A propaganda de guerra, envolvendo os seus truques e as suas ilusões transmitidas para o seu público alvo, é uma realidade muito antiga, e certamente tão antiga quanto a própria guerra. As diferentes facções beligerantes reclamam vitórias no seu lado e derrotas no lado contrário. As diferentes facções beligerantes afirmam que o lado contrário é mau e nojento. As diferentes facções beligerantes, por ventura, colocam toda a sua rede de informações ao serviço de uma campanha cujo objectivo é descredibilizar o adversário face à opinião pública internacional. Tudo isto existe, em ambas as barricadas da actual Guerra Russo-Ucraniana, e é normal que assim seja. Muita da guerra combatida é também um braço de ferro de propaganda no qual a meta é alinhar o maior número de nações possível por detrás da respectiva bandeira e da respectiva ‘verdade’ propagandística.
A Rússia, representada pelo seu Chefe de Estado, afirmou que a Ucrânia é governada por nazis e que, em todo caso, é uma ficção enquanto nacionalidade. As autoridades da Ucrânia, por sua vez, já afirmaram que a Rússia está focada em comprometer a estabilidade das centrais nucleares ucranianas, sob pena de provocar um desastre nuclear de proporções continentais. A principal nação mobilizadora da propaganda de guerra ucraniana (para além da própria Ucrânia, claro) - refiro-me, portanto, aos EUA - já afirmou que o Governo Russo tem em mente perseguir tudo o que são activistas de direitos LGBTQ na Ucrânia… como se na Ucrânia as pessoas não-heterossexuais tivessem um nível de liberdade incomparável quanto àquele que é oferecido na Rússia (para não falar das zonas onde quem manda é o Batalhão Azov). Isto vindo de uma potência que tem como um dos seus principais aliados um estado - a Arábia Saudita - que condena qualquer prática ou expressão de homossexualidade com a pena de morte. A ironia da vida. Enfim, tudo o que enunciei está circunscrito à propaganda de guerra de ambos os lados e portanto deve ser interpretada com um elevado nível de cepticismo. Mas há outro tipo de propaganda de guerra: aquela que se esforça para criar um boicote nacional e internacional a tudo o que seja cultura e identidade nacional do seu adversário.
No presente momento, séculos de cultura e criação artística russa enfrentam uma vaga de censura, cancelamento, boicote. O que lhe queiram chamar. Enquanto escolas e universidades por esse mundo fora banem Fyodor Dostoyevsky e Lev Tolstoy de bibliotecas e planos de leitura, orquestras são pressionadas a retirar grandes vultos musicais russos do seu reportório, como são exemplo Pyotr Ilyich Tchaikovsky e Sergei Prokofiev. A grande justificação para a gravidade destes actos asininos é o facto destes escritores e músicos serem russos e portanto serem parte integrante da cultura russa. Uma das evidências que me leva a pensar que, em alguns aspectos, a sociedade dos nossos dias está mais insana do que estava há umas décadas é a seguinte: quando Hitler, enquanto Fuhrer da Alemanha, lançou a blitzkrieg sobre a Europa, não houve compositores e escritores alemães a serem banidos pela singular razão da sua nacionalidade. Ninguém baniu Richard Wagner, que no Século XIX era um óbvio nacionalista alemão. Ninguém baniu Nietzsche, que viria a ter as suas obras deslealmente exploradas e desvirtuadas para alentarem a narrativa racista do III Reich. Mas criadores de cultura como Dostoyevsky, Tolstoy, Tchaikovsky e Prokofiev - que não são inferiores a Wagner e Nietzsche - não têm escapado a este novo surto histérico de cancelamento da cultura russa, num século onde era suposto que, pelo menos aqui na Europa, tivéssemos superado tantos preconceitos e aprendido a ter um discernimento mais sensato. Ora vejamos o que é que estes escritores e músicos bandidos poderão ter feito para, tantos anos volvidos desde as suas mortes, serem submetidos a tão culturalmente irresponsável exercício censório… Nada. Tudo o que fizeram foi existirem e serem russos. No dicionário da língua portuguesa há um termo para descrever este tipo de atitude: russofobia. É o acto de agir em preconceito e discriminação para com algo ou alguém pelo único facto de ter origem na Rússia. Vejamos então nos parágrafos seguintes quem são estes vilões que, pelos vistos, não merecem melhor destino que o oblívio. Começarei pelos escritores.
Fyodor Dostoyevsky (1821 - 1881) foi um autor de romances, contos, ensaios, peças jornalísticas e traduções, considerado regularmente como um dos maiores mestres de ficção da literatura universal. Pessoalmente ainda não tive oportunidade de me familiarizar como devia com a sua bibliografia, todavia, tenho consciência de que a menção deste nome implica uma figura das letras de maior relevância e que as suas obras decisivas, como Crime e castigo (1866) e Os irmãos Karamazov (1880), são marcos da literatura existencialista, corrente esta que haveria de ter um enorme impacto na literatura portuguesa. Problemas com o governo do Absolutismo Régio do Império Russo não escassearam na vida de Dostoyevsky. Tantas vezes foi preso pelo regime absolutista, devido às suas posições ideológicas e filosóficas consideradas subversivas, por um Totalitarismo assente nos princípios sociais do Antigo Regime e apoiado por uma Igreja Cristã Ortodoxa altamente fanática, e vários foram os problemas financeiros que Dostoyevsky teve de aguentar durante os seus périplos pela Europa. Todavia, seria ainda no seu tempo de vida que Dostoyevsky viria a conhecer segurança financeira e sucesso como escritor. Várias obras na sua bibliografia estão traduzidas em mais de uma centena de idiomas. Haveria de falecer em São Petersburgo uns meses antes de comemorar o seu 60º aniversário.
Lev Tolstoy (1828 - 1910) é considerado um dos melhores escritores de sempre, tendo sido consecutivamente nomeado, ao longo de vários anos, a Prémios Nobel, tanto na Literatura como na Paz. Nunca ganhou nenhum, o que configura, até hoje, uma das maiores controvérsias em torno dos Prémios Nobel. Tolstoy é também um dos escritores mais lidos de sempre, com as suas obras traduzidas em mais de uma centena de idiomas (à semelhança de Dostoyevsky). Pessoalmente, guardo dele leituras como A Morte de Ivan Ilyich (1886) e O Reino de Deus está em vós (1894) que francamente me dói ver como alvos de cancelamento, censura, boicote, o raio que lhe entendam chamar. Nascido num ‘berço de ouro’, numa família aristocrata, morreu em circunstâncias míticas e fundacionais do Movimento da Contracultura (que viria a nascer 50 anos depois), renunciando às suas posses nobiliárquicas. Melhor descrito como um pacifista com tendências anarquistas, Tolstoy é talvez um dos grandes precursores dos movimentos socialistas cristãos como aquele a que a Primeira-Ministra portuguesa Maria de Lurdes Pintassilgo viria a fazer parte tantos anos mais tarde, e um dos principais colossos criativos do Realismo artístico a nível mundial. Sem dúvida, Tolstoy foi uma das maiores inspirações intelectuais para Mahatma Gandhi na sua filosofia de resistência não violenta e a sua magnum opus, Guerra e Paz (1869), mantém-se como uma das mais importantes obras da literatura universal.
Agora que escrevi estas sínteses biográficas destes dois escritores entre os criadores de cultura russos alvos de censura, é a vez dos músicos.
Pyotr Ilyich Tchaikovsky (1840 - 1893), hoje considerado um dos mais relevantes compositores musicais da História, conheceu no seu tempo de vida resistência ao seu trabalho artístico na Rússia - por considerarem que as suas obras se desviavam demasiadamente dos tradicionais cânones russos - e na Europa em geral - por considerarem que as suas obras não respeitavam os princípios fundamentais da composição europeia, e portanto eram demasiado russas. A sua vida foi atribulada, preenchida por muitos episódios depressivos, e a auto-reclusão a que sociedade tradicionalista da época o obrigou, no que concerne a sua homossexualidade, não fez favores à sua saúde mental. Apesar de tudo, Tchaikovsky, enquanto um dos colossos do Romantismo - e com certeza o maior 'embaixador' do Romantismo russo a nível musical -, foi bem sucedido em criar uma obra musical que ainda hoje é bem conhecida, e que exerceu tremenda influência sobre a criação musical posterior, inclusive a nível de composição para as artes cénicas. A Abertura 1812 (1882), composta a propósito do 70º aniversário da repulsão do território russo, do exército francês comandado pelo Imperador Napoleão Bonaparte, para além de ser uma das suas peças musicais mais famosas, é também uma obra revolucionária na composição musical e na instrumentalidade musical. Outras obras de Tchaikovsky, dignas de menção e audição, são os balés Lago dos Cisnes (1877) e O Quebra-Nozes (1892). Quanto ao regime czarista, apesar do patriotismo convicto de Tchaikovsky, o músico não nutria grandes paixões por ele, sendo uma pessoa movida pelos valores culturais do Romantismo.
Sergei Prokofiev (1891 - 1953) é um dos mais destacados compositores musicais do Século XX, tendo desenvolvido maior parte da sua obra musical já após a formação da União Soviética, entidade política com a qual o balanço das relações poderá ser interpretado como positivo e amistoso, não obstante alguns fiascos, nomeadamente a ‘acusação de formalismo’ por parte do governo estalinista em 1948 - no espaço soviética, Stalin não queria na arte outra coisa que não fosse Neo-realismo, tudo o resto era totalmente banido. Prokofiev, apesar de ser considerado russo - e era efectivamente como ele próprio se identificava -, nasceu naquilo que hoje é a Ucrânia (que na época do seu nascimento fazia parte ao Império Russo), o que torna ainda mais irónica qualquer atitude de cancelamento da sua música nos dias presentes. Prokofiev teve acesso a uma vida viajada, onde teve oportunidade de fazer concertos de piano e de orquestra na Europa e na América do Norte. Com autorização do Comissariado do Povo, Prokofiev viria a residir nos EUA, França e Alemanha Ocidental, todavia, nos anos 30, devido ao flagelo social e financeiro da Grande Depressão, Prokofiev regressaria permanentemente à URSS onde a crise económica não se tinha feito sentir com a mesma intensidade como no resto do mundo. Tanto no seu tempo de vida como nos dias presentes, a sua obra musical é relativamente negligenciado devido às fissuras criadas pela Guerra Fria, contudo, obras de Prokofiev dignas de menção e audição são o balé Romeu e Julieta (1938), baseado na obra homónima de Shakespeare, - onde consta o famoso andamento Dança dos Cavaleiros - e a ópera Guerra e Paz (1946) baseada na obra homónima de Tolstoy. Um músico prolífico no piano e um compositor que explorou um vasto arco de géneros musicais, Prokofiev viria a falecer pouco antes de fazer 62 anos de idade. A sua morte não recebeu honras especiais por parte da União Soviética.
São estes eternos protagonistas da cultura europeia alguns dos visados por aqueles que juram a pés juntos serem os bons da fita. Será possível que os bons da fita de facto o sejam ainda que promovam atitudes censórias contra indivíduos que nada têm que ver com o que se está a passar? (Pelo Prokofiev não posso meter as mãos no fogo, mas tenho grandes certezas, já agora, que Tolstoy, Dostoyevsky e Tchaikovsky condenariam tal atitude por parte da Rússia. Tolstoy e Dostoyevsky, pelo menos, fizeram-no várias vezes, em situações de relativa semelhança, no tempo do Império dos Romanov). Nada disto faz sentido. Não há nenhuma outra motivação para isto que não seja russofobia. Já foi possível constatar que nenhum destes artistas foi um imperialista de palavra e acção. Já foi possível constatar que estes artistas foram pacifistas, românticos e insurgentes contra o Império Russo, apesar de serem russos. Já pudemos constatar que todos eles, de uma forma ou outra, e em diferentes graus, sofreram às mãos das vicissitudes sócio-políticas da Rússia e da sociedade em geral. Nem Putin, nem o seu círculo de oligarcas, escreveu uma sinfonia ou um livro que seja. Para cúmulo das injustiças, são ícones culturais que nasceram no Século XIX que pagam a factura.
O boicote mais discutido é certamente aquele que foi promovido por imensas orquestras à Abertura 1812 de Tchaikovsky. Inclusive, já houve maestros russos a demitirem-se ou a serem convidados a sair da direcção de orquestras. E nada mais há nesta conjuntura a não ser o facto de eles serem parte da nacionalidade russa. Esta peça musical de 15 minutos é, claro, uma celebração de uma vitória bélica. Tudo naquela obra faz lembrar uma marcha militar. Mas quem a escolhe ostracizar parece esquecer que a vitória russa que esta obra celebra foi um evento militar no qual a Rússia não era o invasor, mas sim o invadido (pondo de lado o facto de terem sido os Romanov quem espicaçaram a França aquando da Revolução Francesa e pondo de lado as aspirações napoleónicas de derrube da Monarquia Absoluta na Rússia). A Abertura 1812 é um dos melhores exemplos de épica celebração patriótica e Romantismo misturados numa experiência musical que desafiou as próprias convenções de estrutura musical e cuja qualidade ainda hoje é apreciada por milhões de pessoas por esse mundo fora. Deixem Tchaikovsky em paz!
Coloquemos a hipótese: Ainda que nenhum destes escritores e músicos tivesse um papel de explícita intervenção na sociedade, ainda que nenhum destes ícones culturais tivesse tido contendas com o status quo que os circundava, ainda que nenhum destes indivíduos se tivesse insurgido explicitamente contra o imperialismo ou uma qualquer ditadura de pensamento único, as respectivas obras literárias e musicais falariam por si, e falam por si - têm voz própria. Claro que as obras são aquilo que são devido à natureza e à motivação dos respectivos criadores, e portanto as obras têm o seu conteúdo devido às experiências e ao pensamento do seu criador, mas tal não anula uma máxima que quanto a mim é basilar para a vida cultural e a criação artística de uma sociedade: Arte pela arte - a ideia-chave do Manifesto Esteticista de Oscar Wilde, e que encontrou seguidores no Modernismo do Século XX, inclusive em grandes escritores portugueses como José Régio.
O ideal esteticista - com evidentes raízes no Romantismo britânico - de “arte pela arte” significa que a arte não têm obrigação de promover, forjar, espelhar ou alentar outra coisa que não seja a criação de beleza e prazer artístico, independentemente dos sentimentos e emoções que tal criação provoque. É o ideal derradeiro de liberdade para a criação artística, e é o ideal que as sociedades liberais e conservadoras do Século XXI parecem rejeitar, numa época onde as ambiguidades e relatividades qualitativas do Pós-modernismo parecem imperar. Uma época também onde reina o princípio de dois pesos e duas medidas: se, numa histeria de eliminação cultural (talvez lhe devêssemos chamar ‘O Grande Salto Atrás’, como outros saltos que afirmaram erroneamente serem para a frente), decidíssemos começar a perseguir todos os criadores de cultura que, ao longo da História, possam ter emitido e alentado visões tóxicas da sociedade, bem que poderíamos declarar a cruzada contra toda a cultura. Mais valia começarmos a fazer como os fundamentalistas islâmicos e declarar qualquer instrumento musical como banido. Bem que podíamos cancelar tudo e mais alguma coisa. Seria mais uma lindíssima reedição da caça às bruxas. Wagner seria dos primeiros a serem despejados para as profundezas de Tártaro. Adeus Cavalgada das Valquírias. Não restaria música, nem pintura, nem livro.
Parece demasiado fácil banir uns quantos livros e umas quantas peças musicais, e deixar uns quantos escritores e músicos russos na sombra - por ventura onde o comum dos norte-americanos os quer ver. Fazer isso é cometer um crime contra a própria arte e contra a própria criação artística. A Europa consegue ser melhor que isso. A Humanidade consegue ser melhor que isso, e tanto as culturas mundiais têm a agradecer à criação feita na Rússia. Querem fazer esforços para impedir que jovens leiam Tolstoy e Dostoyevsky? Querem barrar uma pessoa da minha idade, ou mais nova, de entrar em contacto com uma experiência musical de Tchaikovsky ou Prokofiev? Aos meus olhos, isso é um crime. Boicotar música e literatura devido somente à sua nacionalidade é um crime que brada aos céus. Nada mais há aqui em causa, e basta! É um atentado contra a cultura. Deixem em paz a cultura russa!
Apraz-me constatar que na República Portuguesa tais diligências censórias ainda não tiveram efeito.
Sábado, 28 de Ventoso CCXXX