sexta-feira, 10 de maio de 2019

Afinal, a carreira dos professores jaz na gaveta

Atingimos, por fim, através das poeiras da dissimulação e da névoa da hipocrisia, a síntese do mais recente conflito social neste país, inserido numa conjuntura maior a que os marxistas, e eu, chamamos de Luta de Classes. É isso precisamente o que se passou nos últimos dias. Assistimos ao funcionamento duma pequeníssima engrenagem desta Máquina que há milénios marca a evolução da Civilização Humana. E a sujidade do desfecho desta tensão só pode ser rivalizada pela completa ausência de honestidade por parte de duas entidades políticas, com assento na Assembleia da República, envolvidas neste evento. Para o leitor que ainda não apanhou sobre o que escrevo eu, falo do triste circo a que a carreira dos professores foi sujeita.

Um sumário do que se desenrolou ao longo de todo este processo: Há mais de três décadas que o corpo docente de Portugal está em luta, sai às ruas, exige maior consideração e respeito, exige melhores salários, e mais recentemente (com o Governo desse grande crápula impune que é José Sócrates), um descongelamento na progressão das suas carreiras, com vista aos seus anos de precioso serviço à Sociedade serem reconhecidos. Quer no Governo de Sócrates, ou no Governo de Passos Coelho e Paulo Portas, ou no actual Governo de António Costa, a luta dos professores tem sido incansável. Portanto, há de facto, nesta nação, uma desvalorização daquilo que significa ser professor, e essa desvalorização reflecte-se sob formas variadas: nos salários baixos comparados com o trabalho que os professores exercem, no respeito por parte da sociedade, no prestígio não reconhecido, e na ausência de evolução das suas carreiras enquanto profissionais. Aqueles que isto negam não têm a mínima ideia sobre o porquê do Ensino e Formação. E para esses já escreverei adiante. Relativamente ao que se desenrolou nos últimos dias. Tivemos, numa Comissão Parlamentar, a aprovação por parte da Esquerda - PCP, PEV e BE - e da Direita - PSD e CDS - uma proposta de lei que determinava o reconhecimento dos famosos 9 anos, 4 meses e 2 dias de carreira dos professores, proposta essa pronta a ser votada na generalidade perante todo o Parlamento. A bancada parlamentar do PS e o Governo (PS) estavam rigidamente contra, apelidando a proposta de inconsequente, irresponsável, etc. Logo a seguir, o Primeiro-Ministro de Portugal, num número que só pode ser comparado a uma grande birra, a 5 meses da Eleições Legislativas, ameaçou com a demissão do Governo. Os Media, em êxtase com a estória, perguntaram a todos os partidos o que se estava a passar - falou-se inclusive numa Crise Política - e o PSD e o CDS garantiram que não iam mudar o sentido de voto que já tinham anunciado para o generalidade. Neste ponto convém chamar a atenção para quatro coisas: (1) a probabilidade grande que havia para se convocarem Eleições Legislativas antecipadas; (2) o facto dos sindicatos e da Esquerda estarem finalmente a ter uma importante vitória política; (3) a total incoerência da Direita, uma vez que jamais defendeu tais propostas políticas (e toda a gente sabe que aquilo foi puro oportunismo político, com vista ao derrube do Governo), ainda assim a Esquerda e os Professores agradecem; (4) os professores finalmente iam ver justiça, dando esperança a todos os trabalhadores. Quero também chamar a atenção para a sincera felicidade em que eu estava embrulhado. É muito raro ver nem que seja um 'quase' da concretização duma fantástica proposta como esta. Mas tudo isto era bom demais para ser verdade. Tudo começou com tímidos anúncios, e revelou-se hoje, quando o PSD e o CDS esclareceram que afinal vão mudar o sentido de voto, e que a progressão nas carreiras dos professores pode jazer numa qualquer gaveta. A verdade é que eu não devia ficar surpreendido com isto, com estas manobras da Direita, com o status quo a funcionar. Nas questões de fundo, o Arco do Governo regressa sempre à acção. E assim, nem o Governo se vai, nem a Direita me consegue impressionar, nem é feita Justiça aos professores.

Abordando um sujeito que escapou aos pingos da chuva: a pessoa do Presidente da República. Calado se mostrou, calado se manteve. Raríssimo, devo dizer. Só faltou dizer, em voz de múmia, "não faço comentários sobre aquilo que quer que seja" para parecer o Professor Cavaco Silva. Bem, não conhecemos de facto o que Marcelo pensou sobre tudo isto, e assim se manteve, pseudo-indiscortinável, para com nada se comprometer. Mas, caso a Direita nunca tivesse ido para a barricada do costume, e a proposta tivesse sido aprovada na AR, Marcelo, no seu poder de Chefe de Estado, teria dado um veto à Lei, e mesmo que a proposta lhe regressasse às mãos, já teria alterações. Iria justificá-lo com a alegada inconstitucionalidade da proposta, mas as suas motivações seriam puramente políticas. E nem se iria preocupar muito com a perca de popularidade. Nunca foi entre os professores que Marcelo recolheu o sumo da sua base de apoio.

Então, e porque é que os professores são assim tão importantes? Alguns trabalhadores - num vício a que o próprio Karl Marx fez questão de analisar durante o século XIX - até afirmam que "se para nós não há, para os professores também não", demonstrando uma impressionante falta de solidariedade laboral na Luta contra um mal comum. Relativamente à importância dos professores na sociedade, eu até responderia "vão perguntar aos Nórdicos e vejam como lá, na Escandinávia, um docente é tratado", mas até poderei responder, de facto: Sem professores não há formação intelectual e cívica na Sociedade, e quando não temos escolas e faculdades, somos todos reduzidos à improdutividade, à ineficiência e à barbárie. É o respeito e investimento no Ensino um dos denominadores comuns entre os Estados pacíficos e socialmente mais igualitários e justos. Basta olhar para os números. Para além do mais, o professor do Século XXI chega a ser mais do que "só" isso, é também psicólogo de jovens, e administrador burocrático. 

Claro que eu não estou a dizer que toda a docência é perfeita. Há profissionais mais ou menos competentes (já me cruzei inclusive com um ou outro professor terrível), mas é por isso que também a formação de professores e a criação duma sociedade mais civilizada são elementos essenciais. E que ninguém se iluda. Possivelmente por ter havido gente que se considerou massacrada pelos Lusíadas, ou pela Mensagem, ou pela Matemática, ou pela História, a docência está entre as profissões mais odiadas deste país.

E nem vale a pena o leitor, que não concordar com isto e me conhecer pessoalmente (ou não, uma vez que vai ler o que se segue), ripostar com argumento "só dizes isso porque a tua mãe é professora e tu pensas exercer a profissão durante alguns anos". Digo desde já: as minhas convicções quanto a questões laborais são universais para todos os trabalhadores, mas podemos começar por algum lado, por uma das profissões mais mal tratadas deste país, e ao mesmo tempo, uma das mais protestantes quanto a essa realidade. Como Marx e Engels sugeriram em 1848, na Luta por uma vida melhor, os trabalhadores de todo o mundo devem unir-se.

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