"Julgava o ingénuo de mim
que Afonso Domingues tinha sido arquitecto, Luís de Camões poeta, Camilo
Castelo Branco romancista, Soares dos Reis escultor, Domingos Bomtempo
compositor, e afinal não era verdade. Eles e todos os outros, de fora e de
dentro, andaram a enganar-me com esses formosos títulos quando o que os
práticos sujeitos fizeram em toda a sua vida foi investir: é pois investimento
a Sala do Capítulo do Mosteiro da Batalha, são investimento as redondilhas de
Sôbolos rios, é investimento A Brasileira de Prazins, é investimento O
Desterrado, e é investimento, só investimento, a Missa de Requiem. Dentro de
alguns anos é possível que apenas consigamos encontrar os nomes daqueles
senhores nas páginas das revistas de economia e finanças, entre os resultados
de Microsoft e as perspectivas de Champalimaud. De futuro, sirva este exemplo,
não serão escritas Histórias da Literatura Portuguesa, mas sim Histórias do
Investimento Literário em Portugal. E os estudantes usarão as suas calculadoras
de bolso para comprovar o valor de mercado de Jorge de Sena, de Eduardo Viana
ou de José Rodrigues Miguéis…"
Assim abre mais uma entrada,
referente ao dia 22 de Fevereiro de 1998, presente no Último Caderno de Lanzarote,
de José Saramago. Saramago refere-se, de forma excepcionalmente irónica, claro,
ao Acordo Multilateral sobre o Investimento (AMI) que, à data em que este
artigo foi escrito, estava na mesa das discussões, no âmbito da OCDE. Saramago,
criticando o modo capitalista e insensível como até a cultura tem vindo a ser
abordada, denuncia aquilo que ele vê ser um "tratado de tratantes".
Saramago denuncia o AMI como nada mais que um mecanismo que pretende suplantar
as obras artísticas e literárias como meras bagagens de investimento de
capital, da mesma forma como qualquer saco de batatas o pode ser. O Nobel,
neste artigo altamente elucidativo, que pode ser encontrado, na íntegra, no
site da Fundação José Saramago, afirma que os efeitos deste acordo seriam a eliminação do "conceito de direito de autor em benefício do copyright",
diluindo "num suposto multiculturalismo universal as identidades culturais
próprias, até à sua extinção". Saramago também foi ao detalhe dos efeitos
práticos e nefastos do AMI, no mundo cultural, afirmando que "o produtor
que detiver os direitos de uma obra passará a poder explorá-la sem pedir
autorização ao autor (pessoa física) e com desprezo do seu direito moral".
Quanto a mim, é fantástico, mas em simultâneo desconcertante, como em 1998 o Nobel
da Literatura estava completamente corrente do carro sem travões que cada vez
mais assolava a sociedade de então, e que aí está, ante nós, nos dias do século
XXI.
Finalizando, transcrevo o remate,
digno de génio literário, que fecha este depoimento escrito tão precioso para os dias de
hoje: "Antigamente, nas procissões religiosas indianas, quando o grande
carro de Xiva passava, havia pessoas que se atiravam para debaixo das rodas e
morriam esmagadas. O AMI também é um carro gigantesco, e sem travões. Mas o
pior, o pior de tudo, é que estão a empurrar-nos para debaixo dele…"
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