Considerei escrever sobre o manifesto saloio, da actual Ministra da Família e dos Direitos Humanos de Bolsonaro, cujas intenções por trás de "menino veste azul, menina veste rosa" são bastante mais obscuras, bem mais ideológicas, e reveladoras, do que muitos pensam. Há uma boa franja da sociedade brasileira que não será contemplada na protecção deste Ministério. Não quero saber de estórias de embalar. Isto vindo da ministra dos direitos humanos é preocupante. A ameaça do Pensamento Único que integra a ordem social idealizada por esta gente aí está. Todavia, não vou escrever sobre isto. Considero antes mais útil a leitura duma publicação, sobre este tema, feita por um dos maiores especialistas no Helenismo e em traduções bíblicas do país, o Professor Frederico Lourenço, na sua página do Facebook, que aqui cito na íntegra:
"Terrorismo de género
Sim. O menino que vêem na fotografia sou eu [fotografia do Prof. Frederico Lourenço, em criança, apontando uma pistola à câmara, com um esgar sério]. Foi tirada no Portugal pardacento de Salazar, quando os rapazes estavam proibidos de ter comportamentos de menina.
Eu nunca fui um rapaz masculino: interessava-me mil vezes mais observar as minhas avós a fazer lindas colchas brancas em croché do que uma coisa que eu já na altura considerava acéfala e boçal (futebol, desculpem). Eu queria aprender a fazer croché, mas, nas férias que passávamos em Portugal, os mais velhos insistiam comigo para eu fazer coisas de rapaz. Ninguém me queria ensinar croché (muito menos tricô, que exigia o manejo genial de duas agulhas!) e deram-me um brinquedo de rapaz para as mãos: uma pistola.
Não me apaixonei pela pistola, mas ficou a fotografia - tirada pelo meu avô como espécie de comprovativo documental de que eu não era maricas. Mas eu era. E sou. E o pior para Salazares e Bolsonaros é que adoro ser homossexual. Não quereria ser heterossexual por nada deste mundo, porque a pessoa que eu sou é intrinsecamente gay. Não sinto culpa, não sinto vergonha de gostar sexualmente de pessoas do mesmo sexo. É algo que me define e que eu amo.
No entanto, chegar ao amor pela minha própria homossexualidade não foi um caminho fácil. Porque fui vítima do terrorismo de género. Fala-se (sem conhecimento) de «ideologia de género», mas muito pior é o terrorismo de género. Eu e tantos rapazes da minha geração (e de mais novas, infelizmente) fomos sujeitos a um autêntico terrorismo psicológico. «Não sejas maricas». «Não fales com essa voz apaneleirada». «Comporta-te como um homem». «Pareces uma menina».
O decurso da minha adolescência foi uma desaprendizagem relativamente à pessoa que eu verdadeiramente sou. Fiz tudo e mais alguma coisa para não parecer maricas - mas é claro que um pássaro não pode mudar de penas, como tão bem se diz em inglês. E eu nunca consegui deixar a 100% de ser «apaneleirado» na minha maneira de falar e de me mexer. O meu primeiro namorado, dez anos mais velho do que eu e ele próprio vítima de terrorismo de género bem pior do que todo aquele que eu sofri, dava-me dicas constantemente para eu «não parecer maricas». Era sempre: «não fales assim, não digas isso, não segures assim o cigarro, não pegues assim no copo, não te rias assim».
Por outras palavras: «não sejas tu».
Este terrorismo de género foi de tal modo marcante na minha psique que ainda hoje apanho um choque quando me vejo na televisão: eu que pensava ter conquistado a arte de ser «straight acting» vejo, com olhar crítico, o mesmo maricas que eu era em criança. Não consegui, com quase 56 anos, extirpar de mim o paneleiro. Paciência.
Triste triste é o que vejo à minha volta neste nosso Portugal de 2019: vejo ainda hoje gays armariados por toda a parte, a fingir desesperadamente que são heterossexuais; e não são só pessoas da minha geração. São rapazes novos, na faixa dos 20 e dos 30. A internet está cheia de recantos onde a comunidade gay afirma coisas como «não gosto de efeminados», «não gosto de passivos» e, mais espantoso ainda, «não gosto de versáteis» (os heterossexuais que me estão a ler que desculpem a terminologia técnica).
O ideal dentro da comunidade gay continua a ser o homossexual que se comporta como heterossexual, que é «masculino», que não tem «trejeitos». Continua o incentivo à não assunção da própria sexualidade - porque o terrorismo de género continua, vivo da silva, tão tóxico e pernicioso como era quando eu era um rapazinho português no fascismo de Salazar, a quem os adultos deram uma pistola para as mãos para se sentirem menos angustiados pelo facto de terem de educar um menino que olhava fascinado para as mulheres a fazer croché, que se entediava de morte com futebol e que não era capaz de falar com «voz de homem».
Menino esse cujas cores preferidas eram (e são ainda) cor de rosa e azul. Porque a realidade não é tão dicotómica como os fanáticos querem que pensemos. Não é uma questão de rosa ou azul; de futebol ou croché; de ballet ou andebol. A sensibilidade humana é mais subtil do que isso.
Combatamos é a tremenda desonestidade que está por trás do termo pejorativo «ideologia de género» e foquemos a nossa atenção em fazer frente àquilo que é verdadeiramente abominável: o terrorismo de género. Não me forcem a ser quem eu não sou. Cada pessoa humana tem o direito de ser quem é."
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