Foi há nove dias que o mais antigo partido em existência, em Portugal, comemorou o seu centenário. Um século foi encerrado, a vida avança. A bandeira vermelha, embora velha e por vezes cansada e embrulhada no seu próprio mastro, abana ao vento turbulento da mudança, e as massas inconformadas, ansiosas pela marcha contínua do Progresso, aguardam que o próximo centenário seja celebrado diferentemente, num tempo histórico em que as máximas da Liberdade, Democracia e Socialismo já estão cumpridas.
Nos últimos dias, tenho reflectido, para comigo, o que significa, para alguém que não se considera comunista, o centenário de um partido comunista. Para mim que, devido a um pessimismo realista, intrínseco à minha consciência, não consigo crer na concretização de civilizações utópicas - porque seria isso que Comunismo de facto seria, num imaginário coerente: uma civilização mundial e não um sistema num país ou conjunto de países, daí a imperatividade do princípio internacionalista na ideologia -, e também devido às características específicas da minha filosofia materialista e hedonística, não me consigo subscrever num movimento comunista ou anarco-socialista, a celebração dos 100 anos do Partido Comunista Português significa, todavia, uma vitória per se. Após as inúmeras mortes anunciadas do PCP, quer nos períodos de grande crise, na primeira metade do século passado, ou após a desagregação da União Soviética, ou até mesmo nos dias presentes, em que o PCP perde autarquias e deputados nacionais num ritmo progressivo, o partido, contudo, não arreda pé, continua a fazer o seu dia-a-dia político como sempre, e no dia 6 de Março comemorou 100 anos para salvas de muitos e raivas de outros tantos.
É, todavia, menos evidente para muitos dos apoiantes e inimigos do PCP, que esta efeméride, muito mais do que um evento político no qual pode ser colocado o quotidiano muitas vezes superficial da vida política da sociedade portuguesa, é, acima de tudo, um evento histórico. Isto é História a acontecer perante os nossos olhos. Quantos partidos, por esse mundo fora, podem afirmar que durante um século têm aguentado a sua existência, e volvidos todos esses anos se mantenham relevantes na cena política? São poucos, e o PCP é um desses raros partidos. Os contrários à Esquerda política afirmam que tal facto é auto-evidente da deficiência política em que Portugal está emergido. Os demais afirmam que tal facto histórico é prova de que, no povo português, há qualquer veia revolucionária muito particular, que não é encontrada noutras sociedades.
Eu confesso que, quando este centenário chegasse, apesar de não estar filiado ao partido - embora já ter feito actividade política associada ao PCP - julguei que me sentiria politicamente entusiasmado, e festivo até. Infelizmente, ainda que não tenha sido inundado subitamente por uma depressão política, não foi propriamente felicidade que senti, mas antes um profundo sentimento de nostalgia e alguma melancolia. Hoje, quando um histórico partido português representante do Socialismo Marxista comemora um século de vida, o horizonte é nublado, encoberto, duvidoso, evocador de tempos retornados quando odiar e desconfiar era requerido por Estado e Sociedade. E para remate de tanta melancolia, é triste aperceber-me que, para evitar definitivamente que tais tempos retornem, o PCP, atendendo às suas presentes configurações políticas e ideológicas, não faz parte da solução.
O/A convicto/a aderente do PCP poderia abandonar este texto, neste preciso instante, mas convido-o/a a continuar, porque mudar e transformar não é uma incongruência, e é disso que o PCP precisa. Se o PCP pretende que a evocação deste centenário seja mais que isso, então precisa de corrigir-se, integrar o Século XXI como tantos outros partidos comunistas fizeram (já agora, o Partido Comunista Japonês é um excelente exemplo disso), precisa de regressar às origens filosóficas oitocentistas do Socialismo e do Marxismo, abandonar o princípio bem intencionado mas fundamentalmente tóxico do Centralismo Democrático, apostar na cultivação ideológica e intelectual dos seus militantes e das suas vanguardas, retratar-se quanto às suas relações com a URSS no Século XX, abandonar as suas relações com a Igreja Católica e grandes corporações desportivas, reinventar a sua estratégia política (nunca esquecer que as crianças e os jovens são o futuro do mundo) e aceitar e admitir que, quando há uma derrota política, é preciso abordá-la e chegar ao núcleo da sua razão de ser. Enquanto socialista, eram estas reflexões que eu gostava que tivessem sido feitas pelos alegados e alegadas comunistas desta nação. Não deixem que a tão proclamada ortodoxia ideológica turve o vosso juízo: para dogmas já nos chegam as religiões, e se houvesse ortodoxia comunista, essa teria de ser exactamente aquela que era apresentada pelos marxistas originais, no Século XIX.
O texto é muito pouco festivo, é verdade. Talvez muitos poderão assumir, contrariados, que se trata de um sermão. Mas se um centenário não jutifica uma profunda reflexão sobre o passado e o futuro, então o que a justifica? Eu não ponho em causa que o PCP foi o mais fundamental partido político no combate ao Fascismo do Estado Novo (e aquele que mais sofreu). Tampouco ponho em causa que este histórico partido é icónico na cena política portuguesa. Mas se quereis que o PCP regresse às épocas em que mais de 40 deputados comunistas se sentavam na Assembleia da República (quando Álvaro Cunhal carregava, na vanguarda das fileiras, a bandeira vermelha), ou se quereis que tais feitos sejam superados, então o partido precisa de se transformar, porque só não muda e progride aquilo que é teimosamente conservador, e fica no mínimo muito mal a um partido comunista conservar um considerável conservadorismo (o pleonasmo é propositado).
A minha ânsia por um PCP renascido é muito mais profunda do que muitos poderão assumir. Se quisermos fazer frente à grande ameaça que se aproxima, ganhando espaço e terreno, cérebro a cérebro, bairro a bairro, cidade a cidade, precisamos de um movimento político que não só tem a experiência a lidar com tão dissuasoras e perigosas forças políticas, como também tem a estrutura organizacional da qual o PCP dispõe. Precisamos do fogo estrelar e revolucionário que o PCP já provou ter, há 45 anos, se queremos extinguir o obscurantismo de tiranos que se fazem passar por enviados divinos da salvação.
Resta-me deixar as minhas congratulações e os meus agradecimentos.
Nota: Até para quem estiver somente interessado na História centenária do PCP, irá encontrar na mais recente edição da revista Visão História óptimas e interessantes leituras.
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