terça-feira, 8 de março de 2022

Manifesto Russell-Einstein

Um prefácio modesto:

À luz dos dias de incerteza que temos vivido, com a guerra de regresso à Europa, e com uma guerra cujas ramificações poderão revelar-se calamitosas para a paz mundial, julguei oportuno publicar neste blog, em quantidade integral, aquele que é conhecido como o Manifesto Russell-Einstein.


Este texto, subscrito pelos cientistas e intelectuais mencionados abaixo do Manifesto, foi promovido e redigido por duas das maiores mentes que a Humanidade já conheceu: Bertrand Russell e Albert Einstein. Einstein, efectivamente, escusa introduções, mas ainda assim irei fazê-la:


A sua mente prodigiosa estabeleceu o actual paradigma científico no que concerne ao ramo da Física, tendo sido galardoado com o Prémio Nobel da Física em 1921, e o seu activismo na sociedade internacional falou sempre contra os perigos do Totalitarismo e contra a sociedade belicista. Convém recordar que Einstein foi uma das vítimas da emergência nazi na Alemanha, devido à sua etnia judaica, tendo sido obrigado a fugir da sua nação mãe quando Hitler chegou ao poder, já estando galardoado com o Prémio Nobel. Felizmente, a sua fuga seria um sucesso, tendo conseguido encontrar asilo nos EUA presididos por Roosevelt, onde eventualmente viria a ser Professor na Universidade de Princeton. Durante duas décadas Einstein foi conselheiro da Casa Branca em matérias científicas e relacionadas com a Defesa e inclusive foi convidado a assumir a presidência do Estado de Israel aquando da sua fundação, não obstante a ter recusado. Ideologicamente, Einstein foi também um advogado da causa socialista e democrática durante boa parte da sua vida. 


Bertrand Russell, galardoado com o Prémio Nobel da Literatura cinco anos antes da publicação do Manifesto, foi o principal proponente do texto que se seguirá, e foi um autêntico polímata em plena Idade Contemporânea. Um Professor, matemático e filósofo da lógica - ciência cognitiva e ciência da computação - no ramo da sua formação e profissão, dedicou-se também a outras áreas da Filosofia e à História. A sua militância ateísta e a favor da Ciência são uma das minhas grandes inspirações ideológicas e filosóficas. O seu estatuto como aristocrata galês no Reino Unido nunca o distraiu das atribulações socioeconómicas da Classe Trabalhadora e a sua maior causa como membro da Câmara dos Lordes no Parlamento Britânico foi a abolição dessa mesma Câmara e o avanço de políticas socialistas. Sobretudo, Lord Russell foi o Lord Byron do Século XX, com menos poesia mas mais Socialismo. Foi ele que pessoalmente inspirou os Beatles a politizarem-se e, com 90 anos de idade, Russell liderava o Movimento da Contracultura na Inglaterra. Aos 89 anos, Russell esteve preso na Prisão de Brixton, por “disromper a paz”, após ter estado numa manifestação contra a guerra e o armamento nuclear em Londres. 


O Manifesto Russell-Einstein é pertinente não só pela sua importância como fonte historiográfica, mas também pela sua actualidade e pelas suas observações relativamente à fina linha em que a Humanidade caminha. É também um dos textos fundacionais do Movimento da Contracultura - ao qual este blog está e sempre estará inequivocamente afecto. Hoje as circunstâncias globais podem não ser exactamente as mesmas, mas o conflito entre o dito “Leste” e o dito “Ocidente” mantêm-se, e os perigos de hoje podem tornar-se tão reais como aqueles que eram observados em 1955, quando este texto foi redigido. O assunto de preocupação, em primeiro plano, sobre o qual este texto se debruça é a ameaça da guerra nuclear para a existência da Humanidade. Na época em que este Manifesto foi escrito ainda não havia o grau de conhecimento que hoje existe relativamente à capacidade de destruição de armas nucleares. Do ponto de vista científico, o futuro não só veio a dar razão ao texto de Bertrand Russell e Albert Einstein, como veio também a agravar as preconizações dos signatários do Manifesto. Há armas, nos dias presentes, com o tenebroso poder de destruição nacional instantânea. 


A constante narrativa dos bons e dos maus na contenda que vemos desenrolar-se em território europeu é uma acha na fogueira onde a Europa poderá ser queimada e é um convite a uma guerra mundial que conduzirá à morte universal de tudo. Aceitaremos esse convite?


Segue-se o Manifesto, traduzido por mim directamente do inglês, o idioma em que foi escrito. Para quem quiser consultar a versão original, poderá fazê-lo em https://www.atomicheritage.org/key-documents/russell-einstein-manifesto



«Na trágica situação enfrentada pela Humanidade, considerámos que os cientistas deveriam reunir-se em conferência para avaliar os perigos que surgiram como resultado do desenvolvimento de armas de destruição massiva, e para discutir uma resolução na linha da ata anexada.


Nós falamos, nesta ocasião, não como membros desta ou daquela nação, continente, ou credo, mas como seres humanos, membros da espécie humana, cuja contínua existência está em causa. O mundo está cheio de conflitos; e, eclipsando todos os demais conflitos menores, a luta titânica entre Comunismo e Anti-comunismo.


Quase todas as pessoas que são politicamente conscientes têm sentimentos fortes relativamente a um ou vários destes assuntos; mas nós queremos, se conseguirem, que coloquem de lado tais sentimentos e considerem-se somente como membros de uma espécie biológica que tem tido uma história notável, e cujo desaparecimento nenhum de nós pode desejar.


Nós iremos esforçar-nos para não dizer uma única palavra que possa apelar a um grupo mais do que outro. Todos, igualmente, estão em perigo, e, se o perigo for compreendido, há esperança de que colectivamente o possam evitar.


Temos de aprender a pensar de uma forma nova. Temos de aprender a perguntar-nos, não que passos podem ser dados para dar vitória militar para qualquer um dos grupos que possamos preferir, pois já não existem tais passos; a questão que temos de nos colocar é: que passos podem ser tomados para prevenir uma contenda militar cujo desfecho será desastroso para todos os partidos?


O público em geral, e até muitos homens em posições de autoridade, não compreenderam o que estaria envolvido numa guerra com bombas nucleares. A opinião pública ainda pensa em termos de obliteração de cidades. É compreendido que as novas bombas são mais poderosas que as antigas, e que, enquanto uma Bomba Atómica poderia obliterar Hiroshima, uma Bomba de Hidrogénio poderá obliterar as maiores cidades, como Londres, New York, ou Moscovo.


Sem dúvida que numa guerra com Bombas de Hidrogénio grandes cidades seriam obliteradas. Mas este é um dos desastres mínimos que seriam enfrentados. Se toda a gente em Londres, New York e Moscovo fosse exterminada, o mundo poderia, dentro de alguns séculos, recuperar desse impacto. Mas agora sabemos, desde o atol de Bikini, que as armas nucleares podem espalhar destruição sobre uma maior área do que aquela que estava preconizada.


É agora afirmado com propriedade que uma bomba poderá agora ser manufacturada e que poderá ser 2500 vezes mais poderosa que a que destruiu Hiroshima. Tal bomba, se for explodida perto do solo ou debaixo de água, envia partículas radioactivas para a atmosfera superior. Elas descendem gradualmente e atingem a superfície da terra sob a forma de uma mortífera poeira ou chuva. Foi esta poeira que infectou os pescadores japoneses e a sua pesca. Ninguém compreende o quão disseminadoras serão tais partículas radioactivas, mas as melhores autoridades são unânimes em afirmar que uma guerra com Bombas de Hidrogénio poderá pôr um fim à espécie humana. Teme-se que se muitas Bombas de Hidrogénio forem usadas haverá morte universal, súbita apenas para uma minoria, mas para a maioria uma tortura lenta de doença e desintegração.


Muitos foram os avisos endereçados por homens da ciência e por autoridades de estratégia militar. Nenhum deles afirmará que os piores desfechos serão certos. O que eles afirmam é que estes desfechos são possíveis, e ninguém tem a certeza de que não aconteçam. Ainda não determinámos se estas perspectivas de especialistas, nesta questão, dependem em algum grau das suas opiniões políticas ou dos seus preconceitos. Elas dependem somente, no que concerne aquilo que as nossas investigações têm revelado, da extensão de conhecimento dos ditos especialistas. Nós averiguámos que os homens que mais sabem são aqueles que estão mais amedrontados.


Eis, então, o problema que colocamos perante vós, enfático e tenebroso e inescapável: Colocaremos um fim à espécie humana; ou deverá a humanidade renunciar à guerra? As pessoas não quererão encarar esta escolha porque abolir a guerra é demasiado difícil.


A abolição da guerra implicará desagradáveis limitações quanto à soberania nacional. Todavia, aquilo que provavelmente impede uma melhor compreensão da situação, mais do que qualquer outro aspecto, é o termo “humanidade” parecer algo vago e abstracto. As pessoas dificilmente entendem na sua imaginação que o perigo é real para si próprias, e para as suas crianças e os seus netos, e não apenas para uma pequena porção da humanidade. As pessoas dificilmente poderão compreender que elas, individualmente, e aqueles que amam estão em iminente perigo de desaparecerem de forma agonizante. E, portanto, as pessoas têm esperança de que talvez a guerra possa continuar desde que as armas modernas sejam proibidas.


Esta esperança é ilusória. Quaisquer que tenham sido os acordos, celebrados em tempos de paz, para que Bombas de Hidrogénio não sejam usadas, tais acordos não seriam mais observados em tempos de guerra, e ambos os lados iriam trabalhar para produzir Bombas de Hidrogénio assim que a guerra tivesse início, porque se um lado produzisse as bombas e o outro não o fizesse, o lado que as tinha produzido seria inevitavelmente vitorioso.


Embora um acordo para renunciar armas nucleares como parte de uma redução geral de armamento não iria fornecer uma solução derradeira, serviria contudo propósitos importantes. Primeiro, qualquer acordo entre Leste e Ocidente só será benéfico se tendenciar a diminuição da tensão. Segundo - a abolição de armas termo-nucleares - se cada lado acreditasse que o outro lado as tinha abolido sinceramente, tal iria diminuir o receio de um ataque súbito ao estilo de Pearl Harbor, que presentemente mantém ambos os lados num estado de nervosa apreensão. Deveríamos, portanto, encorajar tal acordo, embora apenas como primeiro passo.


A maioria de nós não é neutral quanto aos seus sentimentos, mas, enquantos seres humanos, temos de nos recordar que, se os problemas entre Leste e Ocidente têm de ser resolvidos num qualquer formato que possa trazer satisfação para alguém, seja Comunista ou Anti-comunista, seja Asiático ou Europeu ou Americano, seja Branco ou Negro, então estes problemas não poderão ser decididos por via da guerra. Nós desejamos que isto seja compreendido tanto no Leste como no Ocidente.


Perante nós há, se assim o escolhermos, contínuo progresso na felicidade, no conhecimento, e na sabedoria. Escolheremos antes a morte, porque não conseguimos esquecer as nossas quezílias? Nós apelamos como seres humanos perante seres humanos: Lembrem-se da vossa humanidade, e esqueçam o resto. Se assim conseguirem pensar, o caminho está aberto para um novo Paraíso; se não conseguirem, perante vós está o risco de morte universal.


Resolução:


Nós convidamos este Congresso, e através dele os cientistas do mundo e o público em geral, a subscrever a seguinte resolução:


“Tendo em vista o facto de que numa futura guerra mundial serão certamente empregues armas nucleares, e que tais armas ameaçam a contínua existência da humanidade, nós apelamos aos governos deste mundo a compreenderem, e a reconhecerem publicamente, que os seus propósitos não podem ser prosseguidos numa guerra mundial, e apelamos, consequentemente, que encontrem meios pacíficos para resolverem todas as formas de disputa que possam haver.”


Max Born


Percy W. Bridgman


Albert Einstein


Leopold Infeld


Frederic Joliot.Curie


Herman J. Muller


Linus Pauling


Cecil F. Powell


Joseph Rotblat


Bertrand Russell


Hideki Yukawa»



Martes, 17 de Ventoso CCXXX


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