Hoje o meu avô materno completaria 80 anos de vida. Nunca os chegou a completar por uma quantidade intensiva de razões, umas tão diferentes das demais, todavia, no fundo, todas elas um átomo da irremediável e natural verdade à qual todos os seres estão sujeitos: haverá remédio para tudo, excepto para a morte. Tampouco foi o Outono da vida dele - isto é, os seus últimos anos de vida - uma estação digna de quem ele foi durante toda a sua vida. Não foi luminosa, ou alegre, ou propiciante a que a minha pessoa, em contínuo crescimento, pudesse aproveitar a sua companhia e beber da sua sabedoria, pelo menos como fora outrora, quando ainda não havia eu atingido a adolescência plena.
A realidade da doença pode ter sempre contornos assustadores e penosos - e, ainda vivendo nós tempos temperados por questões clínicas, a questão da doença vem tão a propósito -, contudo, haverá, ao longo prazo, realidade clínica mais devastadora e agoniante para o nosso balanço emocional do que ver um ente querido sucumbir à demência? O desfalecimento lento das faculdades mentais, deixando para trás uma concha do que a pessoa fora outrora, é tremendamente doloroso porque, ante os nossos olhos, todos os dias, sempre que vemos essa pessoa, constatamos que mais alguma coisa se foi embora daquela personalidade... e perdeu-se. Passou um dia e mais uma memória ficou esquecida, mais um nome que já não consta da alembradura, mais uma cara que se esvaneceu, mais uma reflexão que ficou sepultada num palácio mental em degradação, mais uma palavra que desapareceu do dicionário de vocábulos, mais um acto básico do quotidiano que se desaprendeu. Tudo isto eu vi acontecer com o meu avô João, ao longo de seis anos... ou mais porque, certamente, o processo de deleção cerebral terá principiado antes de vivalma ter reparado. Um ano e cinco meses antes do seu previsível falecimento, já quando o meu avô João tinha dado entrada definitiva no Lar Casa do Cruzeiro, em Arez, eu publiquei um texto no Pensatório, Princípio e Fim da Vida, onde, pelas minhas lentes de então, é possível ter uma outra perspectiva sobre toda esta injustiça da vida que sucedeu com o meu avô. Já agora, sobre a doença Alzheimer e o definhamento mental em idosos, recomendo a visualização de um fantástico filme que saiu este ano: The Father - um autêntico serviço público em formato de arte cinemática, e infelizes aqueles que ousem tirar a legitimidade da galardoação do Oscar ao Anthony Hopkins... este texto não é sobre cinema, nem arte, todavia.
Gostaria de ter desfrutado de mais tempo com o meu avô. Gostava de o ter tido numa fase da minha maturidade mental e emocional, e da minha evolução intelectual, em que poderia ter falado com ele sobre uma quantidade infindável de coisas das quais nunca chegámos a falar. Outras tantas chegaram a ser conversadas por nós, mas sinto hoje que a minha maturidade não estava à altura de tocar nos núcleos essenciais daquilo que discutíamos. Mas conversámos muito. Durante as tardes, em casa, ora em Portalegre, ora em Alpalhão, até em Lisboa (embora em Lisboa já tenha sido há muito tempo), enquanto passeávamos e eu ia convertendo as minhas passadas preguiçosas na passada larga que lhe era característica. Tanto que gostava de o ter acompanhado na Feira do Livro, em Lisboa - e mesmo depois de ele se ter reformado, em 2005, depois de tantos anos como funcionário da Editorial Verbo, ele continuaria a fazer trabalho voluntário com a Verbo, sempre que vinha o mês da Feira do Livro, pelo menos por mais uns poucos anos.
Sendo nefasta a realidade de que, aquando do dia da sua morte, já quase nada restava na sua memória - e se coisas restavam ele já tinha perdido as faculdades para as transmitir -, há algo fundamental em que a demência não conseguiu tocar: a memória que temos dele e tudo quanto teve que ver com ele - o semblante sério, os risos leves, o discurso ponderado e articulado, os seus passeios, as suas reclamações dirigidas à televisão (sobretudo se o canal fosse de empresa privada), a sua inabalável defesa do Sporting Clube de Portugal, os papéis organizados, os despertares cedíssimos, o pão vindo da padaria logo de manhãzinha, as suas sardinhas assadas, os milhentos de sapatos recuperados e remendados, os livros.
Lembrar-me-ei, espero, de muita coisa, até à minha última expiração, e nunca esquecerei o último passeio que dei com ele. Foi, estou a crer, pouco antes de começar o Verão de 2019 (quiçá ainda antes da Primavera, não tenho a certeza). Eu e a minha mãe fomos almoçar a Alpalhão, em casa do meu avô e da minha avó, e durante a tarde, depois de devorada a refeição, eu e o meu avô optámos por ir dar um passeio pela vila, como, aliás, sempre foi costume de família. Apesar dos seus 77 anos e da sua mente em visível definhamento, a sua passada continuava óptima. Não conversámos muito (atendendo àquilo que conversávamos antes da demência), mas conversámos, garanto eu, mais do que tinha sido costume ultimamente. Falámos de como a vila tinha sido e de como agora era. Falámos da, passo a sua expressão "porcaria da calçada" da rua que, entretanto, já foi transformada e melhorada pelo município, e trocámos umas impressões sobre uma pessoa que nos tinha cumprimentado que não é para aqui chamada (e da qual eu francamente conheço muito pouco). Claro que a dinâmica de diálogo já não era aquilo que foi, por exemplo, há nove ou dez anos, todavia, confesso que na altura tinha ficado optimista relativamente ao estado dele e que, talvez, a medicação e a tranquilidade ainda o iriam conservar. Mas eu estava enganado. Uns meses depois, ainda nesse ano, tantas foram as faculdades motoras, psíquicas e comunicativas que perdeu, que não houve outra solução senão um lar (onde, devo afirmar, em Arez, ele foi cuidado com a mais alta e profissional excelência). Foi súbito e nem deu tempo para me consciencializar que havia feito o meu último passeio acompanhado pelo meu avô João.
Por tanta coisa lhe fico grato. Em parte, a pessoa que sou hoje também foi moldada por ele. As minhas primeiras luzes sobre ler, sobre inspeccionar a geografia deste nosso Mundo, sobre jogar ao dominó, jogar às cartas, sobre olhar o meio que nos rodeia, foram luzes que também vieram dele. Também o meu tio-avô Paulino me formou, numa dimensão muito semelhante e numa época idêntica da minha vida, e ironicamente também o meu tio tem a sua mente embrulhada pelo Alzheimer, todavia, ao menos, ainda hoje está cá connosco, em pessoa.
A primeira biografia que alguma vez escreverei, será a dele. E macacos me mordam, hei-de a escrever.
A sua inteligência, o seu domínio da palavra e da organização mental das frases que proferia, o seu conhecimento do idioma - e foram umas quantas as palavras que aprendi com ele - e a sua ponderação sensata daquilo que dizia, falando eu de um homem que não teve mais do que a 4ª Classe, são coisas que me impressionam. Não fosse o meio pobre onde nasceu, no tempo histórico de um Portugal atrasado, e não fosse uma montanha de impossibilidades materiais com as quais teve de lidar na sua juventude, tivesse sido outra a circunstância onde nasceu, é minha profunda convicção que o meu avô teria ido muito longe nos patamares hierárquicos intelectuais da nossa sociedade.
Independentemente (tenho a convicção que a minha mania dos advérbios de modo vem dele) de tudo isso, o meu avô foi uma pessoa muito especial e da qual sinto falta.
Feliz aniversário, Avô
Sem comentários:
Enviar um comentário