terça-feira, 7 de novembro de 2023

Crimes de Guerra no Conflito dos Séculos


Como são, tantas vezes, as tragédias e as desgraças do mundo o alento para a proliferação de textos, ensaios, panfletos e manifestos, também a actual e antiga tragédia não podia deixar de voltar a ser abordada no Pensatório. Logo nesse fatídico dia em que o Hamas iniciou a sua ofensiva, pensei em começar logo a escrever, o mais rápido que pudesse, e depois publicar no tempo mais célere possível, um texto sobre o conflito entre Israel e Palestina. Mas elegi não o fazer porque os corpos de tantos jovens, que apenas queriam estar num festival de música, ainda não tinham arrefecido, e também porque decidi esperar para ver como se desenrolaria a situação em vez de mergulhar em suposições e vaticínios. E não se desenrola, claro está, a favor da Humanidade. Para quem estiver a ler este texto e ainda não tiver lido aquele que eu escrevi há dois anos, e porventura queira ler a minha sintética interpretação histórica deste conflito e a ligação com a milenar centralidade cultural de Jerusalém naquela região do mundo, pode consultar no Pensatório da Divisão o texto de Maio de 2021 intitulado Israel & Palestina e além: Conflito dos séculos. Para este texto ofereço uma abordagem mais directa e, provavelmente, mais emocional.


Desde o início que esta nova etapa da guerra entre o Estado de Israel e as forças fundamentalistas da Palestina se tem pautado pela coerência em cometer crimes de guerra. Antes que se façam quaisquer balanços de culpa, sejam históricos ou presentes, há que reconhecer que esses crimes de guerra são praticados tanto pelo Hamas como pelo Governo e lideranças das Forças Armadas do Estado de Israel. São estas duas facções que estão em guerra e são ambas as facções prevaricadoras exímias de crimes de guerra: da pior criminalidade que pode existir que torna malévolo algo que já per se - a guerra - é horrível.


Faz hoje um mês que o Festival Supernova - um evento musical de género transe de espírito liberal - foi atacado por uma horda de bárbaros do Hamas, que tinham invadido território na jurisdição de Israel a partir da Faixa de Gaza. 260 corpos foram encontrados no recinto, jovens muitos deles, da minha geração, massacrados à lei da bala e da lâmina. Outros tantos, de tantas origens e nacionalidades, foram raptados e feitos reféns por aqueles bárbaros. Reféns permanecem em parte incerta. O Hamas tinha feito uma manobra para reacender a guerra. Alguém que não me conheça minimamente e que leia isto, e que seja solidário com a causa palestiniana (que não tem de ser a causa do Hamas), poderá pensar que eu sou ligeiramente parcial perante o conflito a favor do Estado de Israel. Pois bem, não sou, e também não temos de ir à pressa escolher lados e levantar bandeiras, como foi feito com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. O conflito é tão antigo e tão complexo que nos perdemos no número de lados que há, porque não são apenas dois lados. Há mais lados para além das vontades do sistema sionista de Israel (a ironia de hoje haver judeus que se comportam como fascistas) e das ambições de destruição total dos bárbaros do Hamas. Há israelitas e palestinianos, dentro e fora da política, velhos e jovens, religiosos ou agnósticos, que querem a paz e querem coexistir em harmonia. Há organizações políticas israelitas e palestinianas que querem soluções e querem o fim da guerra. Temos a Fatah na Palestina (partido no governo da Autoridade Palestiniana), que infelizmente não consegue exercer controlo sobre a Faixa de Gaza, e temos no Knesset de Israel deputados eleitos pelo Partido Trabalhista e pelo partido marxista Hadash-Ta'al. Todavia, os focos mediáticos não incidem sobre os grupos nas sociedades israelita e palestiniana que defendem o fim da guerra e a secularização dos respectivos países mas incidem antes sobre o Hamas e sobre Netanyahu e o complexo militar-industrial que ele lidera.


Algumas pessoas poderão relativizar o facto de acontecerem crimes de guerra - porque a guerra em si já é violenta e assassina - mas a verdade é que, perante o Direito Internacional e a ONU (Organização das Nações Unidas), até a guerra tem regras. Algumas dessas regras são: não usar como alvo civis indefesos; não atacar escolas e hospitais; não violar sexualmente; não fazer reféns civis; não torturar. Israel já atacou campos de refugiados, escolas e hospitais, os seus soldados já violaram e torturaram, e Israel já bombardeou civis indefesos. O Hamas, por seu turno, já fez reféns civis, já torturou e violou e já tentou bombardear civis, sem dó nem piedade, não fosse o sistema de defesa anti-aérea de Israel denominado Iron Dome. Ambas as partes fazem dos crimes de guerra procedimento casual nas suas operações militares, tendo o Hamas, na minha estimativa, ainda menos escrúpulos que as lideranças do Estado de Israel. O ataque ao Festival Supernova - escolha deste evento feita devido ao ódio que o fundamentalismo islâmico tem à música e à liberdade - e as matanças e atrocidades bestiais, que o Hamas tem levado a cabo, em várias localidades vulneráveis, por onde os bárbaros passaram para derradeira desgraça dessas comunidades, quase que fazem da guerra entre a Rússia e a Ucrânia um duelo de cavalheiros.


Há décadas que a Assembleia-Geral das Nações Unidas aprova resoluções no sentido de encontrar o caminho para a paz nesta guerra interminável, quer seja no sentido de tornar possível a construção de dois estados soberanos, quer seja no sentido de neutralizar o extremismo religioso, quer seja no sentido de encontrar uma solução duradoura para Jerusalém. Os comunicados e pareceres que nos chegam da ONU, da Amnistia Internacional, e de tantas outras organizações, governamentais ou não, que têm observado o último mês de mortes e chacinas, que têm prestado auxílio humanitário, e que têm socorrido o melhor possível, relatam-nos cenários de atrocidades e manobras militares torpes, cobardes e infanticidas completamente vazias de ética e ignorantes perante as leis da guerra. A Amnistia Internacional dá-nos notícia, numa nota publicada no site oficial da organização, datada de 15 de Outubro, que a rapidez da escalada do conflito entre israelitas e palestinianos não tem precedentes e que milhares de pessoas, de ambas nacionalidades, já perderam a vida devido à guerra. A Amnistia Internacional tem insistido, com propriedade, no facto de que o sofrimento de civis em contexto de guerra é chocante, e aqui sublinhando sobretudo os civis que residem na Faixa de Gaza - o território palestiniano controlado pelo Hamas e onde Israel iniciou musculosas operações militares. Do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, chegaram apelos de cessar-fogo imediato, salvaguarda de vidas inocentes e apelos desesperados ao fim do infanticídio que está acontecendo na Faixa de Gaza. Perante os apelos e exigências do Secretário-Geral da ONU, o embaixador de Israel na Assembleia-Geral da Nações Unidas proclamou que este devia de ter vergonha e que já não reunia condições para ocupar o dito cargo. Diz Eli Cohen, o referido diplomata, que o problema não é o exército de Israel mas sim o Hamas que detém refém a população de Gaza e a impede de se refugiar em território mais seguro. Ainda que seja verdade o facto de o Hamas usar populações inteiras como escudo humano - a táctica mais cobarde e repugnante que pode haver em cenário de guerra -, Eli Cohen quer omitir-nos de que tal não justifica o bombardeamento de hospitais e bairros inteiros onde vivem pessoas indefesas e onde certamente crianças serão um alvo condenado à morte.


Enquanto for o Hamas a mais poderosa facção política que se apresenta como a força pela libertação da Palestina - ainda que os ditadores do Hamas nada mais queiram do que libertarem-se a eles próprios e escravizar ainda mais pessoas -, e enquanto o status quo do Estado de Israel se conservar, o conflito nunca terá solução. O Hamas quer aniquilar todos os judeus no planeta e impor a religião islâmica sobre todo o pedaço de terra que conseguir ocupar. A única coisa que verdadeiramente diferencia o Hamas do exército nazi é que estes últimos, ainda que movidos pelo ódio e pelas mais degradantes motivações, tinham nas suas fileiras autênticos guerreiros munidos de coragem prontos a enfrentar o adversário em campo aberto, nos mares e no ar. Fora a cobardia do Hamas, é tudo farinha do mesmo saco. Quanto aos governantes de Israel, a única motivação destes é a expansão do território e a multiplicação das suas riquezas. Para atingirem esse fim estes estão preparados para cometer genocídio. Com duas partes tão sedentas de poder e sangue, tão cegas, tão decididas em obliterar o outro, é difícil encontrar a paz e a conciliação antes que um autêntico cancro de mortandade se espalhe na Ásia Ocidental. Seria necessário que o povo judaico de Israel acordasse e percebesse que o regime que os governa os leva num caminho medonho de crimes de guerra e de hipotéticas guerras futuras com entidades mais perigosas e poderosas que o Hamas, e seria necessário que o povo palestiniano conseguisse unir-se e cilindrar os seus opressores de dentro. O povo palestiniano não é o Hamas e a prova disso é a quantidade de palestinianos que reconhecem os dirigentes da Fatah como seus líderes e representantes.


Como é a diplomacia portuguesa perante esta deprimente desgraça? Nem magnânima, nem terrível… tirando a mais recente patinagem desastrosa do Presidente da República. Foi na semana passada que, perante as câmaras do mundo, Marcelo Rebelo de Sousa achou apropriado começar uma ligeira discussão com o embaixador da Autoridade Palestiniana sobre quem tinha começado e quem tinha acabado. Lamentável! Triste figura que a República Portuguesa fez aos olhos dos estados do mundo, sob representação do seu Chefe de Estado. Mas também é verdade que o ‘desabafo’ do Professor Marcelo perante as câmaras, dizendo ao diplomata palestiniano que os palestinianos é que iniciaram esta nova etapa de guerra, deverá ter agradado ao complexo militar-industrial dos Estados Unidos que com cobiça na alma espreita do outro lado do Atlântico. Se fosse tão fácil dizer quem é que começou, distribuir a panóplia das culpas e encerrar os diferendos, não teríamos chegado até onde chegámos. Se por um lado se pode argumentar que o Hamas é que reacendeu os fogos da guerra com o ataque terrorista ao Festival Supernova, Israel já tinha lá deixado as achas e as acendalhas com a sua política de colonização e despejo de tantas comunidades palestinianas que ao longo dos anos têm acumulado tantas amarguras e tantos ódios. É com a marginalização, segregação e desprezo que as comunidades se radicalizam e se deixam cegar pelas promessas de glória eterna oferecidas por abutres que nada mais querem desses civis tornados guerrilheiros que sejam carne para canhão. O ciclo de ódio já é tão antigo e complexo nos meandros que já ninguém sabe quem é o quê, e chegará o dia em que já ninguém recorda, enquanto dispara mais um roquete, porque é que foi disparada a primeira bala. 


O conflito só terá um fim quando as organizações terroristas islâmicas desaparecerem do mapa (e se esse dia chegar será um grande dia para a liberdade dos palestinianos e do mundo) e quando haja um governo israelita que ponha termo aos colonatos e permita o pleno estabelecimento do Estado da Palestina. No que concerne a dificílima, complexa e fulcral questão da Cidade de Jerusalém - a questão que tantas vezes tem sido salientada como um problema-chave no conflito -, creio cada vez menos que a resolução passa pela solução de dois estados. E não. Obviamente também não passa por se ceder Jerusalém em exclusividade, a uma nação ou à outra. Mas deixarei uma nova abordagem a este assunto particular para outro dia.


Foi há um mês que, enquanto tantos jovens, no apogeu da sua felicidade, viviam a vida num festival musical, um batalhão de homens enlouquecidos e mentalmente degradados entrou pelo recinto dentro e disparou sobre tudo o que movia. Estes bárbaros do Hamas - também colocando, em simultâneo, um grande alvo nas costas das populações palestinianas -, munidos de metralhadoras e granadas, acharam que seria a vontade de deus abater e destruir pessoas que ainda tinham uma vida pela frente, todos eles desarmados, todos eles sem condições para se defenderem. Uns foram mortos, vivendo os últimos minutos de vida em terror, outros foram sequestrados e ainda são reféns da barbárie. Este texto é também a minha forma de fazer uma homenagem às jovens vítimas da teocracia islâmica.


A guerra tem de terminar. Uma solução tem de ser encontrada para Jerusalém. A Palestina tem de ser libertada e providenciada com território. O fundamentalismo islâmico tem de ser eliminado.


Martes, 15 de Brumário CCXXXII

domingo, 6 de agosto de 2023

A Igreja Católica e o seu Festival de Verão

O que escrevi há cinco meses:

Durante uma semana, no Verão do presente ano, terá lugar na República Portuguesa um evento com uma estrondosa potencialidade de ridículo. Um evento que expõe na luz do dia a elementar megalomania que assombra as consciências das lideranças da Igreja Católica. É também um evento que vem confirmar que as religiões ainda têm muita força, que o Cristianismo ainda tem muita força, e que o Catolicismo em particular ainda tem uma capacidade de influência surpreendente. Pela parte que me toca, nada disto são boas notícias, evidentemente. O nome da efeméride é Jornada Mundial da Juventude (World Youth Day, em inglês, Dies Iuvenum Totius Orbis, em latim), uma aglomeração de milhões de jovens fiéis católicos (também lhes chamam peregrinos, ainda que muitos destes sejam peregrinos voadores, pois viajarão para cá de avião) numa única cidade com o único intuito de se juntarem, escutarem homilias enfadonhas e rezarem. Lisboa será a cidade vitimada este ano, todavia, segundo consta, haverá peregrinações a outros pontos do país, nomeadamente Fátima (obviamente). 


O que me levou a dedicar um texto a esta Jornada Mundial da Juventude - à parte, claro, das polémicas que têm surgido em torno dos dinheiros à volta do evento - foi a própria natureza demográfica da coisa e o facto de ter lugar na minha nação republicana. A grandes e pequenos eventos religiosos (concentremo-nos na Igreja Católica) estou habituado: romarias, procissões, missas, peregrinações. O Santuário de Fátima, por exemplo, é um gerador contínuo e ininterrupto de religiosidade… e receitas financeiras. Mas nesta multitude de eventos religiosos, grosso modo, a demografia presente está nas faixas etárias mais envelhecidas, e com isso eu consigo lidar. Todavia, a JMJ distingue-se da regularidade dos eventos católicos na medida em que, neste evento específico, é a gente nova que detém protagonismo, e gente nova, portanto, que se afirma católica. Quanto aos gastos envolvidos, que chegarão também à bolsa do Estado, uns tantos enervam-se com o facto de haver pessoas a demonstrarem preocupação com isso. Afirma Joana Petiz, no Diário de Notícias, num texto assinado no dia 5 de Fevereiro: «E, no entanto, em vez de nos alegrarmos e puxarmos por um momento que pode verdadeiramente empurrar Portugal para a frente e para cima, concentramo-nos na mesquinhez das contas de mercearia, debatemo-nos na espuma da cada vez mais vazia e suja luta política. (...) O orgulho nacional foi substituído pelo desprezo nacional, o autoelogio pela automaledicência. É triste. E impede-nos de lutar pelo país que devíamos estar a construir e a anunciar ao mundo. O que queremos deixar aos nossos filhos.» Orgulho nacional e contas de mercearia. Para quem tenha ficado atordoado com a citação, passo a clarificar: quando Joana Petiz escreve sobre orgulho nacional, refere-se ao orgulho que é Portugal acolher um evento internacional católico, omitindo, claro, a escassez de orgulho que a Igreja Católica inspirou no passado e no presente (a pedofilia clerical está na ordem do dia) e esquecendo que o orgulho é um dos sete pecados capitais da fé cristã, mas sobre isso ela saberá muito pouco ou nada; quando Joana Petiz escreve sobre hipotéticos milhões de euros a serem queimados neste festival, refere-se a tal como contas de mercearia. A Joana Petiz deve estar cheia de dinheiro para milhões lhe equivalerem a «contas de mercearia». Na cúpula de tudo isto, Joana Petiz demonstra não compreender aquilo que discute - um evento internacional católico, no âmago da sua razão de ser e dentro daquilo que são as lógicas da universalidade da Igreja Católica (afinal, católico é um termo sinónimo de universal), não serve para engrandecer o estatuto daquele país ou daqueloutra cidade. Enquanto Igreja que é transnacional e pluricontinental, os eventos internacionais da fé cristã católica são fenómenos que servem somente para engrandecer a Igreja, Jesus Cristo e o deus que veneram. Isto sei eu que não sou católico nem cristão, ao contrário da Joana Petiz. Para quem achou excessivo o estilo da contra-argumentação que eu lancei à postura desta cronista, eu peço a devida licença e sublinho que já há bastante tempo que a tinha atravessada.


Cinco meses volvidos:


Os dois primeiros parágrafos deste texto foram escritos há cinco meses. Nos últimos cinco meses esperei para ver o que acontecia e de que forma a concretização da realidade coincidia com a mensagem que eu procurava transmitir. Procurava ir digerindo a sucessão de acontecimentos e apalpar a ambiência societal que nos circunda. Agora escrevo durante a realização da JMJ e a realidade aí se afigura tão irónica mas também tão desgraçada. Temos aí o ridículo e temos aí a hipocrisia. Peguem no comando da televisão e metam na transmissão de um qualquer noticiário, e verifiquem se observam o mesmo que eu. Tentem ver muito para lá do Papa Francisco e da sua recta postura institucional e humanitária. Um aspecto em que me equivoquei, quando escrevi os dois primeiros parágrafos há cinco meses, foi que os jovens católicos vinham no «intuito de se juntarem, escutarem homilias enfadonhas e rezarem.» Afinal o intuito não era só esse. Aliás, em retrospectiva, as rezas e as missas são uma parte menor de todo o festival. Em paralelo com os espectáculos de 'música' electrónica, produzidos pelos DJ (pelo menos um deles é padre), onde jovens e magotes de freiras pulam e dançam, em paralelo, também, com as participações e depoimentos de bispos e políticos em uníssono, a JMJ está a ser um evento catalisador de desordem pública e comportamentos ridículos. Que seja vista a forma como quadrilhas inteiras de juventude católica se tem comportado não só dentro dos comboios metropolitanos de Lisboa - fazendo barulho sem fim e executando números que tiram a paz e o sossego a quem quer ter uma simples viagem de metro (no Japão, por exemplo, aquelas macacadas não seriam toleradas) - e também aquando da transposição das barreiras do metro, como nos têm mostrado vídeos que foram gravados a documentar estes comportamentos para registo histórico. Como nos mostra um vídeo, filas paralelas destas pessoas furam pelas barreiras, sem passarem cartão, desrespeitando o serviço público de transportes e causando estorvo ao transeunte comum. Em Lisboa isto chama-se passar à pica. Mas neste caso não são um nem dois, são dezenas deles, católicos de confissão e cristãos de acção (dizem… )


Antes de voltar às vicissitudes de hipocrisia e contradição que dominam a mentalidade da JMJ, gostaria de falar da parte política e económica que assiste toda esta problemática. Em primeiro lugar, à semelhança da cronista Joana Petiz, Carlos Moedas, autarca do Município de Lisboa, também não tem a mínima noção dos fundamentos universalistas que assistem o Cristianismo e que assistiram a instituição das Jornadas Mundiais da Juventude, em 1985, com a assinatura do Papa João Paulo II. Mais nada fala o indivíduo que não seja a projecção de Lisboa para o mundo e a instituição de Lisboa como capital mundial da juventude. É banalidade atrás de banalidade e politiquice atrás de politiquice. Se elegermos levar a sério os fundamentos que são a raiz da instituição das JMJ, estes não têm que ver com a elevação da urbe para onde a peregrinação irá confluir mas sim com o alcançar de uma experiência espiritual colectiva e multicultural e a colocação da juventude no centro da reflexão religiosa do Catolicismo. Ainda que se diga católico, Moedas percebe muito pouco daquilo que se passa com a sua cegueira na sua preciosa cidade (cidade essa que é o nosso eucalipto nacional, pois seca tudo à volta) e comete o pecado de meter o nacional e provinciano à frente dos alegados propósitos universalistas, religiosos e espirituais, desta enorme peregrinação.


Quanto ao Presidente da República e ao Governo, e a todos os deputados complacentes, para eles a Constituição só deve ser respeitada quando é conveniente. A JMJ acontece em plena circunstância de inconstitucionalidade, e tal não se deve, obviamente, à realização da própria peregrinação em território nacional - o artigo 41 da Constituição da República assegura a liberdade de culto e a liberdade religiosa, estando tal evidente nas alíneas 1, 2 e 4 - mas deve-se sim ao oficial envolvimento do Estado e dos Órgãos de Soberania no desenrolar da efeméride. Isso sim é inconstitucional. O artigo 41 assegura a legalidade da liberdade religiosa dentro da República Portuguesa, mas a alínea 4 deste artigo contém uma passagem fundamental para aquilo que eu aqui discuto: "As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado (...)". Em nenhum ponto da Constituição surge reconhecido o divino e o transcendente. Em nenhum ponto da Constituição o Catolicismo é afirmado como a religião oficial do Estado. O Estado é laico, isto é, não tem religião, isto é, o Estado e os Órgãos de Soberania tem de ter total imparcialidade perante todas as religiões e formas de espiritualidade, não só porque o Estado é laico mas também porque é assegurada a liberdade a todas as formas de culto religioso. Todas as religiões, perante a Constituição, estão no mesmo plano de igualdade perante o Estado e a Lei e perante elas o Estado não apresenta qualquer religião, nem a Lei apresenta quaisquer directrizes religiosas. Tudo o que sucede contrário a isto encontra-se em situação ilegal e inconstitucional. O Governo, o Presidente da República e a Câmara Municipal de Lisboa estão a agir contra a Constituição e contra a legalidade democrática. Um leitor mais desinformado ou um leitor de postura mais cínica poderia perguntar "então e de que forma é que os Órgãos de Soberania estão em tão severa situação inconstitucional?"


Se o Estado é laico e imparcial perante todas as religiões, então o Estado não pode participar com dinheiros públicos na contribuição para a realização de eventos religiosos - a JMJ, por exemplo. Mas a verdade é que só a Câmara Municipal de Lisboa já empreendeu cerca de 40 milhões de euros a respeito da JMJ. Dinheiros camarários são dinheiros públicos, e portanto dinheiro do Estado, e portanto dinheiro dos contribuintes. Se já é gritante ver o Presidente da República a comportar-se como um mero devoto perante o papa e a efeméride católica, quebrando absolutamente o princípio de neutralidade religiosa do Estado enquanto seu representante máximo, não se comportando como o Chefe de Estado que devia ser, ainda mais gritante é ver dinheiros públicos canalizados em festins religiosos. Mas quase ninguém quer saber disto. Faz parte da trilogia da ditadura que ainda tanto molda as mentalidades portuguesas: Fado, Football e Fátima. A Constituição é violada, os cães (como eu) ladram, mas a caravana passa.


Voltando à vergonha alheia, ao ridículo e à hipocrisia, há tanto mais para pegar. É um autêntico laboratório de dissecação das contradições de uma pretensa religião da paz e do amor. Podemos pegar, como já dissertei, na desordem pública e na eventual excessiva criação de lixo. Podemos pegar no cartaz que foi exposto no Município de Oeiras, baluarte do antigo presidiário Isaltino Morais, no qual aparecia o número 4800. Era um cartaz escrito em inglês que chamava a atenção do público internacional para os achados da comissão independente que foi incumbida de investigar o histórico das últimas décadas de abuso sexual de crianças e jovens por clérigos da Igreja Católica. O número a que essa comissão chegou foi a cerca de 4800 crianças nas últimas décadas, e sabemos que estes números ficam sempre aquém da realidade. Este achado fez manchete nos jornais internacionais. Mas o executivo camarário de Isaltino Morais achou por bem - deverão ser estes os tais portugueses de bem de que fala o outro - 'limpar' a paisagem urbana, pois factualidade tão grosseira só poderia afligir as sensibilidades dos jovens católicos e do seu Clero, e assim se praticou um exercício de censura em Portugal do Século XXI. Por caminhos apertados e à margem do Estado de Direito o cartaz foi retirado do outdoor. Podemos também pegar no incidente que há poucos dias sucedeu, no Parque Eduardo VII, em plena luz do dia e no meio de uma multidão católica, no qual um jovem português, empunhando uma bandeira arco-íris - símbolo da Comunidade LGBTQ a nível mundial - foi abordado por um conjunto de outros jovens estrangeiros que pretendiam barrar-lhe a circulação e retirar-lhe a bandeira, gerando-se no local uma discussão conduzida no idioma inglês. Também um destes dias se celebrava uma eucaristia dirigida a pessoas LGBTQ, no pretenso âmbito inclusivo da JMJ, quando a cerimónia presidida por um padre católico foi invadida por um grupo de católicos fanáticos (também estes peregrinos da JMJ) que afirmavam ir expiar pecados mortais. A PSP foi inclusive chamada ao local. E por mais que o Papa Francisco fale sobre inclusão e superação do ódio, é perceptível que muitas ovelhas do rebanho estão furiosas com esta nova tentativa de inclusão no seio da Igreja, e este descontentamento é encontrado nos fiéis comuns mas também em bispos, arcebispos e cardeais. E se a Igreja Católica é composta pelo todo dos seus crentes e clérigos, então não será um Sumo Pontífice bem intencionado que vai alterar permanentemente as mentalidades. As mentalidades poderão progredir, mas o caminho ainda será custoso.


Será legítimo para qualquer leitor deste texto presumir que a minha posição filosófica de análise assenta numa mentalidade asceta. Afinal, eu já ironizei a propósito de festins de DJ com a participação de fiéis e membros do clero. Também podia ironizar a propósito das noites boémias dos jovens peregrinos, quer seja noites repletas de copos ou noites floreados por sexo heterossexual ou homossexual (não tenham dúvidas que as noites boémias da JMJ também tem disto). No final de contas eu podia ser aqui visto como um asceta conservador que com maus olhos vê as incursões hedonistas da juventude. O problema com essa hipotética análise é que eu próprio sou um hedonista (ainda que bastante moderado nos dias que correm) e portanto nunca poderia criticar o hedonismo dos outros. Onde eu quero chegar é precisamente à hipocrisia da massa católica. Tanta coisa com o pecado, a moderação, a espiritualidade, a introspecção, as orações, o modo de vida asceta para se ascender ao Reino Celeste, tanta coisa com tanto dogma católico e no final de contas, em larga medida, a JMJ é nada mais que o Festival de Verão da Igreja Católica onde a malta de junta para a diversão.


As questões que faltam colocar são as seguintes: em que dimensão é que esta peregrinação mundial à capital portuguesa contribuiu para a reflexão sobre o significado e o sentido da religiosidade? Para que serve rezar? Para que serve ter fé na existência de deus? Em que dimensão é que esta peregrinação contribuiu para a reflexão sobre os erros passados e presentes da Igreja Católica? Que oportunidades de reflexão é que este evento gerou sobre a forma como os agnósticos e os ateus críticos das religiões (como eu) podem interpretar e compreender este fenómeno histórico que é a Igreja Católica? Será que a elevada participação da juventude nesta peregrinação católica significa que a Cristandade tem um grande futuro? Ou será que um dia estes jovens despertarão da ilusão e se aperceberão que não há deus que nos valha e que a concretização de um futuro próspero e feliz depende do ser humano? Quantos destes jovens acreditam se quer em deus e na vida celeste (ou infernal) depois da vida terrena? Tudo isto são interrogações muito válidas. Interrogações que estão ausentes do repertório de perguntas e pedidos de esclarecimento que estes dias têm assistido a comunicação social.


Para os Media têm sido dias luminosos e esplendorosos. Foram dias de pureza e sensatez para a maioria dos jornalistas de televisão que têm acompanhado a JMJ. Fossem jovens activistas marxistas ou ambientalistas a protagonizar certos comportamentos e atitudes primários e desordeiros, estava a comunicação social em bloco a chamar a atenção das massas para a decadência e a falta de civismo da juventude radical. Aliás, nem precisariam de ser jovens politizados. Durante a época da pandemia e do confinamento, qualquer foco de propagação do vírus ou qualquer incidente de desordem era logo interpretado pela classe jornalística como mais um episódio de ignóbil e irresponsável anarquia juvenil. Mas nestes dias não tem sido assim. Como se trata de juventude de igreja está tudo bem. É tudo boa gente que nem se quer parte um prato.


Bem sei que qualquer pessoa razoável poderá classificar este texto como excessivo, agreste, negativista, arrogante, ácido nas palavras e injusto nas considerações. Estaria eu disposto a diminuir o volume destes elementos não fossem a opinião pública e as posições da imprensa nacional tão monolíticas. Quase que nos temos de contentar à força com a JMJ e a participação financeira do Estado no festival, não podendo haver dissidência perante uma invisível linha oficial conjunta da República e da Santa Sé. Como se explica que da noite para o dia o histórico e actual fenómeno criminoso de abuso sexual de crianças por parte de clérigos da Igreja Católica tenha sido empurrado para o desterro da amnésia colectiva? E ai de quem respingue e faça disso assunto público enquanto o Papa e demais altas sumidades se encontram em território nacional! Como vimos acontecer, quem isso tentar é tratado como um dissidente e é mandado calar. E no meio de tanta conversa sobre universalidade, multiculturalismo, inclusão, amor, a Igreja Católica continua como sendo uma força reaccionária que se propõe a condicionar a liberdade social e a atordoar o ímpeto da Luta de Classes. Os exemplos são muitos: a Igreja está contra a interrupção voluntária da gravidez; está contra a eutanásia; está contra a emancipação feminina dentro (e fora, por vezes) da Igreja; tem múltiplos discursos em simultâneo relativamente à homossoxualidade, sendo que se por um lado afirma querer acolher e incluir por outro lado mantém a narrativa do pecado e do vício decadente, que tudo o que faz é criar estigmas e situações de discriminação, e recusando reconher teologicamente casamentos entre pessoas do mesmo sexo; a Igreja ainda hoje olha com elevada desconfiança para a luta sindical e ao fortalecimento da Segurança Social por parte do Estado, em oposição à caridade e à esmola da Igreja. Se houve entidade na História de Portugal que mais semeou esta eterna paciência resignada e passiva do povo português, a Igreja Católica está na primeira linha, e sempre que essa paciência se converteu em revolta e acção revolucionária lá estava a Igreja para abafar a transformação e o progresso. Foi a Igreja que esteve ao lado de Castela durante a crise dinástica de 1383-85, em oposição às massas populares e ao Mestre de Avis. Foi a Igreja que apoiou a tomada do trono português pelo Rei de Espanha Filipe II em 1581. Foi a Igreja que se colocou no caminho do Marquês de Pombal quando este se apresentou para modernizar Portugal no terceiro quartel do Século XVIII. Foi a Igreja que se colocou na vanguarda do terror miguelista que deu origem a uma sangrenta Guerra Civil (1832-34), opondo-se portanto ao regime constitucional e à construção de uma nação livre. Foi a Igreja que se apresentou para derrubar a I República (1910-26) e foi a Igreja que prestou apoio social e político de primeira importância à ditadura criada pelos militares e Oliveira Salazar. Só com o Concílio do Vaticano II dos anos 60 é que a Igreja Católica começou de facto a mudar muitas das suas mentalidades e modos de operação. Foi só nesse concílio ecuménico que a Igreja Católica levantou o anátema contra o povo judaico, que até então se encontrava sob acusação colectiva de deicídio. Mais vale tarde do que nunca…  


É por isto e muito mais que eu não confio na Igreja Católica e olho com grande desconfiança para a JMJ, especialmente se tivermos em conta as circunstâncias em que esta jornada sucede. Nada tenho contra o mais comum dos jovens que tenha optado por participar nesta peregrinação. Como já escrevi e afirmei tantas vezes, nada tenho contra os católicos praticantes: a minha mãe, a minha avó materna e a minha tia Ana, pessoas que eu amo com todo o meu coração, são mulheres católicas, muito ligadas à Igreja, sem por isso serem, todavia, mulheres com consciência de classe. Foram várias as pessoas na minha vida que sendo católicas são pessoas muito importantes. Na minha demanda não é contra os religiosos que me apresento mas sim contra a estrutura e altas hierarquias que passam sentenças sobre aquilo que é correcto e aquilo que é errado, e passam-nas não com base em filosofia ética mas sim tendo por base pústulas de épocas obscurantistas quando ainda não conseguíamos definir o relâmpago. Apresento-me contra a mentalidade e a ideologia, e não contra as pessoas, com excepção daquelas que activamente propagam o ódio e a discriminação. E o que dizer de deus? O que dizer da Santíssima Trindade, que é o divino em três planos de existência: o pai, o filho e o espírito santo? O que dizer a esta juventude que foi convencida que procurando o divino encontrará a paz interior e a força para tornar este mundo um lugar melhor? É começar por dizer que deus não existe nem nunca existiu. É dizer que o transcendente e o numinoso são ficções (de grande peso cultural, sublinho) criadas há milénios para arregimentar as massas ingovernáveis. Basta dizer-lhes que quando se juntam e rezam numa missa nada os ouve porque nada há para além disto que temos enquanto estamos com os olhos abertos.



18 de Termidor CCXXXI

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Um regulamento a favor do fogo

Aproxima-se o Verão, e com o Verão virá uma das endémicas pragas que assolam Portugal: o fenómeno incendiário [para mais referências minhas sobre esta questão, ver o texto Verão em chamas, publicado neste blog no ano anterior]. É na sequência deste facto que eu partilho o seguinte texto, com o mesmo título desta minha publicação. Um regulamento a favor do fogo foi um texto publicado anonimamente por José Saramago, na edição do Diário de Lisboa de 12 de Junho de 1972, no qual está patente uma preocupação grave que já na época havia com os incêndios portugueses. A razão principal de eu partilhar este texto é para chamar a atenção para um facto no qual eu insisto sempre que, por qualquer motivo, se discute a questão dos incêndios: não é só de hoje ou de há 10 anos que a governação e a sociedade gerem de forma errónea este conflito entre o fogo e os humanos, em Portugal, e não é só de hoje ou de há 10 anos que os incêndios de Verão, em Portugal, levam o território a eito, destruindo, queimando, matando. Já nos [para alguns] saudosos tempos da Ditadura os incêndios eram uma calamidade tão devastadora como é hoje, havendo, contudo, algumas diferenças de um tempo para outro. Naquela época, por exemplo, o regime não estava interessado em fazer registos, levantar dados e elaborar estatísticas, e tampouco estava para se maçar com canalização de fundos para apoiar logística e tecnologicamente as corporações de bombeiros. Não havendo recolha de dados e elaboração de estatísticas, o desenvolvimento de estudos era impossível, tornando, portanto, impossível uma melhor compreensão sobre a natureza deste fenómeno e como o combater, e não havendo apoios - à semelhança de hoje, provavelmente - os bombeiros estavam mais ou menos entregues à sua sorte. Também não havia o menor esforço para coordenar a actividade dos bombeiros com as demais instâncias da sociedade portuguesa cuja tarefa também passaria pela prevenção e combate dos incêndios. É com o objectivo de relembrar o fenómeno que se aproxima com o passar dos dias, e é com o objectivo de recordar que este triste fenómeno já é muito antigo no tempo histórico [não sendo, portanto, uma solitária culpa do actual (des)Governo], que eu partilho este texto de uma lucidez brilhante, como é costume em Saramago.


Quanto à natureza do texto em si, eu retirei-o directamente do livro Os apontamentos [Saramago, José (2014). Os apontamentos (5ª Ed.). Lisboa: Porto Editora, p. 54-55.] - uma compilação de artigos, sendo que a primeira parte diz respeito aos artigos que foram publicados anonimamente no Diário de Lisboa entre 1972 e 1973, e que só depois se soube que o autor desses textos fora José Saramago, e a segunda parte concerne os artigos que José Saramago assinou no Diário de Notícias durante o PREC, em 1975, na qualidade de sub-director do jornal. Em nome da defesa da identidade da Língua Portuguesa, tomei a liberdade de aqui citar o texto consoante a ortografia do Português de lei, isto é, a anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 e que desde há alguns anos é o que vigora oficialmente. O abuso de alteração da ortografia do texto editado pela Porto Editora, está, todavia, em consonância com a ortografia que José Saramago usava em 1972, à semelhança de todo o povo português alfabetizado, e que o escritor sempre haveria de usar até à sua morte no ano 2010, de acordo com o Calendário Gregoriano. Segue então o magistral texto que retrata uma realidade tão ridícula e tão aflitiva:


"Com a chegada do Verão, destes grandes calores que tornaram as matas e os pinhais inflamáveis como estopa, é certo e sabido que começam por esse país fora os incêndios. Devoram as encostas das serras, deixam-nas negras, despidas, terras de desolação onde, por muitos anos, se erguerão apenas os troncos queimados. Neste tempo se levantam inúmeras vozes a pedir protecção para o nosso património florestal, já de si tão escasso. A vulnerabilidade das nossas matas, se bem pensamos nela, é, a toda a hora, um convite à ruína total. Depois o tempo refresca, vem a chuva, adia-se a catástrofe para o ano.


Na falta de um sistema de defesa eficiente, conta-se sempre com a dedicação e a ousadia das populações que, mal se ouve o sinal de fogo, correm montes e vales, gritando, ofegando, para irem atacar o incêndio, sem curarem de saber a quem pertencem as árvores que as chamas vão furiosamente destruindo. Acudir ao fogo é obrigação cívica a que ninguém foge, e não têm sido poucos os actos de grande coragem praticados nessas ocasiões, com total desinteresse, pois ninguém pensa em apresentar depois a factura dos serviços prestados. Também não há veneras nem condecorações: estes episódios passam-se em serranias anónimas, longe das vistas da grande publicidade.


Já os incêndios começaram a sua tarefa e, lá para diante, não se passará um dia sem que o inferno lavre num ponto qualquer do País. E tudo será como de costume, e repetir-se-ão casos como este de que hoje falamos, acontecido numa povoação chamada Bogas de Baixo, próxima do Fundão. Ali, os sinos da igreja chamaram os habitantes ao combate. E foram todos, os novos e os velhos, as mulheres e as crianças. Fazia vento, e, como sempre acontece nessas circunstâncias, o fogo saltava de árvore em árvore, propagando-se pelas ramadas superiores, inutilizando os trabalhos no chão. Diante da ameaça cada vez maior, telefonou-se para as povoações em redor e mais pessoas acorreram ao fogo, animando-se umas às outras, usando uma experiência já antiga, vinda de gerações. Por fim conseguiu-se travar o alastramento do incêndio. O desastre não foi total.


E os bombeiros? Após algumas dificuldades de comunicação, e graças à intervenção de terceiras pessoas, foi possível chamar os da vila próxima. Também se recorreu aos serviços dos bombeiros de outra vila, a de Oleiros, mas o comandante destes disse que «não podia mandar deslocar os seus homens para concelho diferente, sem que o comandante dos bombeiros do concelho onde havia o sinistro os requisitasse». Segundo a fonte onde colhemos estas informações, o comandante de Oleiros mostrou-se «muito compreensivo», chegando a oferecer-se para um entendimento com o Fundão. Ficaram os combatentes voluntários e paisanos à espera do que viesse, mas nada se conseguiu. Enquanto os pinheiros de Bogas de Cima ardiam, enquanto as gentes da terra se afadigavam a lutar por bens que só a poucos pertenciam, um artigo de regulamento impedia o auxílio que deveria poder ser dado por uma corporação de bombeiros, mas que não foi porque o concelho era outro…


Estranhos casos se passam em Portugal! Muito mais estranhos ainda quando nos lembramos de que, durante a recente visita do presidente do Conselho a Castelo Branco, um dos mais brilhantes números dos festejos foi um longuíssimo desfile de bombeiros, com dezenas de viaturas. Vindos de muitos quilómetros e concelhos em redor… E não havia fogo."



Lues, 16 de Prairial CCXXXI

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Qatar

Foi há mais de uma década que, no seio da FIFA, numa reunião convocada em Zurique, foi seleccionada a nação anfitriã do Campeonato Mundial de Football que há duas semanas teve início. Essa nação é a primeira dos estados árabes e da Ásia Ocidental a organizar um Mundial e o nome do estado é Qatar. Ainda era um pré-adolescente quando tal resolução veio a público e, logo nessa altura - e disto o meu irmão, por exemplo, é testemunha - olhei com um péssimo esgar a tão idiota decisão por parte dos mestres da FIFA. Embora não detivesse, na época, a bagagem de conhecimento e raciocínio que tenho hoje, já era perfeitamente capaz de compreender várias implicações de tal arranjo, desde a ordem climatérica à ordem política e societal. E como eu houve tantas outras pessoas anónimas ou públicas que se insurgiram com tal decisão e que denunciaram os potenciais casos de corrupção e suborno que inundam os organismos da FIFA. Em 2014 houve, inclusive, extensas investigações por parte de várias instituições (Media e serviços nacionais de informação) que chamaram a atenção do público para estes factos e que alegaram que a decisão de fazer do Qatar o anfitrião do Mundial 2022 é um caso flagrante da corrupção instalada, tanto por parte da FIFA como por parte dos governantes do Qatar. Portanto, o primeiro ponto que quero salientar é o seguinte: as pessoas não se estão a queixar só agora! Há uma década que a questão é discutida e denunciada e há uma década que os governantes do Qatar se riem a bandeiras despregadas porque sabem que levarão a sua avante.


O facto do Qatar ser a nação anfitriã do Mundial 2022 fez deste torneio de football mais do que um evento desportivo-cultural. Com as polémicas que constantemente têm surgido nos noticiários e as discussões sobre a natureza política do Estado do Qatar, o Mundial 2022 tornou-se incontornavelmente um evento com fortes implicações políticas, e não pelos melhores motivos. Na ligação entre o Qatar enquanto país anfitrião do maior torneio desportivo do mundo e enquanto país regido por uma Monarquia Absoluta e islâmica fundamentalista, há quatro principais graves problemas de violação de direitos humanos que são atentados descarados à Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, que deveria reger - pelo menos em ambição - qualquer estado-membro desta grande instituição. É com base na enumeração destes quatro graves problemas que eu irei contradizer o Emir do Qatar, e seus associados governantes, no sentido de afirmar que, afinal, nem toda a gente é bem-vinda ao Qatar, e que eu irei atirar à lama o nome do Presidente da FIFA. Às pessoas leitoras perdoem-me a falta de contenção mas eu sinto-me particularmente fulminado.


O primeiro atentado aos direitos humanos no Qatar é a forma como os donos deste país lidam com as liberdades de expressão e imprensa - liberdades virtualmente inexistentes nesta sociedade islâmica. É proibido segundo a Lei do Qatar: instigar ao derrube do regime; divulgar aquilo que o regime considere ser "notícias falsas" (o que, francamente, poderá ser qualquer coisa que o Emir queira que seja); publicar conteúdos online que os governantes considerem ser um insulto aos valores sociais do Qatar; criticar o Emir; criticar a religião islâmica. Qualquer pessoa que publique notícias ou informações que, na estimativa do regime, comprometa os interesses nacionais, pode resultar em 5 anos de prisão para essa pessoa. A cereja no topo deste bolo totalitário é que é proibido para todos os cidadãos e cidadãs do Qatar declararem-se como apóstatas ou converterem-se a outra religião, sob pena de serem severamente punidos e encarcerados. No índice da liberdade de imprensa (2020) dos Repórteres Sem Fronteiras, o Qatar está classificado na posição 129 em 180 estados classificados.


O segundo atentado aos direitos humanos no Qatar é a forma como o seu regime trata toda e qualquer prática ou interesse romântico ou sexual que fuja à estrita regra da heterossexualidade, ou a forma como o regime trata pessoas que pretendem alterar o seu género ou que, no que concerne a sua identidade de género se declarem não-binárias. De acordo com o sistema jurídico do Qatar, qualquer relação sexual consensual entre dois homens acima dos 16 anos de idade pode ser punível com 7 anos de prisão. Também, qualquer homem que alegadamente incite outro homem em relações sexuais corre o risco de sofrer uma pena de 3 anos de prisão. Para além disso, como tem sido mais que evidente nos últimos dias, o Qatar não tolera qualquer manifestação de apoio a direitos LGBTQ nem qualquer retrato positivo de pessoas LGBTQ. No índice de igualdade para estados favoráveis à Comunidade LGBTQ da Equaldex, o Qatar encontra-se na posição 184 em 198 estados classificados.


O terceiro atentado aos direitos humanos no Qatar é a forma como o seu regime trata cerca de metade da sua população, nomeadamente, as mulheres. De acordo com o sistema do Qatar, qualquer pessoa do sexo feminino precisa de autorização de um tutor masculino (qualquer figura masculina que por ela seja responsável) para casar, deslocar-se ao estrangeiro, aceder aos cuidados de saúde reprodutiva ou trabalhar no Estado. O regime do Qatar também proíbe qualquer mulher de ser a principal tutora de um filho seu. É também uma realidade no aparelho jurídico do Qatar a forma altamente atroz como mulheres que têm relações fora do casamento são tratadas e punidas. No ranking da igualdade de género (2022) do Fórum Económico Mundial, o Qatar está classificado na posição 137 em 146 estados classificados.


O quarto atentado aos direitos humanos no Qatar é a forma como o seu regime trata a Classe Trabalhadora. O modelo laboral do Qatar é regido pelo medievalesco Sistema de Kafala: direccionado, sobretudo, aos trabalhadores migrantes - que compõem cerca de 95% da força de trabalho do Qatar -, estes estão inteiramente dependentes da entidade patronal para terem residência e estatuto civil, havendo fortes dificuldades do trabalhador mudar de trabalho sob pena de acusação criminal. [Sendo uma das bases de produção económica do Qatar, este Sistema de Kafala também pode ser visto como um traço bastante assinalado de xenofobia implícita nesta sociedade.] No Qatar não existem quaisquer direitos de associação sindical, greve ou protesto por melhores condições laborais. O trabalhador que entre por esses caminhos é considerado uma ameaça à ordem pública. Não existe qualquer transparência, por parte do Estado do Qatar, quanto a dados sobre mortes ou lesões em trabalho. As condições salariais para o trabalhador comum são também uma horrível desgraça e quase são sinónimo de escravatura. Não há melhor exemplo, para tudo o que mencionei neste parágrafo, que as condições laborais em que os estádios deste Mundial foram construídos. Estádios construídos sobre sangue: muita gente morreu a trabalhar. No índice global de direitos da Confederação Sindical Internacional, o Qatar está no nível 4, isto é, violações sistemáticas dos direitos laborais. 


Embora eu já tenha referido que o Estado do Qatar é uma monarquia absoluta - possuindo um pseudo-órgão legislativo para fins meramente consultivos - valerá a pena sublinhar que o Emir do Qatar, e o seu círculo de governo, é o legislador, é o executor da lei e é quem julga dentro da sua lei (e já percebemos que a sua lei poderá ser o que ele bem entender). Não existe a mais leve substância de Democracia ou de pluralidade de opiniões. Não existem checks and balances. Tudo o que existe é um despotismo caprichoso que leva à frente tudo o que se meter no seu caminho. E qual o objecto da Lei Fundamental desta nação? A Lei Sharia - tal como no vizinho Reino da Arábia Saudita que tanta coisa tem de semelhante, incluindo as suas tão valiosas reservas de petróleo que, para mal destas dinastias, têm os dias contados.


Foi nisto que a FIFA achou por bem, já lá vão 12 anos, atribuir o Mundial deste ano. Esperariam, entretanto, que a realidade social mudasse? Se assim esperavam, enganaram-se! Claro que o senhor Infantino bem tentou passar uma esponja sobre este desagradável assunto e afirmar que isto é tudo hipocrisia ocidental. Pois bem, se o senhor Infantino, com a sua recém-nascida clarividência holística e multicultural, acha que as justas críticas dirigidas ao regime do Qatar são uma hipocrisia por parte dos estados livres, eu convido o senhor Infantino a levar a sua esposa (se tiver), as suas filhas (se tiver) e um filho gay (se tiver) para o Qatar, enquanto uns se dedicam ao livre jornalismo e outros se dedicam a trabalhar nas obras. Aí o senhor Infantino poderá ver o quão feliz ele e os seus poderão vir a ser… não gasto mais linhas com um ignorante cujo maior mérito é presidir a uma instituição que rima com corrupção.


No que concerne à sociedade alargada, as reacções das reacções (isto é, houve pessoas, como eu, que se indignaram, e houve pessoas que reagiram a essa indignação) do facto do Mundial ter lugar num estado com a anteriormente descrita natureza política foram bastante diversas, surpreendentes, chocantes, frustrantes, estúpidas, sensatas, palermas, acéfalas, irrelevantes, banais, inconsequentes, excelentes, enfim, houve de tudo um pouco! Há quem opte por fazer como a avestruz, enfiar a cabeça na areia, e dizer que o tempo das queixas já passou: "Deviam ter-se queixado há 12 anos, quando a decisão foi tomada!" Já sabemos que as "queixas", impotentes face ao grande capital, começaram logo nessa altura. Há quem opte por fazer papel de cínico, afirmando, nem que seja com o mais tímido e ténue esgar de regozijo, que a cultura dos outros países é para ser respeitada. São precisamente estas mesmas pessoas - do dia para a noite convertidas em campeãs da multiculturalidade - quem têm um défice cultural gritante, seja a cultura respeitante à sua nação, seja a cultura de outras nações. Se, para estas pessoas, direitos humanos é nada mais que uma questão de cultura, como o capote que os alentejanos envergam ou o kimono que os japoneses vestem, se para esta gente os direitos laborais, a liberdade feminina, a liberdade sexual e a liberdade de expressão, são nada mais que simples questões de diferença cultural, como a vodka dos russos ou o kilt dos escoceses, então, face àquilo que é o argumentário destes cínicos, eu pergunto-me: "Para que é que se combateu a 2ª Guerra Mundial?" A perseguição de judeus, entre outros grupos, na Alemanha Nazi, também pode ser vista como uma questão cultural. A forma discriminatória como os atletas judeus foram tratados nos Jogos Olímpicos de 1936 (mais que os negros, inclusive) também pode ser vista como um mero apontamento cultural. Apesar de tudo, Hitler, esse grande benemérito, queria apenas salvaguardar a cultura ariana, a bem ou a mal, verdadeira ou inventada. Se quisermos continuar a esticar esta perigosa corda, a escravatura era uma questão cultural… e económica. Malandro do Lincoln e de toda a União que se meteram a combater uma guerra civil por causa de tão trivial característica cultural dos Estados Confederados. Malandros dos liberais e dos progressistas que quiseram pôr termo à segregação racial, quer tenha sido nos EUA ou na África do Sul. Querem ver como a corda pode esticar até ao limite? A nossa monarquia era uma questão cultural. 771 anos de história. Qual foi a legitimidade dos revolucionários republicanos, a 5 de Outubro de 1910, de terem cilindrado a cultura política portuguesa? (Só aqui entre nós, como já fiz referência num texto semelhante neste blog, havia uma época, quando eu ainda era um jovem ingénuo, em que eu acreditava nessa premissa.) Ao fim de contas, acabámos por importar a República: essa ideia estranha e estrangeira congeminada e trabalhada por helenos, romanos, neerlandeses e franceses. A Ditadura do Estado Novo também tinha muito de cultura portuguesa. Uma serena e moderada ditadura, sempre muito austera e fechada sobre si própria, a abarrotar de Igreja Católica. Para que é que o Movimento das Forças Armadas foi lá mexer, interferindo com o caldo identitário da cultura portuguesa? É nisto que dá a atitude de gente cínica, afirmando que direitos humanos são nada mais que um apontamento cultural. É impressionante como na História da Humanidade a identidade cultural tem justificado tantas barbaridades com a conivência directa ou indirecta de tantos. Se começar a ser um lugar comum a relativização dos direitos humanos, então eu confesso perder todo o interesse na questão da sociedade internacional. Se chegarmos ao rasteiro ponto de relativizar violências, desigualdades, discriminações, perseguições e ausência de Estado de Direito como meros apêndices na fisiologia cultural de determinado estado-nação, então mais vale encerrarem as portas da ONU. Não faz falta, somos forçados a supor. Não queremos interferir com as culturas excêntricas desta vida. Se algum país, um dia destes, quiser meter em andamento uma cultura que seja uma mescla de genocídios e canibalismo, está à vontade desde que seja cultura! Mas a FIFA é a primeira culpada de toda a situação.


Apesar de rectificadas, ditas de novo, riscadas por cima e explicadas em fresco, também foi com alarme que escutei as declarações do Presidente da República Portuguesa pouco antes do Mundial ter início. Em suma, Marcelo afirmou que essa estória dos direitos humanos é preocupante mas que isso agora não importa porque o que importa é dar apoio enquanto 11 rapazes portugueses jogam à bola. São as prioridades. Prioridades essas das quais Marcelo também foi muito rápido a arrepender-se. Marcelo arrependeu-se de tal forma, e o Primeiro-Ministro deve ter ficado de tal forma embaraçado, que no dito fórum em que António Costa falou, este deve ter endurecido de tal forma as críticas ao regime do Qatar que o Emir foi meter a República na sua lista negra, what a bad boy. E nós desolados com isso. Quanto a mim, a mensagem que o Governo tinha para endereçar ao Embaixador seria muito simples: "Homem, arrume as malas, bata com a porta e venha daí embora!" Não precisamos de relações diplomáticas com o Qatar. Não precisamos de relações de amizade com esses sheiks cujo maior desafio diário é decidirem com que toalha de mesa se vão tapar nesse dia. Tomem. Aí têm eu a ser rude, mas não tão rude como esses prepotentes.


Os reaccionários nas várias sociedades afirmam que o liberalismo social está a tomar conta do status quo, e que agora são eles - os reaccionários - os grandes oprimidos desta vida. Alguns vão até ao excêntrico ponto de aderir a essa doida teoria da conspiração do Marxismo Cultural - teoria essa que eu já abordei num texto deste blog. Pois bem, se isso fosse verdade, se fosse verdade que os aparelhos societais do mundo se tivessem a desviar para a Esquerda (como eles dizem), como poderiam então justificar a realização do maior evento desportivo do mundo num estado extremamente capitalista, hierarquizado, monárquico, religioso, anti-democrático e tradicionalista? E como poderiam justificar tal teoria quando a esmagadora maioria, face à natureza do anfitrião, nem pestaneja e se limita a aceitar com serenidade a cultura de um estado totalitário? É por estas que eu sinto que devo sublinhar a seguinte desagradável ideia: a liberdade de pessoas LGBTQ, a emancipação feminina, o progresso das condições laborais da Classe Trabalhadora e a liberdade de expressão e associação, não podem ser dados adquiridos. Perante as prioridades maiores das corporações e dos interesses económicos e políticos, qualquer um destes avanços humanitários poderá ser descartado a favor do grande capital.


À partida, um forte argumento poderia ser levantado contra aquilo que escrevi até aqui, a propósito do Qatar ser a nação anfitriã de um Campeonato Mundial de Football. Alguns poderão argumentar que a minha posição crítica poderá conter uma índole eurocêntrica e que tal posição iria excluir a maior parte dos estados do mundo da idoneidade para organizarem grandes eventos desportivos internacionais. Em suma, poderiam rematar que a essência da minha posição parte de uma postura arrogante. Tal seria verdade se eu defendesse que só as nações com os melhores registos em matéria de direitos humanos tivessem idoneidade para organizar eventos com esta magnitude e projecção. Mas eu não defendo isso, até porque tal postura iria excluir de protagonismo povos que pouca ou nenhuma culpa têm da natureza de regime das respectivas nações. Aliás, eu sou favorável para que quase todos os estados do mundo organizem Campeonatos Mundiais, Jogos Olímpicos, et cetera. Salvaguardo, contudo, a minha objecção para com um conjunto selecto de estados que eu entendo configurarem um extremo e hediondo perfil totalitário no seu regime político e cujo registo em matéria de direitos humanos é absolutamente desolador. O Qatar é um exemplo. Outros exemplos são os Emirados Árabes Unidos, a Arábia Saudita, o Afeganistão, o Irão, a Coreia do Norte e talvez a Bielorrússia. Defendo esta posição não só por entender que a natureza política destes regimes é insalubre para a deslocação livre e massiva de pessoas de várias origens culturais e nacionalidades, e por ser um ambiente muito tóxico para a prática de um jornalismo livre, mas também porque os únicos beneficiários destes eventos são os ditadores governantes que têm a sua dignidade actorial legitimada no palco internacional.


Eu nunca fui o maior fã de football, todavia, houve uma época em que eu via football, e interessava-me pela actualidade do desporto - assim como pela sua história. Ainda hoje, se ligar a televisão e estiver a ser transmitido um bom jogo de football, eu sou capaz de me entreter. Campeonatos Mundiais e Campeonatos Europeus de selecções sempre foram as épocas em que eu mais gostei de football. Este Mundial é o primeiro em toda a minha vida que eu não irei acompanhar. Por minha vontade, ainda não vi quase nada deste torneio. É o meu pessoal e insignificante boicote, e é o boicote que eu gostaria ter visto muitas selecções a aderirem. Todavia, devo agradecer especialmente às selecções da Alemanha e da Inglaterra (selecções de que eu sempre gostei muito) por se terem comprometido com o protesto e por não terem arredado pé de causas que importam. Os anormais que apoucaram a selecção alemã quando esta foi eliminada na fase de grupos nem se quer sabem que a bola é redonda - viu-se como a selecção do Qatar fez história no Mundial a tornar-se a primeira nação anfitriã a não somar um único ponto na fase de grupos, e, no final de contas, é o resultado de se atribuir a organização de um torneio internacional de football a um estado sem qualquer cultura futebolística. Os jogadores iranianos que optaram por protestar silenciosamente contra a sua república islâmica terão para sempre o meu respeito. Que não lhes suceda nada. Já por Carlos Queiroz, não reservo esse respeito. Em 1978, o Campeonato Mundial de Football foi organizado pela Argentina. Foi dois anos antes desse Mundial ter início - bem depois, portanto, do anfitrião ter sido decidido - que houve um golpe militar na Argentina, a liberdade foi abolida, e assumiram o governo ditadores militares de inspiração fascista. Várias federações ameaçaram boicotar esse Mundial. Uma das mais grandiosas figuras na História do desporto, Johan Cruijff, boicotou de facto esse Mundial, tendo recusado jogar perante um regime fascista, e não representou a selecção dos Países Baixos. A História vai-se repetindo. Ontem, como hoje, há aqueles que querem que o desporto seja mais que simples retórica em matéria de inclusão, felicidade e liberdade, e há aqueles cujo amor a esses valores é mais débil e descartável.


Notas finais:


Seria bom que os Media não consumissem tanto tempo com o Football e com as peripécias que constituem a vida pública de Cristiano Ronaldo. Sublinho: não estou a pedir que não cubram a actualidade desportiva da modalidade mais vista e mais influente em Portugal, eu estou a pedir é que não façam disso a primeira prioridade. Muita coisa se passa no país e no mundo para além da bola. No que concerne à pessoa do capitão da selecção nacional, julgo que o que sucede é muito evidente: agora que ele, enquanto atleta, já não tem o rendimento e as capacidades que tinha, o seu péssimo feitio e a sua atitude tóxica para com o colectivo começam a vir muito ao de cima. Independentemente de ser um desportista memorável na História de Portugal, Cristiano Ronaldo, derivado da sua personalidade e mentalidade, não é o mais exemplar embaixador do desporto português.


Quanto aos próximos dois campeonatos mundiais e seus anfitriões, podemos ter a nossa consciência tranquila quanto ao Mundial 2026, organizado entre o México, o Canadá e os EUA (desde que os norte-americanos não insistam em chamar soccer ao desporto) e para o Mundial 2030, apesar da candidatura de Portugal e Espanha - à qual a Ucrânia se atrelou -, julgo apropriado que seja nomeada a candidatura do Uruguai, Paraguai, Chile e Argentina, tratando-se do Mundial Centenário. Afinal, foi em 1930, no primeiro Mundial, que o Uruguai organizou o torneio, tendo a selecção uruguaia, inclusive, saído como a primeira campeã mundial.


Saliento que, sobretudo, o que se discutiu neste texto não foi football propriamente dito (isso está fora dos meus conhecimentos), mas sim as complexidades societais e políticas em torno deste desporto que, para o bem e para o mal, move muitas mentes e multidões… e dinheiros. O football em si já deixou de me interessar há uns anos.


Vernes, 18 de Frimário CCXXXI

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

2 Anos: Carta Aberta ao meu Príncipe

Meu Príncipe


A felicidade, amiúde, é um estado de difícil e demorada conquista. Leva tempo até alcançarmos, no nosso mais profundo âmago, este desígnio último, esta vontade derradeira, que caracteriza uma civilizada existência humana. Receitas para a felicidade colectiva são muitas e tão distintas. Mas a felicidade que conquistei para mim, embora tenha demorado anos, surgiu e instalou-se à velocidade da luz e resgatou-me do vortex tenebroso no qual a minha mente se afundava, ano após ano. Esta felicidade de que te falo é uma felicidade que deve sempre anteceder uma felicidade colectiva na sociedade, da mesma forma que, como defendeu Jim Morrison, para primeiro haver uma revolução na sociedade é primeiro necessário haver uma revolução pessoal, uma revolução de consciência, em cada um de nós. A felicidade sobre a qual te escrevo não é o usufruto consolidado e universal de uma sociedade plenamente livre e com recursos e tempo para satisfazer as necessidades básicas e lúdicas de toda a gente - esse projecto prometaico pensado desde os seguidores de Epicuro até aos iluministas radicais do século XVIII. Não. Eu falo precisamente dessa outra felicidade que antecede esta felicidade que descrevi, ou que, então, deve coexistir com um estádio colectivo de felicidade humana. 


A vida não é perfeita. A própria felicidade não é uma realização perfeita. Eu não sou uma pessoa perfeita. Tampouco tu és, meu Príncipe, uma pessoa perfeita. Todavia, também não é a perfeição que nós procuramos - algo próximo da perfeição, claro, mas não a perfeição rígida e consolidada, possivelmente porque tal coisa seria impossível ou então porque tal coisa deixaria de ser felicidade. 


A felicidade, para quem procura, pode ser conquistada num instante. Um acender da lâmpada. O piscar de um olho. O bater das asas de um pássaro. O cair de uma gota. O sibilar de uma serpente. No momento antes não havia motivos para grandes esperanças e a mente estava pesada, e no momento seguinte o peso do mundo tinha sido levantado de cima do meu peito e o alvor já era visível no horizonte. Sabes quando é que isso aconteceu, meu Príncipe? Quando vi a tua cara sorridente, e os teus olhos azuis a olharem para os meus e a tua voz calma e melodiosa a dizer o meu nome. Foi quando pude sentir o teu peito contra o meu e quando pude absorver-me no perfume que é o odor do teu cabelo. Foi quando tu me disseste que ias embora mas que obviamente ias regressar, e continuar a regressar, até que nunca mais foste embora. Claro que pude conhecer, também, as tuas ocasionais 'alucinações' da mesma forma que tu pudeste conhecer os meus defeitos de personalidade, mas isso também faz parte do amor e fará sempre parte de qualquer projecto de felicidade, não concordas meu Príncipe?! Como havíamos nós de progredir individual e colectivamente se já tivéssemos nascido perfeitos como os profetas e os messias dessas religiões que são veneradas por tantos milhões de mamíferos? Mamíferos como eu e tu. Seres humanos. Seres cujo único desígnio é - ou deveria ser - a procura incessante, dentro das várias circunscrições éticas, da felicidade. Tal procura, julgo eu, nunca será realizável se não houver amor. É isso que tu significas para mim, Filipe. O tudo ou o nada da procura da minha felicidade indissociável da tua própria felicidade.


Tenho lido Oscar Wilde para me inspirar a escrever-te esta carta. Optei por reler The Picture of Dorian Gray, para me embalar nas sensações e nas imagens e na beleza das frases e dos diálogos, e li uma pequena obra de Wilde que ainda nunca tinha lido: De Profundis. Uma carta que foi endereçada ao amado de Wilde, Lord Alfred Douglas, redigida enquanto o Oscar cumpria a sua ignóbil pena de prisão, e postumamente publicada. Não pude deixar de me encher de melancolia. O contraste das imagens literárias entre luzes (em Dorian Gray) e sombras (em De Profundis) é chocante. Como pôde um ser tão luminoso e optimista como Wilde ter mergulhado em tanta depressão e tanto ascetismo? E a parte mais melancólica é que nós sabemos como a estória acaba… pelo menos para Wilde. Certamente, em alguma altura da vida dele, ele terá sido feliz, mas, numa das últimas obras que ele alguma escreveu (esta de que escrevo), ele iniciou da seguinte forma: "Suffering is one very long moment." Mas esse não será o nosso desfecho, meu Príncipe. Escolha curiosa para um republicano convicto designar o amor da sua vida como Príncipe: Erguido, em luz, na acrópole da minha helénica cidade mental, tu és o Princeps Civitatis. És a bússola para os meus desígnios. O teu surgimento na minha vida representa para mim o que a publicação do Manifesto de Marx e Engels representa para os comunistas, a ascensão de Buda ao Nirvana representa para os budistas ou o que o nascimento e renascimento de Jesus Cristo representa para os cristãos. Antes de ti havia uma Era na minha vida, e depois de ti começou outra Era.


Faz hoje dois anos que nos conhecemos. Faz hoje dois anos que reencontrei felicidade plena. Tivesse eu nunca vindo para Évora, ou tivessem as circunstâncias da minha vinda para Évora sido diferentes, os tempos presentes, para mim e para ti, seriam muito diferentes. Mais sombrios, certamente. Mas a vida lá resolveu, finalmente, sorrir para nós. Desde nos conhecermos até decidirmos partilhar uma vida juntos, debaixo do mesmo tecto, passaram apenas três meses. Será portanto dentro deste tempo que mais outro aniversário se concretiza: o segundo aniversário do momento em que resolvemos viver juntos e em que decidimos adormecer e acordar lado-a-lado todos os dias. Não foi algo que tenhamos pensado com antecedência. Não foi algo que discutimos ou que projectámos. Simplesmente sucedeu porque era aquilo que faria mais sentido para nós. Porque haveriam duas pessoas que se amam de viverem em locais separados quando existe a oportunidade de viverem juntas? Porque haveriam, duas pessoas que se amam e que pretendem trilhar o longo caminho da vida juntas, de passar menos tempo na companhia mútua quando é possível maximizarem em união o usufruto do tempo? Estes pensamentos que partilho contigo transportam-me para uma expressão latina - carpe diem. Fazer o máximo feliz usufruto dos dias que vivemos e daqueles que temos pela frente. É nesta senda, pensando em ti, que gravo aqui estas quadras escritas por Robert Herrick em 1648:


"Gather ye rosebuds while ye may,

Old Time is still a-flying;

And this same flower that smiles today

Tomorrow will be dying.


The glorious lamp of heaven, the sun,

The higher he's a-getting,

The sooner will his race be run,

And neerer he's to setting.


The age is best, which is the first,

When youth and blood are warmer;

But being spent, the worse, and worst

Times still succeed the former.


Then be not coy, but use your time,

And while ye may, go marry;

For having lost but once your prime,

You may forever tarry."


Quando leres esta carta, sei perfeitamente o que estarás a pensar quando chegares a este parágrafo: a carta já vai longa! Sei também que gostas de evitar este tipo de exposições. Mas se tanta coisa é dita e celebrada na praça pública, e sobre tantos nomes e temas já versaram dezenas de textos neste blog, porque não usar o meu Pensatório da Divisão para manifestar o amor e a paixão que sinto por ti? Porque não celebrar o amor e a nossa jornada rumo à felicidade?


Já ouvi dizer, e já li, que em qualquer relação a paixão romântica e ardente desaparece de forma célere. Dizem que é uma chama fátua, e que aquilo que fica no seu lugar é aquilo que muitos caracterizam como uma forma mais madura de amar e que envolve sobretudo paciência. Que tipo de amor é esse que se baseia na paciência? O amor que sinto por ti, meu Príncipe, é um sentimento absolutamente dependente e apaixonado que aumenta cada dia que passa e que tomou o meu coração logo no início. Evidentemente que também há alguma paciência. Paciência minha para lidar com o teu mau humor quando tens fome, quando tens sono ou quando acordas, paciência tua para aturar as minhas predileções por tabaco e vinho ou o meu ocasional mau feitio. Todavia, face àquilo que nos une, a paciência é um grão de areia na totalidade da nossa razão de ser. A nossa pedra angular é a vontade mútua e incontornável de estarmos na companhia um do outro todos os dias das nossas vidas.


Uma vida inteira estende-se ante nós. Não percamos o tempo e os dias e concentremo-nos em fortalecer a nossa felicidade. Esta é a minha simples proposta, meu Príncipe. É verdade que já não imagino o que é viver sem ti - e por vezes esse facto deixa-me sobressaltado -, mas tal factualidade não tem de representar per se uma fragilidade se compreender que viver uma vida contigo me torna uma pessoa melhor, me torna feliz, me dá vontade de viver, me dá um propósito férreo e me dá esperança para o futuro.


Graças a ti, Sunshine, digo sem reticências que sou feliz. Parabéns para nós neste belo dia de Outono - e nós que gostamos tanto das épocas frias e da chuva. Amo-te, Filipe.


Post scriptum:


Esta primeira estrofe do Kubla Khan, de Samuel Taylor Coleridge, uma peça de poesia cheia de cenários naturais, imagens maravilhosas e letras magistrais, faz-me lembrar a tua beleza. Tão bom poder comunicar contigo na Língua Inglesa.


In Xanadu did Kubla Khan

A stately pleasure-dome decree:

Where Alph, the sacred river, ran

Through caverns measureless to man

Down to a sunless sea.

So twice five miles of fertile ground

With walls and towers were girdled round;

And there were gardens bright with sinuous rills,

Where blossomed many an incense-bearing tree;

And here were forests ancient as the hills,

Enfolding sunny spots of greenery.


Mércores, 2 de Frimário CCXXXI