sábado, 19 de março de 2022

O Crime do Boicote à Cultura Russa

A propaganda de guerra, envolvendo os seus truques e as suas ilusões transmitidas para o seu público alvo, é uma realidade muito antiga, e certamente tão antiga quanto a própria guerra. As diferentes facções beligerantes reclamam vitórias no seu lado e derrotas no lado contrário. As diferentes facções beligerantes afirmam que o lado contrário é mau e nojento. As diferentes facções beligerantes, por ventura, colocam toda a sua rede de informações ao serviço de uma campanha cujo objectivo é descredibilizar o adversário face à opinião pública internacional. Tudo isto existe, em ambas as barricadas da actual Guerra Russo-Ucraniana, e é normal que assim seja. Muita da guerra combatida é também um braço de ferro de propaganda no qual a meta é alinhar o maior número de nações possível por detrás da respectiva bandeira e da respectiva ‘verdade’ propagandística. 


A Rússia, representada pelo seu Chefe de Estado, afirmou que a Ucrânia é governada por nazis e que, em todo caso, é uma ficção enquanto nacionalidade. As autoridades da Ucrânia, por sua vez, já afirmaram que a Rússia está focada em comprometer a estabilidade das centrais nucleares ucranianas, sob pena de provocar um desastre nuclear de proporções continentais. A principal nação mobilizadora da propaganda de guerra ucraniana (para além da própria Ucrânia, claro) - refiro-me, portanto, aos EUA - já afirmou que o Governo Russo tem em mente perseguir tudo o que são activistas de direitos LGBTQ na Ucrânia… como se na Ucrânia as pessoas não-heterossexuais tivessem um nível de liberdade incomparável quanto àquele que é oferecido na Rússia (para não falar das zonas onde quem manda é o Batalhão Azov). Isto vindo de uma potência que tem como um dos seus principais aliados um estado - a Arábia Saudita - que condena qualquer prática ou expressão de homossexualidade com a pena de morte. A ironia da vida. Enfim, tudo o que enunciei está circunscrito à propaganda de guerra de ambos os lados e portanto deve ser interpretada com um elevado nível de cepticismo. Mas há outro tipo de propaganda de guerra: aquela que se esforça para criar um boicote nacional e internacional a tudo o que seja cultura e identidade nacional do seu adversário.


No presente momento, séculos de cultura e criação artística russa enfrentam uma vaga de censura, cancelamento, boicote. O que lhe queiram chamar. Enquanto escolas e universidades por esse mundo fora banem Fyodor Dostoyevsky e Lev Tolstoy de bibliotecas e planos de leitura, orquestras são pressionadas a retirar grandes vultos musicais russos do seu reportório, como são exemplo Pyotr Ilyich Tchaikovsky e Sergei Prokofiev. A grande justificação para a gravidade destes actos asininos é o facto destes escritores e músicos serem russos e portanto serem parte integrante da cultura russa. Uma das evidências que me leva a pensar que, em alguns aspectos, a sociedade dos nossos dias está mais insana do que estava há umas décadas é a seguinte: quando Hitler, enquanto Fuhrer da Alemanha, lançou a blitzkrieg sobre a Europa, não houve compositores e escritores alemães a serem banidos pela singular razão da sua nacionalidade. Ninguém baniu Richard Wagner, que no Século XIX era um óbvio nacionalista alemão. Ninguém baniu Nietzsche, que viria a ter as suas obras deslealmente exploradas e desvirtuadas para alentarem a narrativa racista do III Reich. Mas criadores de cultura como Dostoyevsky, Tolstoy, Tchaikovsky e Prokofiev - que não são inferiores a Wagner e Nietzsche - não têm escapado a este novo surto histérico de cancelamento da cultura russa, num século onde era suposto que, pelo menos aqui na Europa, tivéssemos superado tantos preconceitos e aprendido a ter um discernimento mais sensato. Ora vejamos o que é que estes escritores e músicos bandidos poderão ter feito para, tantos anos volvidos desde as suas mortes, serem submetidos a tão culturalmente irresponsável exercício censório… Nada. Tudo o que fizeram foi existirem e serem russos. No dicionário da língua portuguesa há um termo para descrever este tipo de atitude: russofobia. É o acto de agir em preconceito e discriminação para com algo ou alguém pelo único facto de ter origem na Rússia. Vejamos então nos parágrafos seguintes quem são estes vilões que, pelos vistos, não merecem melhor destino que o oblívio. Começarei pelos escritores.


Fyodor Dostoyevsky (1821 - 1881) foi um autor de romances, contos, ensaios, peças jornalísticas e traduções, considerado regularmente como um dos maiores mestres de ficção da literatura universal. Pessoalmente ainda não tive oportunidade de me familiarizar como devia com a sua bibliografia, todavia, tenho consciência de que a menção deste nome implica uma figura das letras de maior relevância e que as suas obras decisivas, como Crime e castigo (1866) e Os irmãos Karamazov (1880), são marcos da literatura existencialista, corrente esta que haveria de ter um enorme impacto na literatura portuguesa. Problemas com o governo do Absolutismo Régio do Império Russo não escassearam na vida de Dostoyevsky. Tantas vezes foi preso pelo regime absolutista, devido às suas posições ideológicas e filosóficas consideradas subversivas, por um Totalitarismo assente nos princípios sociais do Antigo Regime e apoiado por uma Igreja Cristã Ortodoxa altamente fanática, e vários foram os problemas financeiros que Dostoyevsky teve de aguentar durante os seus périplos pela Europa. Todavia, seria ainda no seu tempo de vida que Dostoyevsky viria a conhecer segurança financeira e sucesso como escritor. Várias obras na sua bibliografia estão traduzidas em mais de uma centena de idiomas. Haveria de falecer em São Petersburgo uns meses antes de comemorar o seu 60º aniversário.


Lev Tolstoy (1828 - 1910) é considerado um dos melhores escritores de sempre, tendo sido consecutivamente nomeado, ao longo de vários anos, a Prémios Nobel, tanto na Literatura como na Paz. Nunca ganhou nenhum, o que configura, até hoje, uma das maiores controvérsias em torno dos Prémios Nobel. Tolstoy é também um dos escritores mais lidos de sempre, com as suas obras traduzidas em mais de uma centena de idiomas (à semelhança de Dostoyevsky). Pessoalmente, guardo dele leituras como A Morte de Ivan Ilyich (1886) e O Reino de Deus está em vós (1894) que francamente me dói ver como alvos de cancelamento, censura, boicote, o raio que lhe entendam chamar. Nascido num ‘berço de ouro’, numa família aristocrata, morreu em circunstâncias míticas e fundacionais do Movimento da Contracultura (que viria a nascer 50 anos depois), renunciando às suas posses nobiliárquicas. Melhor descrito como um pacifista com tendências anarquistas, Tolstoy é talvez um dos grandes precursores dos movimentos socialistas cristãos como aquele a que a Primeira-Ministra portuguesa Maria de Lurdes Pintassilgo viria a fazer parte tantos anos mais tarde, e um dos principais colossos criativos do Realismo artístico a nível mundial. Sem dúvida, Tolstoy foi uma das maiores inspirações intelectuais para Mahatma Gandhi na sua filosofia de resistência não violenta e a sua magnum opus, Guerra e Paz (1869), mantém-se como uma das mais importantes obras da literatura universal.


Agora que escrevi estas sínteses biográficas destes dois escritores entre os criadores de cultura russos alvos de censura, é a vez dos músicos.


Pyotr Ilyich Tchaikovsky (1840 - 1893), hoje considerado um dos mais relevantes compositores musicais da História, conheceu no seu tempo de vida resistência ao seu trabalho artístico na Rússia - por considerarem que as suas obras se desviavam demasiadamente dos tradicionais cânones russos - e na Europa em geral - por considerarem que as suas obras não respeitavam os princípios fundamentais da composição europeia, e portanto eram demasiado russas. A sua vida foi atribulada, preenchida por muitos episódios depressivos, e a auto-reclusão a que sociedade tradicionalista da época o obrigou, no que concerne a sua homossexualidade, não fez favores à sua saúde mental. Apesar de tudo, Tchaikovsky, enquanto um dos colossos do Romantismo - e com certeza o maior 'embaixador' do Romantismo russo a nível musical -, foi bem sucedido em criar uma obra musical que ainda hoje é bem conhecida, e que exerceu tremenda influência sobre a criação musical posterior, inclusive a nível de composição para as artes cénicas. A Abertura 1812 (1882), composta a propósito do 70º aniversário da repulsão do território russo, do exército francês comandado pelo Imperador Napoleão Bonaparte, para além de ser uma das suas peças musicais mais famosas, é também uma obra revolucionária na composição musical e na instrumentalidade musical. Outras obras de Tchaikovsky, dignas de menção e audição, são os balés Lago dos Cisnes (1877) e O Quebra-Nozes (1892). Quanto ao regime czarista, apesar do patriotismo convicto de Tchaikovsky, o músico não nutria grandes paixões por ele, sendo uma pessoa movida pelos valores culturais do Romantismo.


Sergei Prokofiev (1891 - 1953) é um dos mais destacados compositores musicais do Século XX, tendo desenvolvido maior parte da sua obra musical já após a formação da União Soviética, entidade política com a qual o balanço das relações poderá ser interpretado como positivo e amistoso, não obstante alguns fiascos, nomeadamente a ‘acusação de formalismo’ por parte do governo estalinista em 1948 - no espaço soviética, Stalin não queria na arte outra coisa que não fosse Neo-realismo, tudo o resto era totalmente banido. Prokofiev, apesar de ser considerado russo - e era efectivamente como ele próprio se identificava -, nasceu naquilo que hoje é a Ucrânia (que na época do seu nascimento fazia parte ao Império Russo), o que torna ainda mais irónica qualquer atitude de cancelamento da sua música nos dias presentes. Prokofiev teve acesso a uma vida viajada, onde teve oportunidade de fazer concertos de piano e de orquestra na Europa e na América do Norte. Com autorização do Comissariado do Povo, Prokofiev viria a residir nos EUA, França e Alemanha Ocidental, todavia, nos anos 30, devido ao flagelo social e financeiro da Grande Depressão, Prokofiev regressaria permanentemente à URSS onde a crise económica não se tinha feito sentir com a mesma intensidade como no resto do mundo. Tanto no seu tempo de vida como nos dias presentes, a sua obra musical é relativamente negligenciado devido às fissuras criadas pela Guerra Fria, contudo, obras de Prokofiev dignas de menção e audição são o balé Romeu e Julieta (1938), baseado na obra homónima de Shakespeare,  - onde consta o famoso andamento Dança dos Cavaleiros - e a ópera Guerra e Paz (1946) baseada na obra homónima de Tolstoy. Um músico prolífico no piano e um compositor que explorou um vasto arco de géneros musicais, Prokofiev viria a falecer pouco antes de fazer 62 anos de idade. A sua morte não recebeu honras especiais por parte da União Soviética.


São estes eternos protagonistas da cultura europeia alguns dos visados por aqueles que juram a pés juntos serem os bons da fita. Será possível que os bons da fita de facto o sejam ainda que promovam atitudes censórias contra indivíduos que nada têm que ver com o que se está a passar? (Pelo Prokofiev não posso meter as mãos no fogo, mas tenho grandes certezas, já agora, que Tolstoy, Dostoyevsky e Tchaikovsky condenariam tal atitude por parte da Rússia. Tolstoy e Dostoyevsky, pelo menos, fizeram-no várias vezes, em situações de relativa semelhança, no tempo do Império dos Romanov). Nada disto faz sentido. Não há nenhuma outra motivação para isto que não seja russofobia. Já foi possível constatar que nenhum destes artistas foi um imperialista de palavra e acção. Já foi possível constatar que estes artistas foram pacifistas, românticos e insurgentes contra o Império Russo, apesar de serem russos. Já pudemos constatar que todos eles, de uma forma ou outra, e em diferentes graus, sofreram às mãos das vicissitudes sócio-políticas da Rússia e da sociedade em geral. Nem Putin, nem o seu círculo de oligarcas, escreveu uma sinfonia ou um livro que seja. Para cúmulo das injustiças, são ícones culturais que nasceram no Século XIX que pagam a factura.


O boicote mais discutido é certamente aquele que foi promovido por imensas orquestras à Abertura 1812 de Tchaikovsky. Inclusive, já houve maestros russos a demitirem-se ou a serem convidados a sair da direcção de orquestras. E nada mais há nesta conjuntura a não ser o facto de eles serem parte da nacionalidade russa. Esta peça musical de 15 minutos é, claro, uma celebração de uma vitória bélica. Tudo naquela obra faz lembrar uma marcha militar. Mas quem a escolhe ostracizar parece esquecer que a vitória russa que esta obra celebra foi um evento militar no qual a Rússia não era o invasor, mas sim o invadido (pondo de lado o facto de terem sido os Romanov quem espicaçaram a França aquando da Revolução Francesa e pondo de lado as aspirações napoleónicas de derrube da Monarquia Absoluta na Rússia). A Abertura 1812 é um dos melhores exemplos de épica celebração patriótica e Romantismo misturados numa experiência musical que desafiou as próprias convenções de estrutura musical e cuja qualidade ainda hoje é apreciada por milhões de pessoas por esse mundo fora. Deixem Tchaikovsky em paz!


Coloquemos a hipótese: Ainda que nenhum destes escritores e músicos tivesse um papel de explícita intervenção na sociedade, ainda que nenhum destes ícones culturais tivesse tido contendas com o status quo que os circundava, ainda que nenhum destes indivíduos se tivesse insurgido explicitamente contra o imperialismo ou uma qualquer ditadura de pensamento único, as respectivas obras literárias e musicais falariam por si, e falam por si - têm voz própria. Claro que as obras são aquilo que são devido à natureza e à motivação dos respectivos criadores, e portanto as obras têm o seu conteúdo devido às experiências e ao pensamento do seu criador, mas tal não anula uma máxima que quanto a mim é basilar para a vida cultural e a criação artística de uma sociedade: Arte pela arte - a ideia-chave do Manifesto Esteticista de Oscar Wilde, e que encontrou seguidores no Modernismo do Século XX, inclusive em grandes escritores portugueses como José Régio. 


O ideal esteticista - com evidentes raízes no Romantismo britânico - de “arte pela arte” significa que a arte não têm obrigação de promover, forjar, espelhar ou alentar outra coisa que não seja a criação de beleza e prazer artístico, independentemente dos sentimentos e emoções que tal criação provoque. É o ideal derradeiro de liberdade para a criação artística, e é o ideal que as sociedades liberais e conservadoras do Século XXI parecem rejeitar, numa época onde as ambiguidades e relatividades qualitativas do Pós-modernismo parecem imperar. Uma época também onde reina o princípio de dois pesos e duas medidas: se, numa histeria de eliminação cultural (talvez lhe devêssemos chamar ‘O Grande Salto Atrás’, como outros saltos que afirmaram erroneamente serem para a frente), decidíssemos começar a perseguir todos os criadores de cultura que, ao longo da História, possam ter emitido e alentado visões tóxicas da sociedade, bem que poderíamos declarar a cruzada contra toda a cultura. Mais valia começarmos a fazer como os fundamentalistas islâmicos e declarar qualquer instrumento musical como banido. Bem que podíamos cancelar tudo e mais alguma coisa. Seria mais uma lindíssima reedição da caça às bruxas. Wagner seria dos primeiros a serem despejados para as profundezas de Tártaro. Adeus Cavalgada das Valquírias. Não restaria música, nem pintura, nem livro.


Parece demasiado fácil banir uns quantos livros e umas quantas peças musicais, e deixar uns quantos escritores e músicos russos na sombra - por ventura onde o comum dos norte-americanos os quer ver. Fazer isso é cometer um crime contra a própria arte e contra a própria criação artística. A Europa consegue ser melhor que isso. A Humanidade consegue ser melhor que isso, e tanto as culturas mundiais têm a agradecer à criação feita na Rússia. Querem fazer esforços para impedir que jovens leiam Tolstoy e Dostoyevsky? Querem barrar uma pessoa da minha idade, ou mais nova, de entrar em contacto com uma experiência musical de Tchaikovsky ou Prokofiev? Aos meus olhos, isso é um crime. Boicotar música e literatura devido somente à sua nacionalidade é um crime que brada aos céus. Nada mais há aqui em causa, e basta! É um atentado contra a cultura. Deixem em paz a cultura russa!


Apraz-me constatar que na República Portuguesa tais diligências censórias ainda não tiveram efeito.



Sábado, 28 de Ventoso CCXXX

terça-feira, 8 de março de 2022

Manifesto Russell-Einstein

Um prefácio modesto:

À luz dos dias de incerteza que temos vivido, com a guerra de regresso à Europa, e com uma guerra cujas ramificações poderão revelar-se calamitosas para a paz mundial, julguei oportuno publicar neste blog, em quantidade integral, aquele que é conhecido como o Manifesto Russell-Einstein.


Este texto, subscrito pelos cientistas e intelectuais mencionados abaixo do Manifesto, foi promovido e redigido por duas das maiores mentes que a Humanidade já conheceu: Bertrand Russell e Albert Einstein. Einstein, efectivamente, escusa introduções, mas ainda assim irei fazê-la:


A sua mente prodigiosa estabeleceu o actual paradigma científico no que concerne ao ramo da Física, tendo sido galardoado com o Prémio Nobel da Física em 1921, e o seu activismo na sociedade internacional falou sempre contra os perigos do Totalitarismo e contra a sociedade belicista. Convém recordar que Einstein foi uma das vítimas da emergência nazi na Alemanha, devido à sua etnia judaica, tendo sido obrigado a fugir da sua nação mãe quando Hitler chegou ao poder, já estando galardoado com o Prémio Nobel. Felizmente, a sua fuga seria um sucesso, tendo conseguido encontrar asilo nos EUA presididos por Roosevelt, onde eventualmente viria a ser Professor na Universidade de Princeton. Durante duas décadas Einstein foi conselheiro da Casa Branca em matérias científicas e relacionadas com a Defesa e inclusive foi convidado a assumir a presidência do Estado de Israel aquando da sua fundação, não obstante a ter recusado. Ideologicamente, Einstein foi também um advogado da causa socialista e democrática durante boa parte da sua vida. 


Bertrand Russell, galardoado com o Prémio Nobel da Literatura cinco anos antes da publicação do Manifesto, foi o principal proponente do texto que se seguirá, e foi um autêntico polímata em plena Idade Contemporânea. Um Professor, matemático e filósofo da lógica - ciência cognitiva e ciência da computação - no ramo da sua formação e profissão, dedicou-se também a outras áreas da Filosofia e à História. A sua militância ateísta e a favor da Ciência são uma das minhas grandes inspirações ideológicas e filosóficas. O seu estatuto como aristocrata galês no Reino Unido nunca o distraiu das atribulações socioeconómicas da Classe Trabalhadora e a sua maior causa como membro da Câmara dos Lordes no Parlamento Britânico foi a abolição dessa mesma Câmara e o avanço de políticas socialistas. Sobretudo, Lord Russell foi o Lord Byron do Século XX, com menos poesia mas mais Socialismo. Foi ele que pessoalmente inspirou os Beatles a politizarem-se e, com 90 anos de idade, Russell liderava o Movimento da Contracultura na Inglaterra. Aos 89 anos, Russell esteve preso na Prisão de Brixton, por “disromper a paz”, após ter estado numa manifestação contra a guerra e o armamento nuclear em Londres. 


O Manifesto Russell-Einstein é pertinente não só pela sua importância como fonte historiográfica, mas também pela sua actualidade e pelas suas observações relativamente à fina linha em que a Humanidade caminha. É também um dos textos fundacionais do Movimento da Contracultura - ao qual este blog está e sempre estará inequivocamente afecto. Hoje as circunstâncias globais podem não ser exactamente as mesmas, mas o conflito entre o dito “Leste” e o dito “Ocidente” mantêm-se, e os perigos de hoje podem tornar-se tão reais como aqueles que eram observados em 1955, quando este texto foi redigido. O assunto de preocupação, em primeiro plano, sobre o qual este texto se debruça é a ameaça da guerra nuclear para a existência da Humanidade. Na época em que este Manifesto foi escrito ainda não havia o grau de conhecimento que hoje existe relativamente à capacidade de destruição de armas nucleares. Do ponto de vista científico, o futuro não só veio a dar razão ao texto de Bertrand Russell e Albert Einstein, como veio também a agravar as preconizações dos signatários do Manifesto. Há armas, nos dias presentes, com o tenebroso poder de destruição nacional instantânea. 


A constante narrativa dos bons e dos maus na contenda que vemos desenrolar-se em território europeu é uma acha na fogueira onde a Europa poderá ser queimada e é um convite a uma guerra mundial que conduzirá à morte universal de tudo. Aceitaremos esse convite?


Segue-se o Manifesto, traduzido por mim directamente do inglês, o idioma em que foi escrito. Para quem quiser consultar a versão original, poderá fazê-lo em https://www.atomicheritage.org/key-documents/russell-einstein-manifesto



«Na trágica situação enfrentada pela Humanidade, considerámos que os cientistas deveriam reunir-se em conferência para avaliar os perigos que surgiram como resultado do desenvolvimento de armas de destruição massiva, e para discutir uma resolução na linha da ata anexada.


Nós falamos, nesta ocasião, não como membros desta ou daquela nação, continente, ou credo, mas como seres humanos, membros da espécie humana, cuja contínua existência está em causa. O mundo está cheio de conflitos; e, eclipsando todos os demais conflitos menores, a luta titânica entre Comunismo e Anti-comunismo.


Quase todas as pessoas que são politicamente conscientes têm sentimentos fortes relativamente a um ou vários destes assuntos; mas nós queremos, se conseguirem, que coloquem de lado tais sentimentos e considerem-se somente como membros de uma espécie biológica que tem tido uma história notável, e cujo desaparecimento nenhum de nós pode desejar.


Nós iremos esforçar-nos para não dizer uma única palavra que possa apelar a um grupo mais do que outro. Todos, igualmente, estão em perigo, e, se o perigo for compreendido, há esperança de que colectivamente o possam evitar.


Temos de aprender a pensar de uma forma nova. Temos de aprender a perguntar-nos, não que passos podem ser dados para dar vitória militar para qualquer um dos grupos que possamos preferir, pois já não existem tais passos; a questão que temos de nos colocar é: que passos podem ser tomados para prevenir uma contenda militar cujo desfecho será desastroso para todos os partidos?


O público em geral, e até muitos homens em posições de autoridade, não compreenderam o que estaria envolvido numa guerra com bombas nucleares. A opinião pública ainda pensa em termos de obliteração de cidades. É compreendido que as novas bombas são mais poderosas que as antigas, e que, enquanto uma Bomba Atómica poderia obliterar Hiroshima, uma Bomba de Hidrogénio poderá obliterar as maiores cidades, como Londres, New York, ou Moscovo.


Sem dúvida que numa guerra com Bombas de Hidrogénio grandes cidades seriam obliteradas. Mas este é um dos desastres mínimos que seriam enfrentados. Se toda a gente em Londres, New York e Moscovo fosse exterminada, o mundo poderia, dentro de alguns séculos, recuperar desse impacto. Mas agora sabemos, desde o atol de Bikini, que as armas nucleares podem espalhar destruição sobre uma maior área do que aquela que estava preconizada.


É agora afirmado com propriedade que uma bomba poderá agora ser manufacturada e que poderá ser 2500 vezes mais poderosa que a que destruiu Hiroshima. Tal bomba, se for explodida perto do solo ou debaixo de água, envia partículas radioactivas para a atmosfera superior. Elas descendem gradualmente e atingem a superfície da terra sob a forma de uma mortífera poeira ou chuva. Foi esta poeira que infectou os pescadores japoneses e a sua pesca. Ninguém compreende o quão disseminadoras serão tais partículas radioactivas, mas as melhores autoridades são unânimes em afirmar que uma guerra com Bombas de Hidrogénio poderá pôr um fim à espécie humana. Teme-se que se muitas Bombas de Hidrogénio forem usadas haverá morte universal, súbita apenas para uma minoria, mas para a maioria uma tortura lenta de doença e desintegração.


Muitos foram os avisos endereçados por homens da ciência e por autoridades de estratégia militar. Nenhum deles afirmará que os piores desfechos serão certos. O que eles afirmam é que estes desfechos são possíveis, e ninguém tem a certeza de que não aconteçam. Ainda não determinámos se estas perspectivas de especialistas, nesta questão, dependem em algum grau das suas opiniões políticas ou dos seus preconceitos. Elas dependem somente, no que concerne aquilo que as nossas investigações têm revelado, da extensão de conhecimento dos ditos especialistas. Nós averiguámos que os homens que mais sabem são aqueles que estão mais amedrontados.


Eis, então, o problema que colocamos perante vós, enfático e tenebroso e inescapável: Colocaremos um fim à espécie humana; ou deverá a humanidade renunciar à guerra? As pessoas não quererão encarar esta escolha porque abolir a guerra é demasiado difícil.


A abolição da guerra implicará desagradáveis limitações quanto à soberania nacional. Todavia, aquilo que provavelmente impede uma melhor compreensão da situação, mais do que qualquer outro aspecto, é o termo “humanidade” parecer algo vago e abstracto. As pessoas dificilmente entendem na sua imaginação que o perigo é real para si próprias, e para as suas crianças e os seus netos, e não apenas para uma pequena porção da humanidade. As pessoas dificilmente poderão compreender que elas, individualmente, e aqueles que amam estão em iminente perigo de desaparecerem de forma agonizante. E, portanto, as pessoas têm esperança de que talvez a guerra possa continuar desde que as armas modernas sejam proibidas.


Esta esperança é ilusória. Quaisquer que tenham sido os acordos, celebrados em tempos de paz, para que Bombas de Hidrogénio não sejam usadas, tais acordos não seriam mais observados em tempos de guerra, e ambos os lados iriam trabalhar para produzir Bombas de Hidrogénio assim que a guerra tivesse início, porque se um lado produzisse as bombas e o outro não o fizesse, o lado que as tinha produzido seria inevitavelmente vitorioso.


Embora um acordo para renunciar armas nucleares como parte de uma redução geral de armamento não iria fornecer uma solução derradeira, serviria contudo propósitos importantes. Primeiro, qualquer acordo entre Leste e Ocidente só será benéfico se tendenciar a diminuição da tensão. Segundo - a abolição de armas termo-nucleares - se cada lado acreditasse que o outro lado as tinha abolido sinceramente, tal iria diminuir o receio de um ataque súbito ao estilo de Pearl Harbor, que presentemente mantém ambos os lados num estado de nervosa apreensão. Deveríamos, portanto, encorajar tal acordo, embora apenas como primeiro passo.


A maioria de nós não é neutral quanto aos seus sentimentos, mas, enquantos seres humanos, temos de nos recordar que, se os problemas entre Leste e Ocidente têm de ser resolvidos num qualquer formato que possa trazer satisfação para alguém, seja Comunista ou Anti-comunista, seja Asiático ou Europeu ou Americano, seja Branco ou Negro, então estes problemas não poderão ser decididos por via da guerra. Nós desejamos que isto seja compreendido tanto no Leste como no Ocidente.


Perante nós há, se assim o escolhermos, contínuo progresso na felicidade, no conhecimento, e na sabedoria. Escolheremos antes a morte, porque não conseguimos esquecer as nossas quezílias? Nós apelamos como seres humanos perante seres humanos: Lembrem-se da vossa humanidade, e esqueçam o resto. Se assim conseguirem pensar, o caminho está aberto para um novo Paraíso; se não conseguirem, perante vós está o risco de morte universal.


Resolução:


Nós convidamos este Congresso, e através dele os cientistas do mundo e o público em geral, a subscrever a seguinte resolução:


“Tendo em vista o facto de que numa futura guerra mundial serão certamente empregues armas nucleares, e que tais armas ameaçam a contínua existência da humanidade, nós apelamos aos governos deste mundo a compreenderem, e a reconhecerem publicamente, que os seus propósitos não podem ser prosseguidos numa guerra mundial, e apelamos, consequentemente, que encontrem meios pacíficos para resolverem todas as formas de disputa que possam haver.”


Max Born


Percy W. Bridgman


Albert Einstein


Leopold Infeld


Frederic Joliot.Curie


Herman J. Muller


Linus Pauling


Cecil F. Powell


Joseph Rotblat


Bertrand Russell


Hideki Yukawa»



Martes, 17 de Ventoso CCXXX


quinta-feira, 3 de março de 2022

Uma Etapa na História da Europa: Rússia e Ucrânia


A guerra é algo horrível. O pior de todos os inventos desenvolvidos pela Humanidade, e é por isso que, contrariando as afirmações de muitos filósofos e sábios, eu afirmo que a guerra é uma condição humana. A guerra é humana porque mais nenhuma espécie é capaz de dar início a uma guerra. Somos a única espécie capaz desta barbárie última, que põe em causa a própria existência da nossa espécie. A guerra não é um fenómeno contrário à humanidade, portanto… mas talvez seja contrário à nossa saudável existência. "A humanidade é um desastre enquanto espécie". A guerra é pavorosa. Para mim, a perspectiva de ter uma guerra é assombrosa, medonha, aterrorizante. Uma guerra não é um jogo. Há destruição massiva de edifícios, há muitas pessoas mortas, há crianças mortas. Tendo isto dito, é necessária uma contemplação racional sobre o que se está a desenrolar na Ucrânia.


Há 7 dias, as forças militares russas iniciaram uma ofensiva militar sobre o território ucraniano com o pretexto de proteger as regiões separatistas (Luhansk e Donetsk) da agressão do Estado Ucraniano e por outro lado infligir duros golpes contra o coração da Ucrânia. O objectivo seria simples para os governantes russos, encabeçados pela encarnação dos czares Vladimir Putin, - garantir a efectiva e consolidada separação de Luhansk e Donetsk da Ucrânia e garantir que as forças militares ucranianas não tornariam a encetar ataques contra estas regiões. Mas isto foi ontem, quando o conflito começou. Acontece que, mais do que consolidar a separação da região de Donbass do Estado Ucraniano, a Rússia pretende tomar toda a Ucrânia numa tempestade, derrubar o actual governo ucraniano e colocar lá outro de que Putin talvez venha a gostar. Confesso que nem sempre eu vi assim a situação, mas as forças russas sempre quiseram mais do que Donbass. A Rússia, volvidos 30 anos, já está perante os portões de Kiev. E, entretanto, o governo ucraniano clama que o acudam. Talvez agora Zelensky tenha compreendido que presidir a um estado-nação não é um sketch humorístico.


Como qualquer outro conflito, para este ser compreendido (antes de começarmos a levantar bandeiras e a dizer disparates como, Eu sou ucraniano, dando uma nostalgia de Kennedy) há que compreender a História por detrás das relações entre a Rússia e a Ucrânia. Determinadas pessoas que estão a ler este texto poderão pensar "grande seca, mais História". Se assim for, eu digo-lhes: se gastaram miolos suficientes para decidirem por qual dos estados levantariam uma bandeira (se é que na presente situação fará sentido erguer bandeiras russas ou ucranianas), então gastem mais uns tantos para que se compreenda o passado que conduziu a este ponto. A guerra não é um jogo e levantar bandeiras em tempo de guerra também não, por mais que as consequências do conflito nos sensibilize.


Rússia, Bielorrússia e Ucrânia partilham um passado identitário comum que remonta à Alta Idade Média: a Rus Kievana, ou Rússia de Kiev/Rússia Kievana como geralmente aparece na literatura lusófona (Rus de Kiev em castelhano, Rus' de Kiev em francês, Kiewer Rus em alemão, Kievan Rus' em inglês, Rus' Kijowska em polaco, Russia Kioviensis em latim). A Rus Kievana (para não gerar confusões com a Rússia moderna designarei assim esta formação política) foi uma federação solta e descentralizada, composta por vários estados autónomos (muitos destes eram principados vassalos) de eslavos e escandinavos assimilados pela cultura eslava, fundada no Século IX. A Rus Kievana era liderada a título monárquico (num modelo de Monarquia Feudal altamente descentralizada) pelo Grão-Príncipe de Kiev enquanto chefe da Dinastia Ruríquida, fundada no ano 862 pelo Príncipe Rurik de Novogárdia Magna. Nos seus primórdios fundacionais, a Rus Kievana era uma sociedade altamente diversa onde as religiões politeísta da Escandinávia e dos eslavos predominavam, tendo o Cristianismo Ortodoxo iniciado um massivo processo de conversão religiosa e perseguição sangrenta aos politeístas eslavos no final do século seguinte, com o patrocínio do Império Bizantino. No Século XI, quando o culturalmente genocida processo de cristianização já se encontraria num estádio consideravelmente avançado, a Rus Kievana atingiu o seu apogeu de expansão territorial, compreendendo o espaço entre o Mar Branco e o Mar Negro, no eixo norte-sul, e do Rio Vístula à Península de Taman no eixo oeste-leste. Fazendo uma sobreposição ao mapa político europeu do Século XXI, a Rus Kievana nesta altura englobaria parcialmente ou totalmente: Rússia, Bielorrússia, Ucrânia, Roménia e Moldávia. Todavia, esta formação política de mosaicos feudais não duraria para sempre, como aliás nada dura para sempre.


No Século XIII, uma tempestade de fogo furioso sob a forma das hordas mongóis chegaria à Europa. Após o Império Mongol ter conquistado quase todo o mundo asiático, incluindo a China (excepções notáveis são o subcontinente indiano e o Japão), nos anos 40 desse século, tomando proveito de uma federação eslava em declínio e em profunda crise económica - em parte devido ao fim das relações comerciais com o Império Bizantino -, as hordas da Mongólia passaram a Rus Kievana a fio de espada, como até aí sempre tinham feito (sendo esta federação a porta leste de entrada para a Europa na Baixa Idade Média) e tomaram território até não poderem mais - neste caso, imagine-se, as hordas mongóis estiveram a umas centenas de quilómetros da Península Itálica. Quanto à Rus Kievana? Foi absolutamente engolida pela Mongólia - que nesta época já tinha cimentado o seu lugar na História como o maior império continental de sempre - e as cidades de Kiev e Moscovo foram pulverizadas. Novogárdia foi das poucas grandes metrópoles que evitou a destruição, não obstante ter sido conquistada. Foi uma época em que os povos eslavos sofreram em uníssono. Foi uma época em que uma etapa na História dos povos eslavos terminou. Uma época comum ao passado das nações eslavas que hoje fazem parte da arquitectura de nacionalidades europeias. Mas o Império Mongol não permaneceria ad aeternum, e tampouco a História dos Eslavos chegaria ao fim. E no final de contas, a Rússia moderna ainda estava por nascer das cinzas de um remoto passado eslavo e nórdico.


A Estado Russo, enquanto entidade política e enquanto congregação de “todas as rússias”, nasce no Século XVI sob a égide do líder do Grão-Principado de Moscovo, Ivan. O Terrível (assim foi como este monarca russo ficou conhecido na História) ainda tinha 16 anos quando o seu conselho próximo o declarou César de todas as rússias, ou Czar (que é a tradução/adaptação de césar para russo, ou seja, imperador). Em 1547 assim Ivan IV, Grão-Príncipe de Moscovo, foi proclamado e coroado. A cereja no topo do bolo, para legitimar a coroação de um suzerano supremo sobre todos os russos, era o facto de Ivan IV ser um membro da Dinastia Ruríquida, a mesma que tinha detido a (simbólica) liderança da Rus Kievana durante quatro séculos. Nos 37 anos de reinado que se seguiram veio o processo de consolidação do poder real de Ivan IV, centralização dos poderes e das influências na Coroa e em Moscovo, e expansão territorial como há muitos anos não se via na sociedade eslava. No último quartel do Século XVI, já com território tomado na Fenoscândia, a Rússia já se tinha estendido para sul no Leste Europeu e tinha iniciado uma crucial expansão territorial para dentro da Ásia. Com a morte de Ivan IV (com uma insanidade extrema, diga-se) a Rússia já tinha iniciado a ocupação da Sibéria e já tinha transposto os Montes Urais. 


A Dinastia Ruríquida poderá ter terminado com o fim do Século XVI, iniciando-se um período de violenta anarquia na Rússia, contudo, a ordem foi restaurada com a chegada da Dinastia Romanov ao trono de todas as rússias. Após os Romanov terem assumido o controlo da Rússia, iniciar-se-ia a longa marcha da Rússia rumo ao estrelato mundial das potências económicas e militares. No que concerne ao território que hoje é a Ucrânia, este seria parte da Rússia até à proclamação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) no início do Século XX.


Com a Revolução Comunista na Rússia em 1917, a Dinastia Romanov e o seu Absolutismo Régio foram derrubados e um projecto de libertação da humanidade foi iniciado. Esse projecto visava resolver a premente questão das nacionalidades no seio do extinto Império Russo e oferecer uma hipótese de transformação do paradigma de produção económica em todo o mundo. O projecto de que escrevo - e cujas ambições humanistas seriam destruídas em absoluto uma década após a sua fundação - é a URSS. A União Soviética foi fundada na última etapa da Guerra Civil Russa - ou, em alternativa, a guerra na qual as potências imperialistas conseguiram, a médio prazo, impedir o progresso histórico. Nos fundamentos da fundação da União Soviética, era crucial cada nacionalidade ser directamente governada pela sua república, e foi consoante o diverso mosaico de nacionalidades do antigo Império Russo - que tinha marcado a História dos povos eslavos até aí - que foram constituídas as diversas repúblicas soviéticas socialistas. A Ucrânia foi constituída como tal segundo esse mesmo propósito. Em 1954 deu-se o primeiro evento que contribuiu directamente para a situação que vemos desenrolar-se perante os nossos olhos: o Presidente da URSS, Nikita Kruschev, decidiu transferir a administração da Península da Crimeia da RFSSR (República Federal Soviética Socialista da Rússia) para a RSSU (República Soviética Socialista da Ucrânia). Após a desintegração da URSS em 1991, as diversas repúblicas alcançaram a independência de Moscovo, e a Ucrânia (mantendo o território que lhe tinha sido atribuído pela União Soviética, com capital em Kiev) afirmou-se como um estado soberano.


Nos 30 anos que se seguiram o percurso tem sido atribulado. Por um lado uma Ucrânia que quis afirmar a sua nacionalidade e a soberania, após séculos de vassalagem ao poder russo. Por outro lado, uma Rússia que se quis erguer dos escombros da URSS e reafirmar-se como uma grande potência económica e militar, como antes havia sido no tempo do Czares. É isso que Vladimir Putin quer. Ele não quer uma União Soviética nem um ‘império soviético’. Ele quer um Império Russo. Ele quer ressuscitar a glória da Rússia czarista e isso implica tomar o território ou deter controlo sobre todos os espaços que antes faziam parte ao Império Russo, independentemente de nacionalidades, de línguas, de culturas, de costumes, de vontades.


Há 8 anos a Rússia fez a sua primeira grande jogada para ressuscitar o Império, tomando proveito do altamente disseminado sentimento pró-russo que existe numa península que até então - e desde 1954 - pertencia ao território ucraniano. Essa jogada foi a anexação da Crimeia, uma península historicamente russa que detém uma importância geo-estratégica indispensável para o projecto imperialista dos actuais governantes russos. Acontece que, no âmbito dos argumentos usados pelos governantes russos para anexar a Crimeia, muita lógica existiu para legitimar a Crimeia como um território russo. Afinal, durante quase 200 anos a Crimeia tinha sido parte do Império Russo, tendo deixado de o ser por mero capricho do ucraniano Presidente da URSS Kruschev, e antes disso tinha sido um território eslavo do Império Otomano. Foi com este evento de anexação que nasceu o actual conflito russo-ucraniano. Nos anos que se seguiram as zonas de Donetsk e Luhansk, na Ucrânia, têm visto a insurgência popular de cidadãos legalmente ucranianos que não se sentem como tal, mas sim como russos. Entretanto, nesse mesmo ano em que a Crimeia foi anexada, um grupo paramilitar ganhou notoriedade, não só pelas façanhas militares na manutenção do Donbass como território ucraniano, mas também pelos seus inqualificáveis actos de barbaridade, pelos seus efectivos crimes de guerra e pela sua militância abertamente neo-nazi. O medonho grupo paramilitar de que escrevo é o Batalhão Azov, legitimado na sua dignidade actorial e patrocinado pelo Governo da Ucrânia. Este grupo de terroristas, que tem cometido torturas e assassinatos bárbaros, em nome do Estado Ucraniano, contra insurgentes pró-russos, contra militantes anti-fascistas e contra homens homossexuais ou bissexuais, tem absoluto aval do Governo de Zelensky para patrulhar e defender a pátria ucraniana. A Suástica Nazi é um dos símbolos oficiais ostentados pelo Batalhão Azov. Para aqueles que estiverem a enviar mundos e fundos e munições para o esforço de guerra ucraniano, lembrem-se que as migalhas também encontram o seu caminho até esta frente nazi ao serviço da Ucrânia. E alertava a Administração Biden para as possíveis atrocidades que a Rússia poderia cometer contra activistas LGBTQ… bem, caso não tenham reparado, essas atrocidades já são cometidas em solo ucraniano com ou sem Vladimir Putin. Mas eles bem se esforçam para nos garantir que a contenda bélica que está a ser travada é uma guerra entre o bem e o mal. Continuemos, então.


Há 7 dias, Putin decidiu abrir o jogo e agir unilateralmente, invadindo o território ucraniano para depor o seu governo e assegurar controlo e influência sobre este pedaço importante do Continente Europeu. As reacções da Europa e dos EUA foram demasiado óbvias para não serem comédia. De um segundo para outro já toda a gente sabia qual era a bandeira da Ucrânia, erguendo-a em tudo o que era redes sociais, sem esperarem um minuto e reflectir. Reflectir se por vezes a neutralidade perante conflitos não será a manobra mais sensata e segura. Espero que também já saibam apontar a Ucrânia no mapa. Espero que ninguém volte a afirmar que eslavos são todos a mesma coisa. E perante um cenário de agressão de uma nação a outra, numa Europa onde ninguém quer presenciar isso, e com razão, rápidos foram os EUA a saltarem para o pedestal de ordens, orientações e receitas de ordem mundial, usando a Europa e, sobretudo, a Ucrânia, como escudo a ser investido contra um urso furibundo que tinha estado adormecido.


No núcleo deste conflito a Ucrânia foi e é um joguete nas mãos dos EUA. Tivesse a Ucrânia honrado os Acordos de Minsk, tivesse a Ucrânia mantido a neutralidade política à semelhança da Finlândia e da Suécia, tivesse a Ucrânia não alinhado no cerco geopolítico que os EUA, através da NATO, impuseram à Rússia, tivessem os sucessivos governos ucranianos nunca reclamado adesão à NATO, talvez a Rússia nunca tivesse sentido necessidade de adoptar esta postura musculada e mandar a diplomacia aos arames. No dia em que os ucranianos compreederem que escolherem alinhar-se com a Rússia ou com os EUA é uma falácia do falso dilema e é uma armadilha que os EUA montaram à Europa e da qual o imperialismo russo logrou proveito, talvez se possa virar o tabuleiro ao contrário.


A tomada de posição que seria desejável a Europa e a República Portuguesa singularmente terem adoptado seria a neutralidade perante o conflito. Assumir iniciativa militar contra a Rússia resultaria numa guerra horrenda na Europa da qual poucos se ergueriam vivos. A neutralidade e a assessoria à mediação do conflito seria a melhor decisão para permitir o arrefecimento das tensões, aferir aquilo que a Rússia pretende retirar disto e dar uma oportunidade à Ucrânia para ajustar as suas orientações diplomáticas, longe de armadilhas norte-americanas que não resultaram em mais nada a não ser usar o povo ucraniano como carne para canhão. Se for preciso ceder os territórios russófonos na Ucrânia à Rússia, que se faça. Os mais formados poderiam, em resposta a isto, atirar-me com a anexação dos sudetas na Checoslováquia pela Alemanha Nazi. Eu garanto, em jeito de resposta, que os tempos, as circunstâncias e os intervenientes são muito diferentes daquilo que eram há mais de 80 anos. Por vezes precisamos negociar a paz. Por vezes precisamos de fazer cedências em nome da paz, e a Rússia é um interveniente com uma histórica dignidade actorial, com argumentos a favor do seu acto de guerra - se é que algum acto de guerra pode ser verdadeiramente justificado. 


A chave para a paz na Europa não reside numa NATO massiva, não reside numa Europa hostil ante a Rússia - sendo esta fornecedora de energia de primária importância para tantas nações europeias, entre as quais não se encontra Portugal -, nem reside numa constante vivência dos traumas subsistentes da Guerra Fria. A chave para a paz na Europa não reside numa contínua dependência militar nos EUA, nem reside na ausência de autonomia diplomática das nações europeias, aguardando pela receita diplomática demoníaca do Pentágono. A chave para a paz na Europa jaz no esforço que as nações europeias têm de fazer para fazer diplomacia com a Rússia. Sobretudo, a chave para a paz na Europa é encontrada quando as nações europeias abandonarem e NATO - sem renderem as armas nucleares em solo europeu - e formarem um bloco militar uno, independente e soberano. Claro que tal também significaria uma derrocada épica dos EUA, mas a Europa tem de acima de tudo assegurar a sua existência e a sua manutenção como o continente mais livre, pacífico, desenvolvido e avançado de todo o mundo. Qualquer nação europeia deve ser convidada a integrar este projecto magnânimo. Aqueles que são partidários da NATO poderão argumentar que sem a NATO a Rússia já teria avançado sobre outras nações europeias membros na NATO. Todavia, no lugar da NATO poderia estar um bloco militar exclusivamente europeu que, quanto a mim, faria um esforço diplomático muito mais digno e saudável que a actual arquitectura geopolítica de que a Europa está refém.


Vladimir Putin é um indivíduo com sede de guerra, regendo a sua nação com um punho de ferro e rejeitando qualquer manifestação na sociedade civil russa contrária aos seus desígnios imperialistas. Quanto a isso, não há argumento que valha. Todavia, creio que a classificação de Putin como um louco - como surge regularmente nos textos ‘noticiosos’ dos Media - será uma manobra deveras problemática. Putin está a fazer aquilo que tantos outros governos russos fizeram ao longo da História: assegurar as fronteiras e alargar influência russa nas nações eslavas. Nada diferente daquilo que era o projecto da alegadamente martirizada Dinastia Romanov. Quanto às sucessivas ofensas aos direitos humanos na Rússia, nem valerá a pena fazer dissertações. Todos as conhecem. Há quanto tempo me insurjo contra as violências islamo-fascistas da República da Tchetchénia - parte da Federação Russa - contra todo o tipo de grupos sociais considerados indignos pelos governantes tchetchenos? Não estou alheio a nada disso, tal como não estou alheio aos crimes humanitários cometidos por aliados dos EUA, como é exemplo a Arábia Saudita. Se na Tchetchénia - reduto fascista e islâmico na Rússia - enviam homens e mulheres homossexuais e bissexuais para campos de concentração, no Reino da Arábia Saudita há condenação a pena de morte. Se na Rússia não encontramos dignidade nem ética, porque haveria de haver dignidade ética nos EUA - num país onde a segregação racial institucional ainda é uma realidade e onde há um sangrento historial de invasões e ataques militares à revelia do Direito Internacional?


O que querem os EUA? Não faço a mais pálida ideia. É uma nação entregue ao desnorte, à ignorância, à desinformação e à estupidez. Quanto ao Pentágono e à actual administração presidencial, será quiçá mais fácil identificar o que estes pretendem. A Administração Biden pretende reunir unidade nacional em torno da sua governação acéfala - como pediu Barack Obama, às custas do povo ucraniano - e usar as nações europeias como aríete ante os portões de Moscovo. Não é somente um braço de ferro com a Rússia, é também uma instrumentalização da Europa para os interesses geopolíticos norte-americanos, como aliás a governação norte-americana fez durante toda a Guerra Fria… e a História prossegue.


Que não seja enviada uma única vida portuguesa para a frente ucraniana. Se alguém não concordar com isso, então eu voluntario essa pessoa para meter a arma ao ombro (se conseguir) e ir de caminho para Kiev. Comigo e com o Filipe não contem. Temos destinos melhores do que guerrear em contendas de gente velha. Qualquer vida portuguesa que se perder para lá das fronteiras ucranianas ou como consequência deste conflito, eu, desde já, condeno o Governo de Portugal pela perda. Nada, absolutamente nada, tinha-vos obrigado a isso. É lastimável que tenhamos abandonado a paz mediterrânica para alinhar na cascata de lágrimas ante um evento militar que há muito que estava a ser adiado e com o qual nada temos que ver. Isto é a República Portuguesa a capitular a sua própria independência.


O Estado Ucraniano está forte na sua defesa, e está de parabéns por isso. Demonstra a firmeza das Forças Armadas Ucranianas e demonstra a falta de preparação que as Forças Armadas Russas tinham para esta aventura. Há uns dias, Putin ameaçou a Finlândia e Suécia com retaliações caso estes estados quebrassem o seu princípio de neutralidade. Possivelmente, Putin não estudou a Guerra de Inverno para adoptar um discurso tão trauliteiro. Se para invadir a Ucrânia têm todo este trabalho, a violação do espaço territorial finlandês está fora do alcance russo, com ou sem Simo Hayha. 


Por último, resta apenas afirmar que as maiores vítimas da guerra são as crianças. Nada será mais horrendo do que a morte de uma criança em batalha. É um sintoma da ausência de futuro da Humanidade enquanto espécie. É por motivos humanitários, portanto, para salvaguardar o maior números de vítimas da guerra, que as nações europeias devem maximizar esforços para acolher o maior número possível de refugiados ucranianos que pretendem salvar as suas vidas e as vidas de crianças ucranianas, e em nada esta tomada de posição comprometeria qualquer princípio de neutralidade. A República Portuguesa deve fazer parte deste esforço e deve assegurar o regresso de quaisquer emigrantes portugueses na Ucrânia.


Sob pena de as chamas da guerra serem ateadas numa dimensão sem precedentes nas últimas décadas, resta à Europa não tomar atitudes precipitadas e funcionar como ponte na resolução deste conflito. Era bom que assim fosse.


Joves, 12 de Ventoso CCXXX