sexta-feira, 25 de junho de 2021

A Bandeira Arco-Íris e suas Causas

Interrompendo a série de trabalhos que tenho vindo a editar no Pensatório - dos quais só irei publicar mais um, em princípio, no início do próximo mês - trago hoje um assunto por ocasião da efeméride que é celebrada por milhões de pessoas em todo o mundo no mês de Junho, o mesmo mês do Solstício de Verão, por coincidência. Não será um texto de teor historiográfico e tampouco será uma sintética biografia sobre a minha sexualidade, como a que publiquei há dois anos. Será antes uma reflexão minha, ligeiramente difusa, sobre o significado das Marchas Pride e sobre a importância (no meu entendimento pessoal e político) do activismo em prole da defesa dos direitos Queer. 


No mês de Junho, o mês onde se observa maior proliferação de simbologia com o arco-íris - tótem de celebração e luta por libertação sexual e social -, constatamos a abundância de corporações e entidades várias que, da noite para o dia, abraçam a causa dos direitos Queer, exibindo nos seus logotipos e nas suas campanhas o arco-íris, quase como se o tivessem feito desde sempre. Como sempre, no que concerne a narrativa das corporações económicas, a realidade é outra. Há um respeitável número de economica e culturalmente poderosas corporações, desde a BMW até à Coca-Cola, que no Século XXI abraçam a bandeira multicolor com todos os braços possíveis, mas que nos anos 30 do século passado faziam campanhas onde ostentavam a Suástica Nazi. Ainda que estejamos a falar de uma distância histórica de 80 anos, não será possível ficar indiferente ante tamanha incoerência ideológica, nem que seja para esboçar um leve sorriso ante a ironia da vida. Mas será de facto incoerência? Se assumirmos que a única e verdadeira ideologia por detrás das grandes corporações económicas é o lucro, por mais oportunista e anti-democrático que seja (a isto chamamos Capitalismo), então não há incoerência porque o lucro voa consoante os tempos e as mentes.


O que se deve exigir de todas as pessoas que se inciram dentro da longa sigla (LGBTQ+), que com o tempo vai ficando cada vez maior e cada vez menos esteticamente apelativa, é que não acreditem no Rainbow Capitalism (capitalismo arco-íris), tal como é fantasiosa a possibilidade de um Capitalismo verde, e que tenham em mente que são inúmeras as facções políticas que só ontem passaram a contemplar causas de libertação sexual. Estas facções políticas, oportunistas em muita da sua essência, não são diferentes das corporações anteriormente mencionadas, sendo o objectivo desse oportunismo a única diferença: as corporações procuram o lucro financeiro, as facções políticas procuram o voto de uma juventude, por vezes, facilmente impressionável.


Há, pois, uma principal crítica a este discurso que aqui apresento, a crítica "preso por ter cão, preso por não ter". Criticas as empresas e os partidos por mostrarem solidariedade para com a causa dos direitos LGBT, mas se não mostrassem solidariedade também criticarias, qual é a lógica disso?, isto é o que muitos me poderão responder. É por isso que é importante olhar para a História. É no passado que estão contidas muitas das razões do presente. Para melhor evidenciar e explanar o ponto a que pretendo chegar, parto de dois exemplos: o estado a que pertenço, a República Portuguesa; e a maior potência global, os Estados Unidos da América.


Em Portugal, só com a entrada em vigor do actual Código Penal (1982), após a Revolução de Abril, é que a homossexualidade deixou de ser considerada um crime, e apenas há 11 anos é que a República passou a reconhecer o matrimónio de pessoas do mesmo sexo. Quanto a legislação que protega não só a homossexualidade como também as pessoas transgénero, esta tende a ser uma realidade ainda mais recente, e ainda há mais avanços por efectuar. Por exemplo, as pessoas transgénero ainda não têm liberdade para servir nas Forças Armadas e as terapias de conversão em menores, relativamente à orientação sexual, ainda não foram banidas pela República. Durante todo este período de 40 anos de avanços vagarosos, as entidades actoriais da cena política são quase todas as mesmas: os partidos, as corporações, as influências culturais, e inclusive a Igreja Católica. O discurso, da maioria das individualidades que compõem esses colectivos, contra a comunidade Queer, na época, era muito mais violenta e segregacionista do que é hoje. Aliás, hoje, felizmente, podemos assumir que a maioria não é hostil contra a Comunidade Queer (ainda que eu coloque defronte desta afirmação muitas reticências). O que terá mudado para haver tão brusca mudança de sentimentos? Não me interpretem mal! Eu estou grato pelos avanços e também estou grato por movimentos políticos, com os quais muito pouco tenho a ver, como a Iniciativa Liberal, apoiarem estas causas humanitárias (ainda que façam figuras plenamente deploráveis em arraiais semi-clandestinos), todavia será que aqueles que, há 40 anos, no seu estilo mais troglodita possível, vociferavam contra os "paneleiros" e os "maricas", nos seus traumáticos vocábulos (perdoem-me as horríveis expressões), se tenham tornado tão pacíficos e amistosos? Falo, por exemplo, da Igreja Católica e do CDS (há, inclusive, uma ala dentro do CDS, a TEM, que é tão hostil como o Partido Chega). Fachada, hipocrisia e falsidade é o que instituições como a Igreja e o CDS têm a oferecer. Não é pelo Adolfo Mesquita Nunes ser gay que o CDS passou a ser muito tolerante. Venderem o partido assim não é diferente da Coca-Cola se vender com o arco-íris no Pride Month. Da Igreja Católica nem são necessários comentários. E o facto de instituições evidentemente homofóbicas e transfóbicas, e personalidades de igual baixa qualidade, continuarem a ter visibilidade e notoriedade pública demonstra que as grandes estações de comunicação social não estão assim tão empenhadas na defesa de causas humanitárias que afirmam defender. Alguém acredita que há representatividade de pessoas de diferentes orientações sexuais e de géneros não-binários na cena social, cultural e mediática em Portugal?


Nos EUA, o outro exemplo, a situação ainda é pior. Muitos dos estados sulistas só descriminalizaram a homossexualidade em 2003 e em largas partes daquela nação, tanto a nivel laboral como a nível quotidiano, a miriade de acessos vedados, omissões, ou ausência de proteções legais contra discriminação, relativamente a pessoas LGBT+, é muito grande. Que seja consultado o artigo LGBT rights in the United States, na Wikipedia, e o/a leitor/a tem um resumo muito esclarecedor do que estou a falar, com mapas e grelhas. E, todavia, a cultura popular e o status quo tenta vender-nos os EUA como este extraordinário paraíso da liberdade. Quem nos vende isto são partidos, são corporações e são os Media, e se eles de facto estivessem tão empenhados em defender a Bandeira do Arco-Íris, não omitiam o facto de que, em boa parte da União Americana, ser Queer é passar por provações imensas às mãos de instituições e indivíduos. E entretanto a máquina da mudança, lá, é bloqueada por um aparelho político omnipotente que vê a sua arcaica constituição como uma bíblia intocável e dogmática. É tão irónico que a nação fundadora da constituição moderna seja, hoje, uma das nações que menos compreende o fundamento de uma constituição. Entretanto, enquanto que o Partido Republicano e a Fox News são vistos como os maus da fita (eu mais diria que são entidades horrendas), o Partido Democrático e a CNN surgem como figuras preclaras e ultra-tolerantes... o que também é falso. Eu não acredito que o Partido Democrático e os seus actores tenham sido convencidos, num espaço de 20 anos, de que eles eram, no passado, profundamente preconceituosos e que estavam errados. Este partido, que perante nós é apresentado como muito razoável, só neste século é que decidiu começar a discutir estes assuntos, enquanto que políticos como Bernie Sanders já faziam activismo por estas causas há décadas. Joe Biden e Barack Obama, por exemplo, em 2008, tinham a convicção de que o casamento só deve ser reconhecido quando sucede entre um homem e uma mulher, sustentando esta convicção falasiosa nos seus inalteráveis e anacrónicos dogmas cristãos. Em 2012, claro, a cassete teve de ser trocada porque o Partido Democrático começou a sentir-se excessivamente pressionado para apelar a uma considerável massa de cidadãos que queriam ver os seus direitos reconhecidos, e nos quais o Partido Democrático tinha oportunidade de capitalizar. Nestas coisas, o Partido Democrático consegue ser muito mais flexível do que o Partido Republicano, daí a panóplia enorme de tendências dentro da organização política, desde a Esquerda à Direita. Mas que não se julgue que esta mudança de opinião se baseou inteiramente em princípios democráticos e humanitários. Tal como nas grandes corporações, que só desde ontem passaram a reconhecer o arco-íris, o objectivo primeiro era o lucro, neste caso político. E entretanto, na terra dos 50 estados, imenso há ainda a evoluir (evidentemente, há estados que são verdadeiramente progressistas e simpáticos, mas são uma minoria de quatro ou cinco). 


Voltando à Europa e a Portugal, a mais recente proclamação do dever de neutralidade diplomática da República Portuguesa, ante a galopante homofobia institucional cozinhada pelo governo cripto-fascista da Hungria, vem reforçar aquilo que escrevi há dois parágrafos. À luz da ética universal e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, há um assunto que não pode ser encarado como objecto de neutralidade: os direitos humanos, precisamente. Que a diplomacia portuguesa ainda é pior que a diplomacia da Comissão Europeia, disso não restam dúvidas, mas que a minha República descesse ao ponto de, ao abrigo da sua presente presidência do Conselho da União Europeia (ou seja lá o que for que António Costa desenvencelhou como justificação) não participar, com restantes nações europeias, na condenação do Estado Húngaro, isso deixa-me verdadeiramente chocado. Quanto à UEFA, não me posso considerar chocado porque, no mundo do football, já sabemos que há uma sanha de silêncio e repúdio encapotado da homossexualidade celebrada. Quantos jogadores de football, que não são heterossexuais, estão fora do armário? Muito poucos, e isso também é reflexo do ambiente no interior da indústria, tal como é reflexo de uma massa de adeptos pouco sensíveis aos princípios de liberdade sexual e social, e isto, com muita pena minha, acontece muito em Portugal. Não basta só meter o arco-íris no fundo do logotipo. É preciso actuar sobre isso. É preciso trazer à justiça e à responsabilidade aqueles que querem colocar em risco de vida  os cidadãos e cidadãs queer da nossa sociedade nacional e global.


É por tudo isto, e muito mais, que a bandeira multicolor é importante, e que as marchas que têm lugar em todo o mundo são importantes. Há uma causa que exige ser defendida porque ainda há muitos que a querem destruir. E, quanto a mim, dado o clima que ainda se vive em todo o mundo, as marchas devem ser um pouco menos carnavalescas (atenção que eu gosto muito do Carnaval) e um pouco mais políticas e manifestantes. Uma Pride March é uma celebração mas também deve ser um protesto contra a opressão sob todas as formas que pode adoptar, uma manifestação que abraça de igual forma a universalidade dos povos... até ao dia em que estas formas de opressão e discriminação tenham desaparecido das mentes e estruturas da nossa civilização. Até esse dia, a marcha não pode parar e tampouco pode cessar a nossa actividade contra atitudes e crimes de ódio.


Quanto a mim, envergar a Bandeira Arco-Íris é o menos. O que de facto pesa é uma sociedade desperta para placar a discriminação e a agressão, seja nas ruas, nas casas, nos locais de trabalho, nos bares, nos restaurantes, nos parlamentos... e nos parlamentos deste mundo e desta Europa há muito por onde placar. No nosso parlamento, por exemplo, os prevaricadores do preconceito odioso irão crescer, graças, também, à maioria da classe política não estar interessada nestes direitos (e noutros) e, com muito pena minha, devido a uma substancial massa social portuguesa demasiado retrógada para tirar o cérebro da missa e do passado obscuro desta nação. Infelizmente, no Processo Histórico, são as mentalidades que sempre demoram mais a mudar. 

Todavia, apesar de tudo, na Europa e nas Américas, a realidade é mais luminosa do que foi outrora. Em nações como o Japão, inclusive, recupera-se uma tolerância de diversidade sexual que durante séculos caracterizou estas sociedades. E é por isso que não devemos perder a esperança e devemos ter confiança na evolução progressista da Processo Histórico. Para mim, enquanto socialista e hedonista, que não reconhece a existência de divindades, a Bandeira Arco-Íris representa a vanguarda que luta pela prosperidade e iluminação de todas as gentes, e pelo direito inalienável à felicidade e ao prazer de todas as pessoas, independentemente de origens geográficas, género ou natureza da sexualidade. É imperativo que se escolha o amor e a paz em oposição ao ódio e à guerra, ainda que esse caminho, muitas vezes, possa ser uma via difícil e que exiga coragem.

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