Não vi o último episódio de Prós e Contras sobre o movimento Me Too, devo confessar. Eu só costumo ver aqueles cujo tema me afigura realmente relevante, e até hoje não vi nenhum melhor que a edição sobre a relevância de deus na sociedade actual, transmitido há uns anos. Mas este texto não é sobre o Prós e Contras em geral (embora acredite que também dava uma reflexão interessante), é antes sobre, especificamente, uns quantos minutos que correram no último Prós e Contras, e que eu tomei a liberdade de visualizar, minutos esses que dizem respeito às intervenções do Professor Daniel Cardoso, docente na FCSH.
As considerações do professor podiam ter passado despercebidas, na opinião pública e na comunicação social, como passam despercebidas a maioria das intervenções que sucedem naquele programa. Atrevo-me a dizer que aquela intervenção podia ter encaixado na normalidade da consciência colectiva deste país, mas para um considerável sector da sociedade não só foi uma intervenção anormal, errada, repudiante - era visível a cara de repúdio da Fátima Campos Ferreira - como que também o orador da dita intervenção, o Professor Daniel Cardoso, viu cair-lhe em cima uma rajada de insultos, burros e juízos pessoais falaciosos, vindos um pouco de todo o lado... e esse foi o derradeiro erro que os seus críticos cometeram, ao julgarem e combaterem o homem em vez do argumento - sem que este tenha dirigido um único insulto a alguém -, que é algo que o ser humano está habituado. Mas afinal, que sacrilégio terá dito Daniel Cardoso para originar um verbal onslaught tão vasto?
O Professor Cardoso, abordando as questões de possessão abusiva das autonomias corporais de indivíduos mais vulneráveis, limitou-se a ilustrar o seguinte exemplo, dizendo "É preciso falar de educação de forma concreta. A educação é quando a avozinha ou o avozinho vai lá a casa e a criança é obrigada a dar o beijinho à avozinha ou ao avozinho. Isto é educação. Estamos a educar para a violência sobre o corpo do outro e da outra desde crianças. Obrigar alguém a ter um gesto físico de intimidade com outra pessoa como obrigação coerciva é uma pequena pedagogia que depois cresce". No primeiro plano, digo que o tom usado e as expressões usadas foram pouco apropriadas para a audiência em questão. Atrevo-me a dizer que o exemplo usado dos avós não foi o melhor possível, do ponto de vista pedagógico, uma vez que boa parte da audiência tinha uma índole conservadora. Mas a verdade é que, pegando em argumentos que foram usados in loco contra o professor, a pedagogia do obrigar a dar o beijinho é fraca pedagogia! Não é necessário dizer à criança para ir dar um beijinho aos avós, se a criança gostar dos avós - tal como eu gosto muito dos meus - a criança irá lá. E se por algum motivo trágico a criança não gostar do avô ou avó, não tem de ser obrigada a dar o beijinho. Acho isto simples.
Mas extrapolando o argumento do professor, geralmente as crianças são intimadas a cumprimentar pessoas mais velhas que não querem cumprimentar. Eu, por exemplo, via por vezes isso acontecer-me, o que eu fazia sempre era o seguinte (e isso os meus pais podem atestar): cumprimentava quem eu bem entendia e dava beijinhos a quem eu bem entendia. As crianças não devem ser instrumentos zoológicos que vão dar o beijinho a quem nós indicarmos para parecer bem. Aliás, se as pessoas tivessem apanhado a referência que o professor fez a Michel Foucault, tinham ido pesquisar alguma coisa a respeito deste historiador e sociólogo e reparariam que, aquilo que o professor Cardoso afirmou, há décadas que é escrito em manuais científicos sobre psicologia e pedagogia, como aliás afirma o próprio professor, quando posteriormente fez a sua defesa intelectual, em entrevista ao Diário de Notícias: "Eu diria que a opinião que defendi é ainda mais comum. Qualquer pessoa que vá comprar um livro sobre parentalidade positiva a uma grande superfície vai encontrar indicações sobre não impor as coisas às crianças (...) Porque é que isto chegou aqui? Porque eu usei o exemplo do avô e da avó, e não o fiz por acaso". No fundo, isto é só mais uma indignação geral que, infelizmente, não verifica qual é o núcleo que se pretende atingir no meio deste assunto.
Ainda não me dou por acabado! Falando pessoalmente do Professor Daniel Cardoso, tive hipótese de o conhecer pessoalmente, no ano passado. Sendo aluno numa licenciatura de História, tirei 6 horas do meu tempo livre para assistir a três aulas de Comunicação e Ciências Sociais que ele leccionou na minha faculdade, e devo confessar que foram aulas, do ponto de vista intelectual e pedagógico, bastante úteis, excelentes mesmo, como quase qualquer aluno na FCSH, em Ciências da Comunicação, pode confirmar. Tive conhecimento mais aprofundado, por exemplo, da Tese dos Comportamentos Desviantes, das relações de poder e influência social, ou do trabalho de Max Weber. Considero uma lástima que, em vez de optarem pela discussão de ideias, apresentando contra-argumentos, as pessoas prefiram o enxovalho e o insulto gratuito. É por isso que muitas vezes há muita coisa que nem merece a pena. Tudo bem não concordarem com o professor Cardoso, mas não está nada bem o que se lhe tem feito em praça pública. E, felizmente, não sou o único a afirmá-lo, pois outras pessoas, alunos e não só, alguns amigos meus, inclusive, vieram também em defesa do estimado professor. E as pessoas nem se quer se apercebem que estão a atacar de forma desrespeitosa um autêntico doutor na sua área. Claramente ainda há muitos tabus.
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