O momento está aí. Está a chegar o momento para a República Portuguesa, por fim, tomar uma decisão sobre um assunto que eu entendo fundamental na nossa sociedade. Por mais que se diga que o assunto requer mais reflexão, que é preciso haver uma discussão ampla e ponderada na sociedade civil, e que os prós e os contras ainda não foram devidamente medidos pelos cidadãos e pelos decisores políticos, eu digo Não! a tudo isso. Não porque eu esteja contra tais períodos longos de exercício de reflexão e debate, mas porque a República já atravessou todo esse longo período. A discussão da Eutanásia já vai longa nesta nação, não é recente. Foi tratada não só em fóruns civis, como também foi debatida na anterior legislatura, e inclusive tratada em espaços culturais, e até locais tão remotos como as próprias igrejas. Tem sido mais de uma década a ponderar, debater, reflectir, e portanto o momento é agora. Dialecticamente falando, já se definiu claramente que há uma antítese para a tese, e então que se permita que haja, finalmente, uma síntese.
Mas se há ideias e pessoas num confronto político, e sobretudo num choque cultural que noutros tempos tinha tudo para terminar ao tiro, quais são, de facto, essas ideias e esses grupos de pessoas? E o que significa Eutanásia? O leitor que acompanhar com discreta regularidade este blog já saberá que é nesta parte em que eu adquiro o meu suposto tom condescendente/paternalista e me lanço - muitos poderão julgar desnecessariamente - na exposição dum conceito alegadamente já compreendido por toda a gente. O problema é que eu creio que ainda há indivíduos que ainda não descortinaram o significado por detrás do vocábulo. É irrelevante se essa incompreensão provém da falta de tempo, falta de disponibilidade ou falta de vontade, mas é relevante afirmar que Eutanásia significa "dar a morte" (como dizia Saramago) a alguém que se encontra em situações clínicas terminais e/ou de dor física insuportável, sendo que, resultado da absoluta falta de vontade em prosseguir com tal vida, é o doente, na sua plena consciência medicamente avaliada, quem pede essa derradeira via. Portanto, Eutanásia não significa o Estado começar a perseguir velhinhos e doentes acamados - que mais me faz lembrar as terrivelmente fabulosas lendas desprovidas de realidade que se contavam dos comunistas durante o PREC - mas sim dar uma morte digna a quem já não reúne condições para viver realmente.
A Eutanásia, sendo considerada um assunto "fracturante" (signifique isso aquilo que entenderem), deu ânimo a muitas paixões de ambos os lados. Verifiquei que as paixões mais fulminantes vinham do sector contra a legalização, como um grito de guerra que proclama o mais elementar direito a impedir os demais de decidirem sobre os seus próprios direitos, nomeadamente a vida. Este sector tem, com privilégio de precedência a todos os outros, a Igreja Católica à sua cabeça. Não são muitos os assuntos em que a Igreja se rala em fazer lobby político, e curiosamente não o tem feito com o mesmo vigor, por exemplo, a propósito das condições laborais da Classe Trabalhadora, o que é curioso dada a fama solidária da empr... instituição, quero dizer, mas isso são contas para outro rosário. Grosso modo, é toda a franja conservadora ou tradicionalista da sociedade portuguesa que se ergue contra a legalização, sejam eles de Esquerda ou Direita. Nesta questão é irrelevante o espectro político, e é também essa característica que torna a discussão interessante. Esta questão não se divide em esquerdistas e direitistas, divide-se sim em socialmente conservadores, mais ou menos autoritários, e socialmente libertários. No Parlamento temos um exemplo paradigmático disto: CDS e PCP, alegando diferentes justificações, opõem-se à Eutanásia. O CDS justifica a sua posição no seu credo católico, afirmando que é imoral as pessoas decidirem pôr termo à vida e que tal só cabe ao Altíssimo Todo-Poderoso - o que, no meu entender, gera um conflito teológico uma vez que, de acordo com o dogma, o deus em questão é omnipotente e portanto nada poderia ser feito contra a sua vontade. O PCP justifica a sua posição na ideia de que os cuidados paliativos são o caminho, não o suicídio. Tal posição também não põe o problema por terra porque, para os doentes terminais e para aqueles que para sempre permanecerão quasi imóveis e dependentes, não há cuidados paliativos que valham. A outra franja da sociedade, aquela que tem vindo a esgrimar pela legalização, defende em linhas gerais aquilo que eu defendo.
Não tem sentido ficarmos chocados com a necessidade da nossa sociedade precisar desta lei. Tenho escutado que a Eutanásia representa uma regressão civilizacional. Neste assunto, a questão é muito maior do que uma civilização mais ou menos avançada ou desenvolvida. É dar ao indivíduo em sofrimento uma nova via, e digo via porque, como dizia o sábio Saramago, a Morte faz parte da Vida, não é um domínio à parte. A Eutanásia tem mais que ver com o indivíduo do que com a Civilização no seu sentido colectivo. Ouvi o José Miguel Júdice dizer esta semana que há um grande negócio por detrás da Eutanásia, argumentando basicamente que não é uma ideia. Também há grandes negócios na música e na indústria de sapatos, não é por isso que vamos acabar com a música ou com os sapatos... Para além do mais, nações como a Suíça, o Canadá, o Japão, a Bélgica ou os Países Baixos - que por sinal têm notáveis cuidados de saúde - legalizaram a Eutanásia e não é por isso que as respectivas sociedades entraram em colapso.
A recusa da Eutanásia pode ser justificada numa miríade de aspectos, mas a verdadeira razão reside no inconsolável medo à Morte que assombra a nossa civilização. As próprias religiões e espiritualidades baseiam, em comum, os seus credos na existência duma vida depois da vida, metendo a cabeça na areia, convencendo-se de que haverá outra vida para além desta que vivemos, como que tentando fugir à lei determinante e imutável que significa atingir o fim da vida. A Morte é um tabu em todas as sociedades, e muito virtuosos e poéticos são aqueles que escrevem sobre ela. Mais corajosos são aqueles que escrevem sobre esta hipotética vontade humana de por término à própria vida. Neste registo recomendo três obras literárias notáveis: O Estrangeiro, e A Queda ambas as estórias da autoria de Albert Camus, e As Intermitências da Morte, o meu livro favorito na bibliografia de José Saramago. Recomendo literatura porque considero que o diálogo com a escrita e o seu escritor é uma óptima forma - se a literatura for boa claro - de viajarmos e libertarmos a nossa mente.
Estou convencido de que se os projectos-lei forem submetidos a votação no Parlamento, ainda este ano a legalização da Eutanásia será uma realidade. A esmagadora maioria de deputados do PS, o BE, o PAN, o PEV, selectos deputados do PSD e a Iniciativa Liberal estão a favor que assim seja. Contudo, a possibilidade de referendo também é uma realidade. A Igreja Católica luta por ele, como se de um braço se tratasse, convencida que a sua congregação de crentes votará como mandarão os padres nas homilias. Não tenho a certeza de que a deliberação sobre direitos pessoais seja uma matéria que deva ser deliberada em referendo, mas não tenho medo dum referendo. Se ele por ventura vier, confio nos meus concidadãos para votarem a legalização, permitindo um novo passo de maturidade e aceitação na nossa sociedade. Não termino este texto sem afirmar que durante longo tempo esperei por este momento, e outras mudanças no campo da liberdade do indivíduo também haverão de chegar...
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