), nem algum dos Beatles se quer alguma vez conheceu Adorno pessoalmente. Portanto, o Olavo pode atribuir a genialidade a Adorno, de ter composto toda a música dos Fab Four, mas o Adorno - não obstante ser um sociólogo brilhante - não fez tal proeza. As letras foram da autoria de Lennon e de McCartney, a produção musical foi do George Martin, e a composição foi de toda uma equipa, que não se circunscreve somente aos Fab Four, que durante uma década deu a vida pela Música. Lennon, por exemplo, acabou mesmo por, literalmente, dar a vida às causas humanitárias em que acreditava. E quanto ao facto do Olavo, para todos os efeitos, afirmar que Harrison mal sabia tocar guitarra, há uma coisa muito simples que se faz, como resposta a tão primária provocação: mete-se a tocar While My Guitar Gently Weeps. Tudo isto tem uma razão de ser: o Olavo nunca ouviu com atenção Beatles, ou outra banda da época para todos os efeitos, não sabe do que está a falar - o que também não é novidade - e toda esta palhaçada tem um único fim político que, de acordo com a ordem de ideias deste texto, já é muito claro.
Quanto à questão da Dialéctica Negativa, esta é uma das principais teorias de Theodor Adorno. Eu confesso que nunca li o texto de Adorno, datado de 1966 (embora queira muito lê-lo, apesar da dificuldade em neste momento encontrar o texto disponível), contudo, garanto que o Olavo também não o leu, antes tresleu. Dialéctica Negativa não implica um processo filosófico de destruição de tudo o que existe, é antes uma oposição ao formato positivo da Dialéctica de Hegel. Em suma, o Olavo argumenta que, usando a teoria da Dialéctica Negativa, entre muitas coisas como o Cinema e a Literatura, os frankfurtianos usaram a Música dos anos 60 para minarem a cultura ocidental com o Feminismo, o Ateísmo, a oposição ao Capitalismo, e entre outras coisas tão elementares como a esperança na Ciência como fonte de progresso, aquilo como ele e outros classificam como homossexualismo - como já anteriormente foi evidenciado. Bem, efectivamente, nada disto tem razão de ser, e não vale a pena chover mais no molhado.
Muito mais será escrito no futuro. Gostava que a Esquerda internacional se pronunciasse, em uníssono, a este respeito. Gostava que o Partido Comunista Português e o Bloco de Esquerda, por exemplo, se erguessem, gozando das plataformas das quais dispõem ao passo que eu, enquanto mero estudante universitário de 20 anos, não disponho. A literatura que poderia ser lançada para expôr esta gente ao ridículo, não só pela natureza das declarações desta gente que, a olhos vistos, ganha uma influência cada vez maior, mas, sobretudo, porque o próprio marxismo cultural tem de ser desmistificado como uma farsa e um ardil sinistro, congeminado por aqueles que eu classifico como os inimigos da Civilização, teria um potencial de esclarecimento intelectual, avassalador para a Alt-Right. Imaginemos um mundo onde esta gente reinasse. Quantos séculos iria a Humanidade regredir? Não é só a Esquerda, ou os Direitos Humanos, ou a livre criação artística e cultural, que são afectados pelo vingar deste ideário. O próprio Capitalismo - pelo menos na sua acepção libertária, social-democrata ou agnóstica, esquecendo a ala mainstream de neoliberais - está ameaçado, e os defensores do Capitalismo nem isto conseguem compreender, antes preferindo apontar lanças aos socialistas e comunistas. Imaginemos que também os liberais nos quisessem auxiliar nesta defesa da cultura e do intelecto. Poderei estar a ser demasiado sonhador, mas o nível de debate público poderia ser aumentado sevenfold. Nada poderá ser pior que um retorno da Teocracia e do Totalitarismo civilizacional. E é por isso que me sinto na obrigação de escrever isto. Lennon viveu por um mundo melhor, acabando alvejado, há 39 anos, e os seus famosos óculos ficaram inundados do seu sangue. Seria criminalmente vulgar se eu ignorasse esta farsa do marxismo cultural, ou se ignorasse a influência que o Olavo de Carvalho detém sobre o pensamento da Alt-Right, cada vez mais presente na política dos vários estados do mundo. Só no Parlamento português, há uma offspring dos seus pensamentos, e no CDS há toda uma ala meio marginal que segue o mesmo trilho. Quem me disser que não há motivos para a preocupação, para além de me tentar enganar, engana-se a si próprio.
Aos que caminham entre este tipo de ideário, não peço que concordem comigo - advogar o Pensamento Único seria contraditório com as minhas ideologias -, peço só que definam aquilo de que a Humanidade precisa e, por favor, jamais ignorem a História. O Olavo, descaradamente, ignora-a.
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