segunda-feira, 5 de junho de 2023

Um regulamento a favor do fogo

Aproxima-se o Verão, e com o Verão virá uma das endémicas pragas que assolam Portugal: o fenómeno incendiário [para mais referências minhas sobre esta questão, ver o texto Verão em chamas, publicado neste blog no ano anterior]. É na sequência deste facto que eu partilho o seguinte texto, com o mesmo título desta minha publicação. Um regulamento a favor do fogo foi um texto publicado anonimamente por José Saramago, na edição do Diário de Lisboa de 12 de Junho de 1972, no qual está patente uma preocupação grave que já na época havia com os incêndios portugueses. A razão principal de eu partilhar este texto é para chamar a atenção para um facto no qual eu insisto sempre que, por qualquer motivo, se discute a questão dos incêndios: não é só de hoje ou de há 10 anos que a governação e a sociedade gerem de forma errónea este conflito entre o fogo e os humanos, em Portugal, e não é só de hoje ou de há 10 anos que os incêndios de Verão, em Portugal, levam o território a eito, destruindo, queimando, matando. Já nos [para alguns] saudosos tempos da Ditadura os incêndios eram uma calamidade tão devastadora como é hoje, havendo, contudo, algumas diferenças de um tempo para outro. Naquela época, por exemplo, o regime não estava interessado em fazer registos, levantar dados e elaborar estatísticas, e tampouco estava para se maçar com canalização de fundos para apoiar logística e tecnologicamente as corporações de bombeiros. Não havendo recolha de dados e elaboração de estatísticas, o desenvolvimento de estudos era impossível, tornando, portanto, impossível uma melhor compreensão sobre a natureza deste fenómeno e como o combater, e não havendo apoios - à semelhança de hoje, provavelmente - os bombeiros estavam mais ou menos entregues à sua sorte. Também não havia o menor esforço para coordenar a actividade dos bombeiros com as demais instâncias da sociedade portuguesa cuja tarefa também passaria pela prevenção e combate dos incêndios. É com o objectivo de relembrar o fenómeno que se aproxima com o passar dos dias, e é com o objectivo de recordar que este triste fenómeno já é muito antigo no tempo histórico [não sendo, portanto, uma solitária culpa do actual (des)Governo], que eu partilho este texto de uma lucidez brilhante, como é costume em Saramago.


Quanto à natureza do texto em si, eu retirei-o directamente do livro Os apontamentos [Saramago, José (2014). Os apontamentos (5ª Ed.). Lisboa: Porto Editora, p. 54-55.] - uma compilação de artigos, sendo que a primeira parte diz respeito aos artigos que foram publicados anonimamente no Diário de Lisboa entre 1972 e 1973, e que só depois se soube que o autor desses textos fora José Saramago, e a segunda parte concerne os artigos que José Saramago assinou no Diário de Notícias durante o PREC, em 1975, na qualidade de sub-director do jornal. Em nome da defesa da identidade da Língua Portuguesa, tomei a liberdade de aqui citar o texto consoante a ortografia do Português de lei, isto é, a anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 e que desde há alguns anos é o que vigora oficialmente. O abuso de alteração da ortografia do texto editado pela Porto Editora, está, todavia, em consonância com a ortografia que José Saramago usava em 1972, à semelhança de todo o povo português alfabetizado, e que o escritor sempre haveria de usar até à sua morte no ano 2010, de acordo com o Calendário Gregoriano. Segue então o magistral texto que retrata uma realidade tão ridícula e tão aflitiva:


"Com a chegada do Verão, destes grandes calores que tornaram as matas e os pinhais inflamáveis como estopa, é certo e sabido que começam por esse país fora os incêndios. Devoram as encostas das serras, deixam-nas negras, despidas, terras de desolação onde, por muitos anos, se erguerão apenas os troncos queimados. Neste tempo se levantam inúmeras vozes a pedir protecção para o nosso património florestal, já de si tão escasso. A vulnerabilidade das nossas matas, se bem pensamos nela, é, a toda a hora, um convite à ruína total. Depois o tempo refresca, vem a chuva, adia-se a catástrofe para o ano.


Na falta de um sistema de defesa eficiente, conta-se sempre com a dedicação e a ousadia das populações que, mal se ouve o sinal de fogo, correm montes e vales, gritando, ofegando, para irem atacar o incêndio, sem curarem de saber a quem pertencem as árvores que as chamas vão furiosamente destruindo. Acudir ao fogo é obrigação cívica a que ninguém foge, e não têm sido poucos os actos de grande coragem praticados nessas ocasiões, com total desinteresse, pois ninguém pensa em apresentar depois a factura dos serviços prestados. Também não há veneras nem condecorações: estes episódios passam-se em serranias anónimas, longe das vistas da grande publicidade.


Já os incêndios começaram a sua tarefa e, lá para diante, não se passará um dia sem que o inferno lavre num ponto qualquer do País. E tudo será como de costume, e repetir-se-ão casos como este de que hoje falamos, acontecido numa povoação chamada Bogas de Baixo, próxima do Fundão. Ali, os sinos da igreja chamaram os habitantes ao combate. E foram todos, os novos e os velhos, as mulheres e as crianças. Fazia vento, e, como sempre acontece nessas circunstâncias, o fogo saltava de árvore em árvore, propagando-se pelas ramadas superiores, inutilizando os trabalhos no chão. Diante da ameaça cada vez maior, telefonou-se para as povoações em redor e mais pessoas acorreram ao fogo, animando-se umas às outras, usando uma experiência já antiga, vinda de gerações. Por fim conseguiu-se travar o alastramento do incêndio. O desastre não foi total.


E os bombeiros? Após algumas dificuldades de comunicação, e graças à intervenção de terceiras pessoas, foi possível chamar os da vila próxima. Também se recorreu aos serviços dos bombeiros de outra vila, a de Oleiros, mas o comandante destes disse que «não podia mandar deslocar os seus homens para concelho diferente, sem que o comandante dos bombeiros do concelho onde havia o sinistro os requisitasse». Segundo a fonte onde colhemos estas informações, o comandante de Oleiros mostrou-se «muito compreensivo», chegando a oferecer-se para um entendimento com o Fundão. Ficaram os combatentes voluntários e paisanos à espera do que viesse, mas nada se conseguiu. Enquanto os pinheiros de Bogas de Cima ardiam, enquanto as gentes da terra se afadigavam a lutar por bens que só a poucos pertenciam, um artigo de regulamento impedia o auxílio que deveria poder ser dado por uma corporação de bombeiros, mas que não foi porque o concelho era outro…


Estranhos casos se passam em Portugal! Muito mais estranhos ainda quando nos lembramos de que, durante a recente visita do presidente do Conselho a Castelo Branco, um dos mais brilhantes números dos festejos foi um longuíssimo desfile de bombeiros, com dezenas de viaturas. Vindos de muitos quilómetros e concelhos em redor… E não havia fogo."



Lues, 16 de Prairial CCXXXI