Concluí a uns dias a leitura daquele que, creio eu, será o último livro publicado por José Saramago, o Último Caderno de Lanzarote, lançado este ano (ainda que o Nobel já tenha falecido há oito anos). É o último volume de diários que Saramago escreveu entre 1992 e 1998, este, em específico, referente ao ano de 1998, o ano em que o génio foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura - até hoje o único escritor de língua portuguesa homenageado com tal distinção. Nos próximo dias, uma vez que nos aproximamos do 20º aniversário da recepção do galardão em Estocolmo, irei partilhar no Pensatório da Divisão várias passagens deste derradeiro volume. Aqui vai a primeira, escrita no dia 5 de Janeiro de 1998:
"Morreu a Ilda. A Ilda era a Ilda Reis, que nos tempos de rapariga começou a sua vida de trabalho como dactilógrafa dos serviços administrativos dos Caminhos de Ferro, e depois, obrigando um corpo demasiadas vezes sofredor, esforçando a tenacidade de um espírito que as advertências nunca conseguiriam dobrar, se entregou à vocação que faria dela um dos mais importantes gravadores portugueses. Gozou dessa felicidade substituta que o êxito costuma vender caro, mas tinha-lhe fugido o simples contentamento de viver. As suas gravuras e as suas pinturas foram em geral dramáticas, cindidas, auto-reflexivas, de expressão tendencialmente esquizofrénica (diga-se sem nenhuma certeza), como se teimasse ainda em procurar uma complementaridade para sempre perdida. Fomos casados durante vinte e seis anos. Tivemos uma filha."
Nesta altura, evidentemente, Saramago já era casado há vários anos com a Pilar del Rio, em todo caso, constatando a natureza destas palavras, transparece, quanto a mim, uma última homenagem de Saramago para com uma mulher que partilhou a vida com ele, mas que, num tom mais lúgubre, transparece também um ligeiro toque de amargura, de secura.... de tristeza, talvez?! Digo isto se tivermos em conta a colocação incerimoniosa da última frase.
Seja como for creio que o pretenso biógrafo energúmeno, que há uns dias lançou a posta de pescada de que Saramago era um grande machista, ainda deve pertencer a essa minúscula tribo de frustrados que ainda conjuram - sem quaisquer bases literárias ou filosóficas - contra o nome de José de Sousa Saramago.
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