A coerência é talvez dos aspectos mais desafiantes de nos mantermos intactos, não só na política, mas também enquanto defensores dos nossos próprios ideais e princípios. A dinâmica da própria sociedade seduz-nos, por vezes, a desviar-nos do caminho que julgamos ser o certo... Estou inclinado a concluir que foi isso que aconteceu a Ricardo Robles.
Explicando a situação em linhas gerais, Robles, vereador da Câmara Municipal de Lisboa pelo Bloco de Esquerda - um partido assente na procura pela suplantação do capitalismo através das mais variadas ideologias esquerdistas, tais como o marxismo, o socialismo e o trotskismo -, um dos grandes críticos, e muito bem, durante as autárquicas do ano passado, da horripilante especulação imobiliária que tem assolado a cidade de Lisboa, especulação essa que tantas dificuldades tem trazido aos jovens estudantes, para encontrarem o mais pequeno apartamento para residirem, enquanto estudam na cidade, decidiu comprar, ainda quando estava no executivo camarário da mesma autarquia, um imóvel cujo preço rondou os 350 mil euros. Ricardo Robles comprou este imóvel à segurança social, reabilitou-o, o preço do imóvel terá escalado até ao milhão de euros com essa mesma reabilitação, mas o processo não ficou por aqui. Após criticar, e de forma excelente, a especulação imobiliária, depois de criticar pessoas que ganham dinheiro de forma agiotista, permanecendo num partido que critica (e muito bem) muitas das falhas do capitalismo e dos capitalistas, Robles decide então colocar o dito imóvel à venda num valor de mais de 5 milhões de euros, um preço cinco vezes superior ao valor real do dito imóvel. O que é isto que Ricardo Robles praticou? Especulação imobiliária... e da descarada.
Há duas questões que devem ser colocadas nesta situação. Ricardo Robles cometeu um crime? Claro que não, o sistema capitalista vive precisamente deste tipo de coisas: indivíduo x tem um isqueiro que não vale mais que 1 euro, alega que o isqueiro é muito especial, e tenta vendê-lo por 5 euros, "assaltando" o idiota que o comprou. Portanto, Robles não é nenhum criminoso, contudo, a segunda questão que deve ser colocada é bem mais complexa. Robles foi ideologicamente incoerente e eticamente hipócrita? Infelizmente foi. Praticou aquilo que tanto criticou. É aquilo que torna mais fácil um comportamento de Direita do que um comportamento de Esquerda. Um adepto do capitalismo pode fazer este tipo de manhosices sem nunca ficar com a consciência pesada ou ser ideologicamente incoerente - sim, manhosice, porque apesar de ser legal, a especulação imobiliária é sempre uma manhosice -, mas um critico do capitalismo, por outro lado, não se pode dar ao luxo de fazer este género de coisas. Tem de ser muito superior a isto. Para mim, como um jovem, por mais inútil que seja, que é esquerdista e que respeita imenso o Bloco de Esquerda, é este o ónus da questão. Como argumentou Ricardo Araújo Pereira na última edição do Governo Sombra, é possível ser de Esquerda e ser rico, dando até o exemplo do Comendador Rui Nabeiro. Todavia, não é, pois, possível ser esquerdista rico que explora laboralmente os seus trabalhadores. Com Robles a situação é similar: pode ser um esquerdista que comprou e reabilitou um prédio caro, não pode depois, em nome da coerência, praticar especulação na venda subsequente desse mesmo imóvel.
Sendo eu o mais frio possível, o melhor que devia ter acontecido era Ricardo Robles ter apresentado a demissão da vereação, porque não foi para isto que os seus eleitores votaram, tenho eu a certeza, e eu se residisse em Lisboa teria sido um deles, e o Bloco de Esquerda devia ter pedido desculpa perante isto, por respeito aos seus apoiantes. O melhor que aconteceu foi o dito imóvel nunca ter sido vendido nesse preço astronómico, e isso já não é mau de todo.
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