segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

José Saramago

Nada devo acrescentar a palavras como as que José Saramago proferiu, há precisamente 20 anos, em Estocolmo, na recepção do Prémio Nobel da Literatura. Fazê-lo seria algo criminalmente vulgar. Devo dizer, contudo, que para sempre ficarei agradecido a alguém que nunca tive hipótese de conhecer, mas que ainda assim agradeço profundamente, pelos seus livros e pela lucidez com que sempre falou e escreveu ante aqueles que atentamente o escutavam... e ainda escutam, e sempre o lerão. E devo também agradecer-lhe por sempre se ter mantido fiel a causas que gritavam por liberdade (a material e a da consciência) e Democracia - tão actuais como hoje, neste dia que marca os 70 anos da assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Jamais Saramago vacilou, nem neste dia, em que teve de proferir um discurso solene perante elite e aristocracia, nem neste dia Saramago deixou de ser um anti-conformista, um ateu, um comunista, e homem, todo ele, levantado do chão pobre em que cresceu. Seja talvez pelo facto de toda a sua formação ter sido por si próprio feita, que Saramago nunca esqueceu de onde veio, nem esqueceu a realidade que o rodeava. E já vão longuíssimas as minhas palavras. Resta-me dizer, Obrigado. Aqui vai o Discurso de Estocolmo (que pode ser encontrado tanto no site da Fundação Saramago como no Último Caderno de Lanzarote):

"Cumpriram-se hoje exactamente 50 anos sobre a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não têm faltado comemorações à efeméride. Sabendo-se, porém, como a atenção se cansa quando as circunstâncias lhe pedem que se ocupe de assuntos sérios, não é arriscado prever que o interesse público por esta questão comece a diminuir já a partir de amanhã. Nada tenho contra esses actos comemorativos, eu próprio contribuí para eles, modestamente, com algumas palavras. E uma vez que a data o pede e a ocasião não o desaconselha, permita-se-me que diga aqui umas quantas mais.

Neste meio século não parece que os governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que moralmente estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica humanidade capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante.

Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, porque não sabem, porque não podem, ou porque não querem. Ou porque não lho permitem aquelas que efectivamente governam o mundo, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a quase nada o que ainda restava do ideal da democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. Pensamos que nenhuns direitos humanos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem e que não é de esperar que os governos façam nos próximos 50 anos o que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra. Com a mesma veemência com que reivindicamos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa tornar-se um pouco melhor.

Não esqueci os agradecimentos. Em Frankfurt, no dia 8 de Outubro, as primeiras palavras que pronunciei foram para agradecer à Academia Sueca a atribuição do Prémio Nobel da Literatura. Agradeci igualmente aos meus editores, aos meus tradutores e aos meus leitores. A todos torno a agradecer. E agora também aos escritores portugueses e de língua portuguesa, aos do passado e aos de hoje: é por eles que as nossas literaturas existem, eu sou apenas mais um que a eles se veio juntar. Disse naquele dia que não nasci para isto, mas isto foi-me dado. Bem hajam portanto." 

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