"Quem não percebe a corrida [de touros] também não percebe a poesia, não percebe a literatura". Tristemente, foram estas as recentes considerações por parte de um histórico socialista português, por parte de um homem político, um poeta, pelo qual tenho uma vasta consideração. Manuel Alegre continua a ser relevante na cena política portuguesa porque pertence a um espectro quase extinto do PS - a ala esquerdista e socialista. Alegre tem sido sempre uma voz de grande legitimidade pela independência do seu pensamento e pelo facto de ter sempre resistido a incursões direitistas contraditórias por parte do seu Partido Socialista. Manuel Alegre, numa posição ainda mais invulgar (atrevo-me a dizer, única, dentro do seu partido), tem sido um contínuo defensor do ideário marxista. Eu, como socialista, estou imensamente grato.
E eu, eventualmente, poderia dedicar estas linhas a fazer um elogio defensivo a Manuel Alegre, mas enxergando e absorvendo a enormidade citada, que principia este texto, não o poderei fazer. Explicitar a admiração que tenho por Alegre já é muito bom. Ora, não discutindo a legitimidade ética e social das touradas - e não o farei neste momento porque entendo não possuir ética suficiente, para com os animais, para me lançar nesta discussão - compreenderei que, normalmente, os seus defensores aficcionados têm geralmente uma argumentação bastante falaciosa e, na pior das hipóteses, como é esta de Alegre, quadrada. Muito disse Alegre na sua campanha tauromáquica, e muito do que disse foi cercado por irrazoabilidade (e muito me estou a esforçar para ser cordial). Afirmou que o deputado do PAN, André Silva, mete mais medo que um touro bravo, por exemplo. Mas o coroar de todo este exercício de "lógica" de Alegre é, efectivamente, a frase que inicia este texto, e não levará muitas linhas a sua desconstrução.
A literatura e a poesia são formas de cultura, são letras, são palavras, é o mecanismo que não permite que ideias e culturas inteiras caiam no esquecimento. É o conforto de nos encostarmos e ficarmos confortavelmente presos numa estória, numa narrativa, que nos convoca a um estado emocional ou intelectual superior. Tourada poderá ser muita coisa. Tradição é de certeza. Há quem argumente, até, que tourada é cultura. Sei, todavia, que não é literatura, porque nada do que representa é associável a tal domínio. Como afirmava Saramago, só uma forma cultural, só uma arte, pode ser ligada directamente à literatura. Fala ele, pois, da pintura. Saramago afirmava que os pintores, com seus pincéis, também produzem literatura, porque, no fundo, a ambição última dum escritor é ilustrar imagens, transmitir uma mensagem - lógica esta que deveras me remete a Cesário Verde. A verdade é que a tourada (e isto não é necessariamente uma crítica) não pretende atingir nada disto.
Alegre afirma que quem não aceita o seu ponto de vista não compreende a poesia e a literatura! Como é que Saramago - sendo um profundo e subtil crítico da tourada - ganhou um Nobel da Literatura? Terá sido por acidente? Claro que houve literatura que ilustrou touradas numa forma positiva. O romance Fiesta, do Nobel da Literatura Ernest Hemingway, é um bom exemplo. Mas este último argumento é tão válido como dizer "eu gosto de touradas como o Picasso", que nada, na essência, quer dizer. Mais interessante ainda: como gosto tanto de livros, como escrevi eu (sem qualquer presunção) tantos poemas, visto que sou de uma sub-espécie intelectual que "não percebe a corrida"?
Tudo isto é demasiado embaraçoso. Sempre me perguntei o porquê de aficcionados tauromáquicos produzirem este tipo de argumentos. Cabe ao cidadão comum, ao homem enquanto intelectual, evitar este tipo de retórica. E é neste ritmo de argumentação, neste cavalgar sobre os preceitos culturais que, de dia para dia, a tourada - devido à natural condição do seu espectáculo - vai desaparecendo cada vez mais das consciências.
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