Agora que a poeira já acalmou, saio eu a terreiro. Estátuas. Inerentemente, são blocos de pedra, ou de um qualquer metal como o bronze, trabalhados, para representarem uma qualquer figura humanoide. Os objectivos das suas construções são muitos: memória, prevalência do património cultural, assinalar um marco histórico, enaltecimento dum culto de personalidade, etc. As estátuas não têm vida. As figuras representadas estão sujeitas à arte (ou falta dela) de quem as esculpe, e também estão sujeitas aos caprichos de quem as representa. As estátuas, por vezes, durante o seu tempo de existência - pois nada dura para sempre - recebem mais atenção que a pessoa que pretendem representar durante o seu tempo de vida. Eis a estátua de Fernando Pessoa na esplanada d'A Brasileira. Nunca Pessoa sonhou, a dormir ou acordado, que alguma vez receberia tanta atenção como a sua famosa estátua que ele nunca chegou a contemplar. Outras tantas estátuas permanecem na sua morada sem alguma vez terem recebido a mínima atenção de quem passa. Há ainda habilidosas estátuas que lutam contra o tempo, jazendo no seu local, muitos anos passados do regime que justificava a sua existência. Outras, para desgraça de poucos e salvas de muitos, não resistem a mudanças de regime e acabam por cair ante o poder inafrontável do tempo histórico. É, portanto, racional mas arbitrária a importância, ou carinho, que todos nós nutrimos pela multitude de estátuas que foram erguidas por esse mundo fora. Há estátuas totalmente consensuais. Há estátuas adoradas. Há estátuas detestadas. Há estátuas de que ninguém quer saber, salvo o escultor ou escultora que a ergueu, isso é no caso de ainda viver. Dentro daquilo que é a normalidade do quotidiano, as estátuas são invisíveis. Mas nos últimos tempos, para pasmo meu, que tanto gosto de estátuas e esculturas, foram estátuas que estiveram na ordem do dia.
A minha relação com estátuas é bastante interessante... digo eu, na minha descarada presunção. Vou enumerar porquê. Uma das minhas peças de arte favoritas (e que, ironicamente, nunca a contemplei presencialmente, mas se o fizesse demorar-me-ia, sem exagero, uns bons trinta minutos) é uma estátua (ou uma escultura, se preferirem) que neste momento se encontra em exposição na Galeria da Academia de Florença, o seu título é David (por representar a personagem bíblica homónima) e o seu autor foi um grande humanista e artista do Renascimento chamado Michelangelo. Uma peça de uma estética imbatível. De uma perfeição técnica lendária. De uma irreverência cultural que fez tremer com muitas tradições. De uma beleza assombradora. De uma percepção inspiradora da beleza enaltecida do corpo humano masculino (esse, que muitas aves raras afirmam que, por natureza, é feio e rude). Se, um dia, alguma tragédia lhe acontecesse, eu era bem capaz de verter umas quantas lágrimas. Outra estória, relacionada comigo, sobre estátuas. Um dos momentos definitivos que me acordou para a política foi precisamente o derrube e espancamento de uma estátua. Quando eu tinha 14 anos, e já me interessava sobremaneira por História e pelo porquê do Mundo ser aquilo que é, enquanto jantava, assisti nas notícias, no contexto do conflito russo-ucraniano pela região da Crimeia, ao ataque, por parte de cidadãos ucranianos, a uma estátua de Vladimir Lenin que repousava (salvo erro) em Donetsk ou em Kiev. Eu na altura não consegui discernir totalmente porquê, mas por alguns motivos, que para o assunto não são chamados, achei errada aquela atitude iconoclasta... até porque Lenin, historicamente, nada tinha a ver com o conflito que decorria e ainda decorre. Terceira e última enumeração. Há uma estátua bem próxima de mim, e de que não gosto nada. Ela ergue-se teimosa, quase toldando o Monte da Penha no horizonte se o observador estiver e certas perspectivas, ao nível do edifício da Câmara Municipal de Portalegre, e para ela sou quasi forçado a olhar, como se dum acidente de automóvel se tratasse. É a imponente estátua de João III, Rei de Portugal, o mesmo que tinha tanto ou mais interesse que o próprio Vaticano em trazer a Inquisição para Portugal, para perseguir os judeus e toda a sorte de heresias imagináveis, com todas as consequências socioeconómicas que tal acto importou no Reino de Portugal. A única razão para a estátua ali repousar é o facto de ter sido no reinado de João III que Portalegre se tornou cidade mediante uma Carta de Foral. É só essa a razão para ali estar aquela triste e descomunal figura. Por mim saía hoje. Gentil e educadamente claro, não era necessário recorrer à iconoclastia, mas saia e naquele pedestal que pusessem outra pessoa. Portanto, como vêem, apesar do respeitável trabalho de quem as projectou, esculpiu ou construiu, há estátuas incomodativas, e outras que se tornam mesmo insultuosas. Mas apesar de tudo, devo dizer que, opções estéticas de parte, adoro estátuas em geral.
O movimento social de danificar ou destruir estátuas não nasceu ontem, era aliás muito comum acontecer no Egipto quando o então Faraó se aborrecia com a memória de algum antecessor seu. Já no Iraque, quando o regime totalitário de Saddam Hussein foi derrubado, os cidadãos de Bagdad apressaram-se, epicamente, a mandar abaixo uma enorme estátua que o tirano tinha na cidade. Quem achou aquilo errado ou inapropriado que atire a primeira pedra. E da mesma forma como esse legítimo acto de iconoclastia não recebeu uma cascata de críticas e impropérios, também os não receberam os cidadãos ucranianos que violentaram à martelada (irónico) a estátua de Lenin que mencionei anteriormente. Aliás, muitos por cá e do outro lado do Atlântico aplaudiram entusiasticamente e não fizeram, ao contrário das suas posições nos tempos presentes, nenhum apelo à preservação da cultura e da História. E assim desconstruí o argumento daqueles que, vendo aquela miríade de estátuas atacadas por todo mundo, fizeram um apelo à cultura e ao património histórico, porque, para eles também, há umas estátuas que são mais que outras. A verdade é esta: há estátuas que são puramente políticas, e essas tendem, como já afirmei, a sucumbir com a mudança dos tempos políticos. O que diríamos todos nós se nos cruzássemos com uma estátua de Hitler ou Stalin na rua? Certamente não viríamos, primeiramente, aquelas estátuas como património que deve ser conservado mas sim como culto de personalidade que deve ser derrubado. O apelo à cultura e ao património é legítimo, sim, quando estamos perante peças cuja motivação era plenamente artística ou quando as figuras representadas, políticas ou não, fazem parte ao cânone cultural de um povo, e um exemplo desse tipo de estátuas é a de Afonso Henriques que está em Guimarães. Desta feita, julgo também apropriado clarificar que foi um disparate danificar a estátua de António Vieira, uma vez que ele tinha um pensamento bem avançado para o seu tempo e, sobretudo, é um intemporal escritor lusófono. E dou eu de barato que foram anti-racistas que atacaram a estátua de António Vieira, porque, na realidade, pode nem ter sido isso que aconteceu... em todo caso, esta estátua particular é um grão de areia no Deserto.
A falta de sensibilidade que muitas franjas da sociedade nacional e internacional revelaram perante os esforços de afirmação de muitas pessoas, que se debatem com o racismo, é igualmente gritante. Aqueles que indignados se manifestaram face àquilo que se fez à estátua de Vieira, se acharem decente, adequado ou ponderado reagirem de semelhante forma aos ataques de estátuas como a de Leopold II, Rei da Bélgica, ou a de Jefferson Davis, Presidente da Confederação durante a Guerra Civil Americana, então retirem essa máscara de moralismos e compreendam que, neste preciso momento, se combate uma luta social e cultural que já há algum tempo não tinha tanta pujança como tem agora. Se me pedirem para pensar nas várias estátuas erguidas em memória de Leopold II - dono a título pessoal do território que hoje é a República Democrática (nada democrática, deva-se dizer) do Congo entre 1885 e 1908, território esse explorado por ele com tanta falta de humanidade e liberdade que até indignou e revoltou os colonialistas impérios europeus da época -, e me pedirem para ficar ultrajado com a destruição delas, pois bem, não me peçam isso. O enaltecimento público de um déspota absoluto não é algo que deva ser encarado com leviandade, especialmente tendo em conta de que é uma figura histórica que ainda está muito presente nos nossos dias. Não sabemos ao certo a fasquia de mortandade causada pela ditadura colonial imposta sobre o Congo, naquela época, mas crê-se que tenha ultrapassado o milhão de mortos. Já Jefferson Davis foi só o homem que presidiu à nação separatista da Guerra Civil Americana - os Estados Confederados da América -, combatendo uma guerra fratricida com o principal objectivo de poder continuar a escravizar negros. Felizmente para muitos norte-americanos que a Confederação perdeu a guerra, mas esse passado obscuro ainda hoje está a ser combatido nos EUA, e ainda combate-se em cada estátua pública que queira enaltecer esse desgraçado passado racista e esclavagista. E quem, com alguma razão, afirmar que não devemos fazer julgamentos sobre a História, eu recordo que o século XIX não é uma época assim tão longínqua e que a memória da Confederação, por razões múltiplas, ainda está muito presente, nomeadamente em norte-americanos de pele negra. Em Berlim, por exemplo, chegaram à conclusão de que a estátua que tinham erguido ao fundador dos escuteiros iria ser removida devido às inclinações nazis do indivíduo, e na Universidade de Oxford a estátua erguida em homenagem a Cecil Rhodes irá ter o mesmo destino. Isto prova que estas acções de remoção de estátuas que muitas pessoas hoje consideram ofensivas, devido ao significado e motivação política e cultural intrínsecas ao monumento, pode também ter lugar num plano ordeiro e meramente reformista. Poderá ser colocada esta pergunta: então é legítimo remover estátuas de pessoas que, nos séculos XIX ou XX, tinham opiniões pessoais que hoje consideramos repreensíveis? Tal dá legitimidade a agarrarmos em martelos para abatermos qualquer estátua do Johannes Brahms ou do Richard Wagner - por sabermos hoje que eram indivíduos racistas e anti-semitas (especialmente Wagner) - que se cruze no nosso caminho? Não. Essas são estátuas erguidas em homenagem dos músicos Wagner e Brahms. É um importantíssimo legado musical, e portanto cultural, que está a ser celebrado, e tal coisa, independentemente da pessoa, deve ser celebrado - é principalmente por essa razão que eu resolvi defender a estátua de Vieira, em primeiro lugar.
Devo, como é habitual, pedir perdão pelo longo texto, mas a minha impressão foi que a ideia, apesar de tudo, era discutir sobre estátuas, das quais tanto gosto. Fico contente que tenham aparecido alguns historiadores na colunas do jornais, como o Professor Pedro Cardim ou a Professora Ângela Barreto Xavier, comentando, num plano mais historiográfico, o fenómeno do abate de selectas estátuas, mas fico triste, logo a seguir, devido ao conteúdo da maioria dos textos que foram escritos por esses historiadores. Sinto que se canalizou demasiada atenção para a estátua de António Vieira - que, já sabemos, merece o nosso respeito por ter, na época, um pensamento um pouco avançado e sobretudo por ser um autor imortal das letras portuguesas - e muito pouca para um outro fenómeno que merecia reflexão por parte daqueles que sabem o significado da palavra historiografia: que tipo enfermo e patológico de nostalgia faz com que ainda se honrem e ergam estátuas em memória de gente que tantas feridos abriu nos dois últimos séculos? É que, caso ainda não tenham reparado, há gente, com outro life background, que ao ver Leopold II, Jefferson Davis, Stalin ou Hitler celebrados, em praça pública, em pedra no topo dum pedestal, é ver a mesma coisa!
Ainda, face aos meus argumentos, há quem possa responder, indagando-me se isso também dá legitimidade a que se atire com estátuas de Luís XIV, de Júlio César ou de Alexandre Magno, para o desterro mais longínquo, por terem sido, segundo as nossas lentes da sociedade contemporânea, aquilo que hoje classificaríamos como imperialistas. Bem, todos sabemos que, isso sim, seria julgar a História. (E ficaria muito ofendido, obviamente, se atirassem com César ou Alexandre para um desterro!)
Comecei por escrever que uma estátua é, fundamentalmente, uma estátua, mas, se a estátua for sortuda, uma estátua torna-se sempre mais que uma estátua, quer seja por bons motivos, como a indelével beleza de David, ou por maus motivos, como a estátua de Jefferson Davis que, volvidos mais de 150 anos sobre a Guerra Civil, ainda tem um vergonhoso destaque de honra no Capitólio de Washington D.C... e, convivendo com tal facto, ainda houve gente que ficou admirada por um pedaço de pedra ter sido atirado a um rio.
Devo, como é habitual, pedir perdão pelo longo texto, mas a minha impressão foi que a ideia, apesar de tudo, era discutir sobre estátuas, das quais tanto gosto. Fico contente que tenham aparecido alguns historiadores na colunas do jornais, como o Professor Pedro Cardim ou a Professora Ângela Barreto Xavier, comentando, num plano mais historiográfico, o fenómeno do abate de selectas estátuas, mas fico triste, logo a seguir, devido ao conteúdo da maioria dos textos que foram escritos por esses historiadores. Sinto que se canalizou demasiada atenção para a estátua de António Vieira - que, já sabemos, merece o nosso respeito por ter, na época, um pensamento um pouco avançado e sobretudo por ser um autor imortal das letras portuguesas - e muito pouca para um outro fenómeno que merecia reflexão por parte daqueles que sabem o significado da palavra historiografia: que tipo enfermo e patológico de nostalgia faz com que ainda se honrem e ergam estátuas em memória de gente que tantas feridos abriu nos dois últimos séculos? É que, caso ainda não tenham reparado, há gente, com outro life background, que ao ver Leopold II, Jefferson Davis, Stalin ou Hitler celebrados, em praça pública, em pedra no topo dum pedestal, é ver a mesma coisa!
Ainda, face aos meus argumentos, há quem possa responder, indagando-me se isso também dá legitimidade a que se atire com estátuas de Luís XIV, de Júlio César ou de Alexandre Magno, para o desterro mais longínquo, por terem sido, segundo as nossas lentes da sociedade contemporânea, aquilo que hoje classificaríamos como imperialistas. Bem, todos sabemos que, isso sim, seria julgar a História. (E ficaria muito ofendido, obviamente, se atirassem com César ou Alexandre para um desterro!)
Comecei por escrever que uma estátua é, fundamentalmente, uma estátua, mas, se a estátua for sortuda, uma estátua torna-se sempre mais que uma estátua, quer seja por bons motivos, como a indelével beleza de David, ou por maus motivos, como a estátua de Jefferson Davis que, volvidos mais de 150 anos sobre a Guerra Civil, ainda tem um vergonhoso destaque de honra no Capitólio de Washington D.C... e, convivendo com tal facto, ainda houve gente que ficou admirada por um pedaço de pedra ter sido atirado a um rio.
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