Ficar em casa e fazer nada
Agora é o melhor remédio,
Dizem-nos com cara fechada
Enquanto tentamos matar o tédio.
Ficar em casa e fazer pouco
É o que muitos de nós fazemos
Enquanto olhamos o televisor oco.
Bom é que disto nos lembremos.
Ficar em casa e fazer muito
Diz-nos o pivot à secretária
Com um prometaico intuito
E uma moralística áurea.
“Por favor, em casa fiquem”
Vão suplicando pelos quatro cantos
Desta nação recheada de gente de bem
Vestida com imaculados sacros mantos.
“Não saiam de casa, por favor”
Apelos como romarias estoicas
Proferidas com um beato rubor
E com notórias artes prosaicas.
“Sugerimos que fique em casa”
Repetem-se com a ladainha missal
Enquanto a vida se atrasa,
E a comida ficará sem sal.
E a Igreja já está vazia
E foi dispensada toda a romaria.
A fé desertou os fidelíssimos.
Os Media
estão felicíssimos.
O sacerdote saiu para férias
Falar ao patrão de coisas sérias.
Convocam a adesão à guerra
E sepultam liberdades debaixo de terra.
Protege-se todo o ancião
Isolando-o num lar de solidão.
Acode-se o magnata empresário
E todo o banqueiro fragmentário,
Queixosos dum encargo malvado
Opositores à socialização do Estado.
Uma fábula de calamidade é contada
Deixando-nos a consciência marcada.
Apelam a uma passiva razão
E tudo isto é uma saturação.
Há um prognóstico reservado
Para uma sociedade de atestado,
E o futuro que se avizinha
Caminha uma fina linha.
Há um novo heroísmo,
Que alegam interceptar-nos do abismo,
Que se traduz em ficar em casa
E a lendárias crónicas embaraça.
Afirmam ser o Armagedão que não se vê
E quem nisto crer, treslê.
Uma estrada erguida em contradições
Para combater o inimigo viral
Pavimentada para todas as estações
Com excepção do frio invernal.
Houve centúrias em que era Morte
Que brotava nos campos europeus
E não houve preces à sorte
Que chegassem aos ouvidos dum deus.
Houve cidades em cemitérios transfiguradas
Por uma negra pandemia que nasceu,
Que deixou vozes sepulcrais e silenciadas
Não mais esperando por Prometeu.
Houve medo para lá do concebível
Com destronadas torres e tiros na rua
Trazendo veneno ao coração sensível
Roubando a beleza da própria Lua.
Londres foi abatida por ferro e fogo,
Uma história que ainda me arrasa.
Muitos pulmões ficaram sem fôlego
Mas os londrinos não ficaram em casa.
Vender a liberdade e obedecer
Dramatizar um pseudo-heroísmo
Ficar em casa e tudo esquecer…
Mas haverá um socioeconómico abismo.
Não morremos da doença, morremos da cura
E o lacrimoso Augurey só já tem uma asa.
A solidão alastra numa sombra escura,
Teremos mesmo de ficar em casa?
Morremos de uma cura ou uma doença
E os mortos já nem têm um sudário.
Partilho esta mente em verso que pensa,
Queremos mesmo um cárcere domiciliário?
Escrito entre 23 e 30 de Março de 2020
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