segunda-feira, 6 de abril de 2020

Entre o Medo e a Razão: Memórias sobre a Pandemia

Notícias desse louco Mundo:

Há poucos dias, no Mar das Caraíbas, a norte da Venezuela, teve lugar um incidente que, por enquanto, se manterá misterioso e estranho. Um cruzeiro identificado como RCGS Resolute, com a bandeira da República Portuguesa, alegadamente ao serviço de uma companhia privada denominada Columbia Cruise Services, entrou em colisão com uma embarcação militar ao serviço da Venezuela. O Presidente venezuelano Nicolás Maduro declarou que o Resolute investiu, propositadamente, contra a embarcação militar identificada como Naiguatá, tendo provocado o naufrágio da embarcação. Os oficiais na sede da Cruise Services, na Alemanha, alegam o contrário. Afirmam ter sido o Naiguatá que investiu contra o Resolute, e que o naufrágio da embarcação militar se deveu à placa de protecção anti-glacial que reveste o cruzeiro a estibordo. Uma terceira eminência, o Ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, descansa quem destes assuntos se importa - que nos dias que correm não são muitas pessoas - e assegura que o incidente não alterará as relações diplomáticas entre Portugal e a Venezuela e que tudo se encontra na mais serena tranquilidade... apesar da reacção tempestuosa de Maduro (tendo ou não tendo razão) e apesar do barco ser português. Felizmente ninguém se aleijou. Mas será que o orgulho nacional tem potencial para ficar ferido?

Há uma miríade de questões que se podiam colocar a propósito deste incidente, contudo, eu trago estas ao Pensatório: que fazia e qual era o objectivo daquela embarcação, de bandeira portuguesa, e ao serviço duma empresa privada, enquanto navegava em espaço marítimo venezuelano, a 181km de Caracas, sem aparente autorização estatal? Porquê a leviandade de Santos Silva, quando este afastou as hipóteses de problemas diplomáticos com a Venezuela? Porque é que este incidente foi vagamente mencionado nos noticiários e nos Media em geral? Saberemos mais nos próximos capítulos? O leitor deste texto nem imagina (na eventualidade de não estar a par) a dificuldade que é, na secção de notícias, no Google, encontrar notícias e artigos plenamente informativos sobre esta situação que teve lugar ainda no início da semana passada. Há quem diga que eu tenho a mania da teoria da conspiração. Mas será possível que, na conjuntura geopolítica da América do Sul, estejam neste momento a ter lugar decisões e operações cuja importância internacional é crucial, e das quais nada sabemos porque a comunicação social por um lado, e a opinião pública por outro, estão demasiado absorvidas e conquistadas pelo vírus que aí anda? Será que os EUA se preparam para dar novo golpe do baú, tentando neutralizar por completo a área latina aos seus interesses? Imagine o leitor se Portugal estivesse a participar em tais esquemas de índole maquiavélica - nada que não tenha já acontecido várias proeminentes vezes só este século. O Presidente da Venezuela tem reportado que as forças vizinhas, daquilo a que Maduro gosta de referir como "Oligarquia Colombiana", ameaçam cada vez mais a integridade do território. E ainda há, claro, o incidente de há uns tempos em que, alegadamente, segundo autoridades venezuelanas, um avião da TAP aterrou no território latino com explosivos para distribuir entre a oposição do governo venezuelano. Tudo isto pode parecer muita coisa, mas duvido que tudo se resuma a uma embirração de Maduro com a República Portuguesa. Muitos - como os 'novos padres' que colocaram a dizer os jornais da hora do jantar - poderão considerar que possíveis ingerências de Estado e possibilidades de guerra, no outro lado do Oceano Atlântico, são trivialidades quando comparadas com um vírus. Mas sabe o leitor o que não fica do outro lado do Atlântico? Lisboa.

Foi também há uns dias que, no Aeroporto Humberto Delgado em Lisboa, aconteceu um dos incidentes mais insólitos e absurdos dos últimos tempos em Portugal. Um conjunto de inspectores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras fez questão de recordar à Nação Portuguesa que as práticas de outrora, quando quem tinha poder neste país era uma Ditadura Católica - o Estado Novo -, ainda não foram abolidas na sua totalidade, e que ainda há indivíduos (muitos deles ligados às instituições de cumprimento das leis) que optam por uma conduta muito pouco diferente daquela que estava associada à PIDE. Estes inspectores do SEF, aquando da chegada de um viajante ucraniano ao aeroporto, vindo da Turquia, interceptar-lhe o caminho e chegaram à conclusão que o dito viajante não podia entrar no território nacional. Até aqui tudo bem, nada de surpreendente. Há imensas razões e circunstâncias que podem levar os inspectores do SEF a tal conclusão, por mais que não seja de vivermos, hoje, em condições excepcionais. O problema é com o que aconteceu depois. Depois do indivíduo ucraniano ter reagido mal às indicações dos inspectores - no limite até poderá ter oferecido resistência - este foi agredido, detido numa sala do aeroporto, e aí foi torturado e espancado até falecer. Este cidadão ucraniano foi abandonado, no chão da sala, com a cara virada para o chão (uma técnica que cortou o fôlego da vítima) e os pulsos algemados, já com lesões severas devido ao espancamento que lhe foi administrado, e aí foi deixado durante uma noite inteira até ser dia. Como vale pouco a vida humana. Como é gratuita a violência e como é fácil o homicídio. Acrescentando o insulto ao dano, estes assassinos praticaram este crime em nome do Estado português, e é com mais esta sensação de culpa que todos nós teremos de suportar. Todos nós somos o Estado e são as estruturas da sociedade que permitem a subsistência deste género de mentalidades e valores assassinos.


Os tais inspectores encontram-se, neste momento, em prisão domiciliário - quase como todos nós - porque a justiça, de momento, está meio suspensa. Nem a justiça se safou ao shutdown a que a República foi submetida, e quando a justiça funciona a meio gás - e antes já não funcionava muito bem - são os tiranos de rua que proliferam e dominam. Parabéns. Até os criminosos nas cadeias portuguesas tiveram um indulto presidencial para regressarem, a título temporário, às suas residências e aí permanecerem. A justificação de Marcelo prende-se com razões humanitárias e sanitárias. Como a vida é irónica. Enquanto a Classe Trabalhadora vê imposição de restrições à sua liberdade - com complacência de uma parte substancial dessa mesma classe - os reclusos assistem a um alívio das condições penitenciárias a que, supostamente, deveriam estar submetidos. 

Descendo para sul, no Algarve, outro acontecimento insólito e com contornos macabros sucedeu. Um jovem com a minha idade foi assassinado e desmembrado por duas raparigas com idades não muito diferentes. As várias partes do corpo foram espalhadas pelo território algarvio. A Polícia Judiciária, felizmente, conseguiu chegar à verdade de toda a situação. Segundo o que a PJ conseguiu apurar, as criminosas em questão praticaram este acto hediondo por razões financeiras. Também se conseguiu perceber que eram raparigas bem inseridas social e economicamente. Quanto ódio e desequilíbrio cognitivo é necessário para encabeçar crimes desta natureza?

Promoção Viral:

O leitor mais desatento poderá julgar que eu estou a copiar o estilo do pasquim que se dá pelo nome Correio da Manhã, com todos estes pormenores e este relato. Se essa é a ideia, permita-me que o esclareça. Embora eu esteja altamente preocupado com os níveis e contornos alarmantes de violência, e com os esquemas que envolvem embarcações registadas em Portugal, a minha preocupação prende-se também com a fraquíssima atenção mediática que todos estes incidentes têm recebido. Tudo o que interessa, neste momento, é o vírus. Tudo o que interessa é ficar em casa e, de preferência, não fazer grande uso das faculdades intelectuais. É esta a mensagem dos noticiários, agindo como se a salvação e a razão estivessem com eles, incondicionalmente. A deontologia do texto jornalístico morreu. Não se informa o quê, o onde, o quando, em função daquilo que é a importância das questões e com atenção ao equilíbrio da diversidade dos vários assuntos abordados. Em vez disso inundam-nos com conselhos arbitrários, falsas notícias onde é visada a juventude pelas quais pedem mais tarde perdão, falsas notícias de mortes em regiões que, na verdade, não aconteceram, e frases de autores que nem se quer mencionam. São autênticas homilias em que todos os que não são eles e os decisores políticos, são tratados com o mais básico dos paternalismos. Os novos porque, na óptica deles, são arruaceiros egoístas que não querem saber dos velhos. Os velhos porque não querem saber deles próprios quando vão apanhar ar à rua. Um destes novos padres, um jornalista que até há pouco tempo tinha em alta consideração, Rodrigo Guedes de Carvalho, sugeriu-nos de modo imperativo que ficássemos no cárcere domiciliário sempre que não precisássemos de ir à farmácia ou comprar alimentação. Para ele, o simples passeio higiénico ou a casual deslocação de 100 metros para visitar um amigo, são insultos àqueles que sofrem e àqueles que vivem apavorados com o coronavírus, barricados em suas casas. Diz ele, é um insulto a todos os profissionais de saúde. Já voltaremos ao assunto relacionado com a descoberta dos mainstream Media de que há problemas laborais sérios nos hospitais. Agora vamos regressar no tempo.


A ideia que tem sido transmitida pelos noticiários e pelo poder político é que vivemos tempos sem precedentes na História recente, e que esta pandemia pode ser discutida num patamar de importância similar a outras mortandades que sucederam ao longo da História. Infelizmente, a historiografia não tem saído à rua para esclarecer a população de que este surto não tem comparação possível às terríveis pandemias da História, e que no século XX houve eventos de grande mortandade - pandemias e conflitos militares - que eclipsam os tempos chatos em que vivemos.

Uma história de maleitas:

Só na História Moderna (XVI-XVIII) a variedade de surtos, desde febres, cólera e gripes contagiosas, deixou um rasto que a historiografia ainda hoje tenta trilhar. Entre 1707 e 1709, a varíola erradicou 36% da população islandesa. Entre 1616 e 1620, uma grande epidemia liquidou entre 30% a 90% da população da zona sul de New England, na América do Norte. Durante todo o século XVI, a região onde hoje é o México foi assolada por epidemias que arrasaram a população nativa da zona, pavimentando as páginas da História com milhões de mortos.

Na Antiguidade também temos registos, dados e evidências, embora estes sejam muito mais reduzidos e esquivos. A Praga Antonina, por exemplo, um surto de varíola possivelmente, liquidou entre 5 a 10 milhões de habitantes do Império Romano, na segunda metade do século II. A Praga Justiniana foi bem mais implacável, e teve lugar 400 anos depois. 25 a 100 milhões de habitantes do Império Romano foram dizimados. Na altura correspondia a bem mais de um terço da população do continente europeu. Dois século depois, no Japão, a varíola provocou a morte de cerca de 2 milhões de pessoas - o que correspondeu a um terço da população.

Claro que nenhum evento pandémico é tão conhecido como a Peste Negra, um surto de praga bubónica na Europa medieval do século XIV. A praga bubónica não foi a maleita que mais casualidades provocou na História - esse lugar vai para a varíola -, todavia, o infame surto que explodiu na Europa medieval, e que ficou conhecido no léxico português como Peste Negra, deixou a marca mais indelével na História da Humanidade, devido às transformações sociais/demográficas que provocou, e devido às mudanças culturais e políticas que acelerou. A praga bubónica, provocada pela bactéria yersinia pestis, e cujos sintomas se traduziam em devastadoras pneumonias e no surgimento de bubos (inflamações em género de bolha, cheias de sangue) nas axilas, virilhas e pescoço, terminando com vómito de sangue - devido à punição a que os pulmões tinham sido submetidos pela bactéria - ou com a erupção em sangue desses bubos, dizimou cerca de 200 milhões de habitantes, entre 1331 (quando a Peste começou por reclamar as primeiras vidas, na Ásia ocidental) e 1353 (o ano em que a mortalidade da praga, em solo europeu, entrou numa linha decrescente). A bactéria fez o seu percurso até à Europa, em moscas e ratos, viajando da Mongólia até à Crimeia, e daí navegou o Mar Mediterrâneo até aos dinâmicos portos da Península Itálica. Foram os reinos e repúblicas, que compunham o mosaico da península que hoje é a Itália, os primeiros estados europeus a sofrerem com a Peste Negra. Os estados itálicos eram, na época, potentados comerciais e a principal ponte de comunicação entre a Europa ocidental e o mundo árabe do norte de África e da Ásia ocidental. Foi de cidades como Veneza, Florença e Génova, e pelo norte itálico Europa dentro, que o yersinia pestis se disseminou. Desde o primeiro contacto de contaminação até à morte do infectado, o espaço de tempo variava entre 2 dias e uma semana. A generalidade das nações europeias demoraram dois séculos a recuperar os níveis demográficos pré-Peste Negra, e Portugal não foi excepção. Cidades como Florença só recuperaram esses níveis demográficos 500 anos depois. A Europa converteu-se num cemitério onde metade da sua população foi sepultada, algures entre 1348 e 1352. As causas para tal mortandade, sobretudo, foi a ausência de higiene ou qualquer saúde pública, muita superstição, a fraca alimentação da maioria da população e a inexistência de antibióticos. 


Houve mais surtos bubónicos ao longo da História. A última grande pandemia de praga bubónica foi no século XIX, na qual morreram 12 milhões de pessoas na Índia e na China. 

O século XX não foi estranho a pandemias e a mortandade. Entre 1918 e 1920, logo após a mortandade da 1ª Guerra Mundial, a gripe pneumónica, vulgar e erradamente conhecida na época como Gripe Espanhola, trazida pelo vírus H1N1, liquidou 17 milhões de pessoas em todo o mundo. Mais tarde, na década de 60, surgiu um novo vírus. O HIV - cuja infecção provoca a destruição do sistema imunitário, sendo transmitido através de relações sexuais ou transfusão de sangue -, que gozou dos seus tempos de maior fama nos anos 80, reclamou a vida, até agora, a mais de 30 milhões de pessoas. Quanto a mim, se há vírus misterioso é este. O seu surgimento é abrupto e silencioso, pois não conseguimos recuar na História e encontrar evidências de que ele já existisse. As teses que explicam o seu surgimento são múltiplas. Eu não acredito nas mais consensuais. Morreram pessoas de todas as orientações sexuais, mas foi a homossexualidade aquela que foi visada sob todas as formas e feitios. Foram os homossexuais e bissexuais os visados nas homilias tresloucadas que muitos padres administraram por esse mundo fora. A homofobia voltou a ganhar imenso terreno na sociedade internacional, recuperando aquele que tinha perdido durante os anos 60. Pessoas como essa inquisidora adorada, Teresa de Calcutá, difundiram a mensagem de que o HIV foi castigo divino bem merecido. Nada disto foram emissões de apoio ou solidariedade para com pessoas que estavam a morrer, muito pelo contrário, e não aconteceu na Idade Média.

Há 10 anos, o H1N1 voltou a provocar uma pandemia, com centenas de milhares de mortos em todo o mundo, mas nada que se pudesse comparar ao passado histórico. Lembro-me, na altura, quando o vírus surgiu novamente, com um nome comercial, Gripe A, de prometerem milhões de mortos em todo o mundo. Lembro-me do medo que os mesmos poderes de hoje espalharam na consciência colectiva. E lembro-me de que, após tanto cataclismo anunciado, tudo voltou à normalidade. E lembro-me também de que nenhum Estado de Excepção foi decretado. À data em que este texto é publicado, 'apenas' mais de 72 mil pessoas foram vitimadas, desde que o surto de Covid-19 foi primeiramente notado em Dezembro de 2019, na China, e ao que parece todas as nações do mundo atingirão, em poucos meses, a tal rota decrescente da tal bem-dita curva de infectados. Mas com todo este historial relatado, o que faz o coronavirus ser diferente de outras maleitas como o HIV ou o H1N1, ao ponto de ter honras de Estado de Emergência?

Uma guerra invisível:

Neste momento, guerra é a palavra de ordem. Os Media e o poder político usam-na com a maior desfaçatez, tentando convencer os cidadãos que os tempos que hoje vivemos são comparáveis aos tempos da 2ª Guerra Mundial. Será um vírus infeccioso, com uma muito reduzida taxa de mortalidade, comparável à blitzkrieg do III Reich? Tem sido dito que o coronavirus tem deixado um rasto de morte industrial. Será isto comparável à verdadeira indústria de morte que foi o Holocausto? Será isto comparável à destruição de cidades e derrube de economias inteiras que alastrou todo o mundo, antes e durante a 2ª Guerra Mundial? Será isto comparável aos 100 milhões de mortos, em resultado de guerra, entre 1914 e 1945? Não é. É um insulto afirmar que há comparação possível. Quem o faz não quer sensibilizar as pessoas para os riscos da actual pandemia. Fá-lo no intuito de disseminar viralmente o medo. Num registo puramente semântico, quanto a mim, o uso do vocábulo "guerra" também não é uma opção saudável. As guerras são fenómenos inventados pelo ser humano, e o vírus não combate nenhuma guerra connosco. As crises de saúde pública não se combatem com opções autoritárias e com "um, dois, esquerdo, direito". Crises de saúde pública são evitadas, sim, com financiamento e melhoramento do sistema nacional de saúde. Como é sabido, na esmagadora maioria das nações do mundo, essa aposta orçamental nunca foi uma prioridade. Em muitos casos nem se quer existe um sistema nacional de saúde. E quando a saúde é disponibilizada só para alguns, e quando o Estado não assume o seu papel colossal e exclusivo na saúde, pagando justamente aos profissionais de saúde (e não é só desde ontem que são ingratamente remunerados, como a atenção de muitos parece ter notado), não devem haver surpresas quando as coisas tremem numa eventualidade como esta que vivemos.

O que soçobra:

A União Europeia cava a sua sepultura a passos rápidos. As economias dos países europeus funcionam a meio gás. As vidas de muitos cidadãos estão intermitentes. Ignorar a factualidade de qualquer evento pandémico é um acto criminoso que qualquer estado pode cometer. Exagerar as medidas tomadas ante qualquer crise - particularmente as medidas que colocam em risco os cidadãos - é um acto irresponsável. O Estado de Emergência nunca devia ter sido levado a cabo em Portugal porque, em primeiro lugar, a actual pandemia não justifica a estagnação da actividade socioeconómica da nação. A economia parou, e com isso, no futuro não muito distante, serão os cidadãos que terão de pagar essa estagnação. E por enquanto ainda estamos em estado de estagnação. Uma eventual recessão, em Portugal e no mundo, será inevitável. Pior que estar parado é andar para trás. Um artigo publicado no site da International Marxist Tendency, por Hamid Alizadeh, com o título Coronavirus pandemic opens a new stage in world history, é bastante eloquente na explicação da crise económica que está por chegar. A República Portuguesa e muitos outros estados europeus não estão preparados para enfrentar a depressão que se aproxima. Haverá novos cortes salariais, haverá um aumento do desemprego, e por consequência um aumento da pobreza, e a austeridade irá regressar. Claro que esta crise só afectará a Classe Trabalhadora. Aqueles que detêm os meios de produção económica manter-se-ão seguros nos lugares que ocupam, como acontece em qualquer crise económica. A única hipótese que Portugal tinha, para atenuar os efeitos desta crise, seria não ter fechado o país e, em vez disso, ter restringido selectos territórios nacionais à quarentena. Mas o mal já está feito. Os despedimentos já começaram, e isso é apenas o começo. Muitos pequenos negócios não terão capacidade para continuar a sua actividade no aftermath deste Estado de Excepção. Por outro lado, com este Estado de Emergência, a Justiça - uma base fundamental dum Estado de Direito - foi parcialmente suspensa, sendo que neste momento só os casos considerados graves é que continuam a receber atenção dos tribunais, e o Governo recebeu poderes excepcionais que, sinceramente, assustam-me. Por outro lado, enquanto haverá muitos cidadãos que enfrentarão dificuldades sérias, o Governo e o Presidente da República já discutem, com as grandes empresas e os bancos privados, planos de contingência para que estes tenham direito de exclusividade ao barco salva-vidas. E o mais curioso disto tudo é que, no imediato, todos estes detentores do poder económico passaram de neoliberais económicos a intervencionistas. É caso para dizer que, apesar de não haver peregrinação a Fátima em Maio, os milagres não deixam de acontecer. Outro aspecto quase distópico do Estado de Emergência foi a proibição do direito à greve, e em Portugal as políticas, nesse sentido, foram ainda mais duras que na Itália ou em Espanha. O direito laboral não pode ser encarado como uma mera trivialidade, quando assim é, abrimos precedentes gravíssimos na construção democrática dum estado. Tais políticas só devem ser implementadas quando a própria integridade democrática ou nacional está por um fio. Estes problemas graves que elenquei, sobre o actual Estado de Excepção, já foram expostos por individualidades como o jornalista Daniel Oliveira ou a historiadora Raquel Varela. Loucos como eu, certamente... A prioridade, julgo eu, será cessar com a escavação do túmulo e pôr um fim a este atrofio socioeconómico. Quanto mais nos aventurarmos nele, mais nos arrependeremos mais tarde. 

Quanto à Europa, o próximo passo de desintegração da União Europeia já foi dado, e esse teve lugar no dia em que muitos dos seus decisores políticos decidiram que a Itália e a Espanha não têm direito a apoio financeiro para enfrentarem os problemas económicos que já se fazem sentir. A dívida pública italiana, que já é alta, vai escalar a valores medonhos, e será na Itália que, possivelmente, o próximo passo de desintegração da UE será dado. E quantos mais saírem, mais célere será a concretização do efeito dominó. Triste mas necessário fim, custa-me dizer. Num panorama mais geral, o continente europeu subscreveu a ficha da sua capitulação quando aceitou suspender a sua actividade económica. Ficaremos à mercê da águia de rapina, no outro lado do Atlântico, e do dragão no oriente da Ásia. Tudo o que eu espero é que haja presença de espírito por parte dos europeus para atenuarem a queda que todos iremos sofrer. A partir de agora o próprio conceito de Estado Social está em causa. Se o eleitorado não agir com determinação para evitar tal desfecho, estaremos entregues aos lobos.

Alternativa Socialista:

O artigo que há pouco mencionei, da International Marxist Tendency, apesar do relato perturbador mas realista que faz, também aponta para políticas concretas que devem ser tomadas no imediato - e que eu sei que não serão tomadas - para refrear o choque financeiro que se vai abater sobre a Classe Trabalhadora. Passo à citação de algumas, tomando a liberdade para eu próprio traduzir do inglês:
  • Em todo os  países, temos de exigir a nacionalização de todas as instituições de saúde privada. Toda a Saúde e a indústria farmacêutica deve ser imediatamente nacionalizada sob controlo dos seus trabalhadores para que seja planeado um imediato e efectivo alívio às necessidades daqueles que precisam.
  • Salários completos por motivos de doença devem ser garantidos a todos (...) ou devem ser garantidos subsídios equivalentes a um salário para os trabalhadores que perderam o seu emprego. Pais e cuidadores devem continuar a receber um salário para continuarem a zelar pelas crianças (...) afectadas pelo encerramento de escolas e infantários.
  • Rígido controlo de preços deve ser imposto em todos os bens essenciais. Nacionalização de todas as fábricas que produzem produtos de higiene e equipamento médico escassos.
  • Residências vazias usadas como veículos de especulação pelos imensamente ricos devem ser levadas ao controlo público para que seja fornecido alojamento aos sem-abrigo.
  • Os recursos necessários para combater a pandemia [em toda a sua dimensão socioeconómica e financeira] não serão encontrados aumentando o défice orçamental ou a dívida pública, que, em contrapartida, seria paga pelos trabalhadores, posteriormente, mediante austeridade. Um imposto sobre as grandes corporações deve ser introduzido. Devemos também elevar o apelo para a nacionalização dos bancos com via a direccionar os recursos onde estes são necessários, fornecendo financiamento às famílias, aos pequenos negócios e sectores afectados pelo shutdown.
Estas linhas de acção são uniformes para qualquer nação. Só falta a coragem para as assumir. Claro que, para muitos, isto não é mais do que uma terrível receita congeminada por Lúcifer... haveria elogio mais biblicamente poético que esse?


Com franqueza:

Em última análise, o meu desagrado para com a imposição dum Estado de Excepção advém da própria natureza da pandemia. Como já afirmei num outro parágrafo, o HIV, ou até mesmo o H1N1, deixaram um rasto de casualidades muito mais preocupante e assustador. Falando do HIV, que reclamou vidas sem fronteiras há 20 e 30 anos, a pandemia nunca foi assumida universalmente como um caso grave de saúde pública a ser resolvido. E quando era olhado com seriedade, era também olhado com desconfiança e preconceito, à semelhança do que hoje ainda acontece. Não posso compactuar que o mundo tenha assistido impávido e sereno, com nada mais que esgares de desprezo, para a suposta imoralidade  e morte de milhões de pessoas, e hoje acorde afirmando que esta é que é a grande crise dos nossos tempos. Revolto-me que nos comportemos como burgueses amedrontados com uma pandemia tímida, quando o continente africano é avassalado por epidemias mortíferas que ceifam a vida de crianças. Espanto-me com a facilidade com que se tem visado a juventude como irresponsável e egoísta, vindo tais críticas das gerações que engoliram a patranha de que o HIV era a doença dos gays. Envergonho-me que o heroísmo do século XXI seja ficar passivamente em casa, e que indivíduos - os tais 'novos-padres' dos noticiários - que, agindo como se fossem herdeiros de Prometeu, a transbordar de virtude, ordenem às pessoas que não saiam de casa, ignorando que há muita gente que não tem uma casa abastada ou espaçosa onde possa permanecer semanas a fio.

E estou francamente cansado...


A não ser que haja um cataclismo global notável, só dedicarei mais um texto ao coronavírus. Será sobre a relação entre o Covid-19 e a Fé dos crentes religiosos. Se o leitor, desde o princípio, chegou aqui, fico-lhe francamente agradecido.