quinta-feira, 10 de junho de 2021

Praxis do Marxismo-Leninismo: Vanguardismo Revolucionário

Continuando na série dos meus textos académicos, o presente ensaio foi por mim elaborado no âmbito da cadeira de Filosofia Política, leccionada pelo Professor Giovanni Damele, por mim frequentada no 1º semestre do meu 3º ano de Licenciatura. Não ocorra a ninguém a ideia de que se trata de um panfleto político, pois este é um ensaio desenvolvido sobre um assunto da Filosofia Política, com naturais características historiográficas - trata-se, portanto, de um trabalho académico e não uma manobra saloia de propaganda. As demais ressalvas já foram feitas na primeira publicação desta série. Boa leitura para quem queira.


Marxismo-Leninismo é o termo que passou à posteridade, para identificar as teorias e práticas filosófico-políticas, encabeçadas pelos revolucionários bolcheviques, durante a Revolução de Outubro (1917), e, sobretudo, é o conceito identificativo das interpretações da filosofia marxista, aplicada à realidade russa do início do Século XX, feitas por Vladimir Lenin. É oportuno, portanto, clarificar que o Marxismo-Leninismo não é uma extensão (ou uma continuação) do Marxismo clássico – apesar de Lenin insistir, no decurso da sua obra intelectual, de que a ortodoxia marxista reside no pensamento bolchevique -, mas é, sim, uma entre muitas das suas interpretações, que ao longo de 170 anos moldaram o próprio Marxismo, e a forma como este é transmitido ao mundo [da mesma forma que o Marxismo-Leninismo não é uma continuação do Marxismo, também o Marxismo enquanto movimento político não é um prolongamento do pensamento de Karl Marx, mas sim, também, uma interpretação inferida pelos seus seguidores filosóficos e políticos]. Vanguarda do Proletariado é um conceito inserido dentro da corrente marxista-leninista, sendo uma terminologia que identifica a interpretação que Lenin fez da relação do Proletariado (Classe Trabalhadora) com a praxisrevolucionária, apontando aquilo que, segundo esta teoria vanguardista, o Proletariado precisa para executar e consolidar uma revolução.


Antes da teoria da Vanguarda ser abordada, será oportuno fazer algumas breves considerações sobre o Materialismo Histórico [uma das três bases conceptuais do Marxismo, para além do Materialismo Dialéctico e do Socialismo Científico], através da visão leninista, para que os pressupostos do Vanguardismo sejam interpretados coerentemente. Lenin, denominando o Materialismo como a base filosófica do Marxismo, identifica-o como “a única filosofia consistente, fiel aos ensinamentos das ciências naturais e hostil à religião, retórica hipócrita, entre outras coisas”, afirmando que foi esta corrente de pensamento que guiou as insurgências e revoltas europeias setecentistas, dando destaque à Revolução Francesa. [Lenin, 1913] Interiorizando a Dialéctica da Luta de Classes, teorizada por Marx e Engels, Lenin afirma - tendo em conta aquilo que é a teoria de evolução paradigmática económica do Marxismo [Esclavagismo, Feudalismo, Capitalismo, numa substituição ‘cíclica’ da Classe Dominante pela Classe Oprimida, organizada na Dialéctica Hegeliana de que duma tese e duma antítese resulta uma síntese e, portanto, um novo paradigma] - que, aquando do derrube do paradigma feudalista, e substituição das classes privilegiadas do Antigo Regime pela Burguesia, nenhuma “vitória no âmbito das liberdades políticas [da Classe Trabalhadora] sobre a classe feudal foi ganha excepto contra resistência desesperada”, mais argumentando que nenhum estado capitalista “evoluiu numa base relativamente livre e democrática excepto num conflito de vida ou morte entre as várias classes da sociedade capitalista [Idem]”. É aqui que Lenin consubstancia os seus apelos para a revolução socialista do Proletariado: apesar dos desenvolvimentos económicos e tecnológicos da Civilização, com o advento do Capitalismo, a Classe Trabalhadora não atingiu um estádio que se assemelhe a uma sociedade livre e democrática, e, assim sendo, é necessária uma revolução na qual as massas populares ganhem controlo dos meios de produção. É no trilhar deste caminho do Proletariado, desde a aurora da Revolução até à consolidação do paradigma socialista, que Lenin desenha a teoria da Vanguarda do Proletariado. Antes de abordar, então, o Vanguardismo, convém fazer duas ressalvas sobre as quais não irei dissertar. O primeiro é que todo o Marxismo-Leninismo, assim como a teoria da Vanguarda, tem de ser visto como produto das realidades específicas duma Rússia ainda muito retardada socialmente, e com uma certa forma de Feudalismo ainda vigente. O segundo é que, no meu ponto de vista, Lenin adoptou uma postura aceleracionista ante a filosofia marxista e a sua dialéctica e, portanto, contraproducente perante a própria teoria que procurava interpretar, uma vez que a Rússia ainda não tinha entrado, totalmente, numa dinâmica capitalista.


Há dois principais textos que evidenciam e descrevem a teoria vanguardista de Lenin. Um escrito entre Agosto e Setembro de 1917, pouco tempo antes de explodir a Revolução de Outubro, intitulado O Estado e a Revolução, cujo fim principal é descrever o papel do Estado, numa revolução socialista, onde a Ditadura do Proletariado é instituída, dissertando sobre as incongruências da Social-Democracia com tal ideia. O outro texto – este é não só o trabalho que introduz a teoria vanguardista, como também é o principal texto dedicado à Vanguarda do Proletariado – escrito antes das Revoltas de 1905, em 1902, portanto, intitulado Que Fazer?, lida com a relação entre o Proletariado e o método revolucionário que a Classe Trabalhadora precisa adoptar, para a consolidação do Socialismo, e qual o papel da Vanguarda neste processo revolucionário. É com base nestes dois textos que abordarei a teoria vanguardista.


O Vanguardismo Revolucionário ganha forma como reacção às interpretações de cariz reformista (e não revolucionário) que os sociais-democratas de então faziam ao Marxismo [icónicos bolcheviques, como Leon Trotsky, estavam em 1902 entre estes sociais-democratas que Lenin criticava]. Lenin acusa este tipo de sociais-democratas de descaracterizarem e desvirtuarem a teoria marxista, argumentando que a “larga disseminação do Marxismo foi acompanhada por um certo decréscimo do nível teórica”, levando a uma situação em que muitos indivíduos se juntaram ao RSDRP [Partido Social-Democrata Trabalhista Russo] sem terem qualquer “treino teórico[Lenin, 1902, 12]. Para Lenin, no seio de um movimento revolucionário e disciplinado tal é impossível, pois, para ele, “Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário[Idem, 12]. Também quanto à questão do papel do Estado, Lenin afirma que os partidos sociais-democratas têm-na deliberadamente escamoteado [Lenin, 1918, 16], defendendo Lenin que, para o Proletariado, o Estado deve servir como um mecanismo para “suprimir a resistência dos exploradores, e apenas o proletariado pode dirigir esta supressão[Idem, 17]. Lenin, à luz dos escritos de Friedrich Engels, e ao contrário das posições do Anarquismo de Esquerda, vendo o Estado como um mero instrumento para o Proletariado destronar a Burguesia como Classe Dominante, de modo a que a transição do paradigma socialista possa ter lugar – para que num utópico futuro possa ser fundada a civilização comunista -, entende que o Estado não deve ser abolido, mas deve antes ser dissolvido, num processo histórico e gradual. [Idem, 12, 17]


A filosofia de Marx é um materialismo filosófico consumado que forneceu à humanidade, e especialmente à classe trabalhadora, poderosos instrumentos de conhecimento. [Lenin, 1977]” É sobre esta afirmação que podemos erguer toda a teoria vanguardista. Lenin vê no Marxismo a tocha iluminadora, do Proletariado e da teoria e praxis da sua Vanguarda, “capaz de assumir poder e liderar o povo rumo ao socialismo, de dirigir e organizar o novo sistema, de ser o professor, o guia, o lider de toda a classe trabalhadora e explorada em organizar a sua vida social sem a burguesia e contra a burguesia[Lenin, 1918, 18]. É nesta ordem de ideias que Lenin clarifica, no contexto das aspirações revolucionárias, que o Proletariado, per se, sem liderança intelectualmente esclarecida e ideologicamente formada, está impossibilitado de levar a cabo um processo revolucionário. Para o efeito, a propósito do espírito espontâneo do Proletariado, Lenin afirma que nunca surgiu ou surgirá uma “ideologia independente formulada pela própria classe trabalhadora no decorrer do seu movimento”, e que, no seu entender, não havendo uma “terceira ideologia”, o Proletariado só tem duas vias a escolher: aquela que lhe é impingida pela Burguesia, ou aquela que lhe é apontada pela Vanguarda, rumo à libertação. [Lenin, 1902, 23] De acordo com a teoria vanguardista, Lenin argumenta que qualquer insurgência espontânea por parte do Proletariado resulta em desorganização e na iminente derrota do Proletariado, pois o “espontâneo desenvolvimento do movimento da classe trabalhadora leva à sua subordinação à ideologia burguesa [Capitalismo]”, e também para aquilo que Lenin classifica como “sindicalismo”, não significando, perante ele, nada mais que “escravidão ideológica dos trabalhadores para com a burguesia[Idem, 23]. Lenin, encarando esta conjuntura, apela aos seus camaradas e leitores que “a tarefa da Social-Democracia [nesta altura, como já foi explicitado, a Social-Democracia, enquanto ideologia, estava integrada no campo político marxista, sendo a sua deriva, para fora do núcleo desse campo político, mais tardia], é combater espontaneidade, desviar o movimento da classe trabalhadora dessa espontânea, sindicalista aspiração de subserviência perante a alçada da burguesia, e trazê-lo para a alçada da Social Democracia revolucionária[Idem, 23]. Consubstanciando a pertinência destas posições – a que muitos poderão classificar como elitistas -, Lenin afirma que, no contexto dos levantamentos contra o poder do Absolutismo Régio na Rússia, apesar das massas revoltarem-se e terem um vigor revolucionário admirável, nunca conseguiriam chegar a lado algum, uma vez que a Vanguarda, até então, “tinha uma escassez de líderes e organizadores revolucionários adequadamente treinados, que possuíssem conhecimento sólido (...) e capaz de chefiar o movimento, de transformar uma manifestação espontânea numa manifestação política [Idem, 60].


A propósito deste problema que Lenin encontrou – a espontaneidade sem liderança –, há um outro conceito também destacado como problemático por Lenin: o primitivismo. Não imbuído de um tom reprovador (apesar de paternalista ou professoral), Lenin aponta um ponto comum entre as revoltas dos camponeses, no Verão de 1896, e o percurso encontrado pelos jovens estudantes universitários rumo à acção revolucionária anti-czarista. Não obstante Lenin valorizar as suas iniciativas, ele apontou falhas numa acção revolucionária que ele classifica como primitiva, uma vez que os seus precursores agiam sem organização ou vanguarda que os guiasse. [Idem, 63 - 64] Colocando esta relação, entre ambos os fenómenos, numa concha, Lenin afirma: “Não se pode deixar de comparar este tipo de estratégia bélica [as acções de mobilização conduzidas pelos estudantes] com aquele conduzido por um grupo de camponeses, munidos de paus, contra tropas modernas. (...) assim que as verdadeiras operações de guerra iniciaram (...) as deserções nas nossas organizações de combate fizeram-se sentir a um grau progressivo e crescente [Idem, 64]”.


Na cúpula desta teoria está o revolucionário profissional. Este é um homem da Vanguarda, e a Vanguarda tem de tomar a forma do partido revolucionário. É o partido revolucionário que será o elemento vanguardista, e que guiará o Proletariado no processo já descrito, e os revolucionários profissionais têm de ir ao núcleo social da Classe Trabalhadora, “como teóricos, como propagandistas, como agitadores, e como organizadores[Idem, 50]. Para Lenin, esta ‘profissionalização’ da praxis revolucionária, para além de imprescindível no Vanguardismo, não se pode cingir aos intelectuais partidários da Revolução, tendo que se alargar ao proletário comum, e para que este seja interventivo no seu papel revolucionário, “o trabalhador-revolucionário tem de se tornar num revolucionário profissional[Idem, 84].


Inúmeras são as críticas dirigidas, ou características supostamente adversas à ideologia marxista, encontradas na teoria vanguardista, desde ser uma forma de Populismo de Esquerda - que académicos como Luke March definiram como sendo mais um estilo retórico político (em vez de ideologia) de massas versus elite corrupta, adverso aos princípios da intelectualidade, repleto de ambiguidades propositadas [March, 2007, 64 - 66] - ou uma forma de Elitismo. Joseph Schumpeter, por sua vez, afirma que o próprio Marxismo, e como este foi apresentado pelos bolcheviques, é um ideário em nenhum sentido democrático, e com tendências para a imposição violenta dos seus preceitos. [Schumpeter, 2014, 236 - 237] Sendo as teorias leninistas pura interpretação do Marxismo – e sendo a ideia da Vanguarda (com a qual Marx nada tem a ver) algo que nos remete a uma elite revolucionária, com pretensões de despotismo esclarecido, na liderança do movimento comunista –, de uma coisa há a certeza: o conceito de Democracia de Lenin não era o mesmo que é assumido pela generalidade da sociedade e dos académicos. Ainda assim, as preocupações dos bolcheviques eram essencialmente no âmbito do controlo da Economia pelo Proletariado, através do Estado, sendo em larga medida nesse domínio que falavam em Democracia, tendo Lenin afirmado que “consciência política pode ser trazida aos trabalhadores (...) apenas no exterior do conflito económico[Lenin, 1902, 48], para lá do jugo da Burguesia, via à Revolução.


Bibliografia:

Lenin, Vladimir (1902). What is to be done? (Tim Delaney, trad.). s.l.: Marxist Internet Archive.


Lenin, Vladimir (1918). The state and revolution: The marxista theory of the state & the tasks of the proletariat in the revolution. Em Collected Works, Vol. 25.


Lenin, Vladimir (1977). The three sources and three component parts of marxism. Em Collected works, Vol. 19 (Lee Joon Koo & Marc Luzietti, trad.). Moscow: s. ed, p. 21 – 28 (Trabalho original em russo publicado em 1913). Em https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1913/mar/x01.htm


March, Luke (2007). From vanguarda of the proletariat to vox populi: Left- populism as a ‘shadow’ of contemporary socialism. SAIS Review of International Affairs, 27, p. 63 – 77.


Schumpeter, Joseph A. (2014). Capitalism, socialism and democracy. New York: Routledge, p. 235 – 249.


Todas as citações presentes no ensaio foram por mim traduzidas do inglês para o português.

Todos os sítios da Internet foram consultados entre Outubro e Dezembro de 2019.

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