sábado, 17 de setembro de 2022

A Morte da Rainha Elizabeth II e reflexões relacionadas

Há 9 dias, Elizabeth II da Casa de Windsor, Soberana sobre o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte (englobando quatro países constituintes, sendo estes Inglaterra, Gales, Escócia e Irlanda do Norte), assim como de todos os territórios e possessões ultramarinas da Coroa Britânica, e para além disso sendo também a Soberana de mais de uma dezena de estados independentes, membros da Commonwealth of Nations (da qual o/a monarca é o/a líder institucional), que partilham a mesma coroa com o Reino Unido (entre estes estão o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia, a Jamaica, et cetera), dizia eu então que esta Rainha da Inglaterra - como já é do conhecimento comum de toda a gente - faleceu aos 96 anos de idade, no mesmo ano em que celebrou o seu 70º ano de reinado como monarca constitucional. 

Em 1926 nasceu em Londres Elizabeth de York, princesa da Família Real britânica e filha do então Duque de York, Albert, filho mais novo do então Soberano do Reino Unido, George V (1910-1936). Tinha sido há 9 anos, no decorrer da 1ª Guerra Mundial e por razão do intenso sentimento anti-germânico na Grã-Bretanha, uma vez que o Império Alemão era o maior inimigo da Triple Entente (da qual o Reino Unido fazia parte), que a Casa Real britânica tinha alterado o seu nome de Saxe-Coburg e Gotha (uma casa nobiliárquica de origem alemã) para o muito inglês nome de Windsor, em referência, por exemplo, ao Castelo de Windsor situado no Condado de Berkshire. O próprio nome Saxe-Coburg e Gotha só aguentou 17 anos como designação da dinastia reinante: em 1901 Edward VII (1901-1910) sucedeu à sua mãe, a famosa Rainha Victoria (1837-1901), e não herdando o nome da casa nobiliárquica da mãe, herdou antes o do pai, o germânico príncipe consorte da Rainha-Imperatriz cujo nome era Albert de Saxe-Coburg e Gotha e, a título de curiosidade, tio de sangue do Rei de Portugal Pedro V (1853-1861). Antes do Rei Edward VII ter assumido o nome do pai, a Casa Real tinha o nome Hannover, também esta uma casa nobiliárquica de origem germânica cuja real dinastia na Grã-Bretanha remonta ao reinado de George I (1714-1727), o Príncipe-Eleitor de Hannover no Sacro Império Romano-Germânico que, falando pouco ou nada de inglês, por via de caminhos apertados, havia sucedido à Rainha Anne (1702-1714), a última monarca da Casa Stuart, tendo sido durante este reinado que, com os Actos de União (1707), por emissão legislativa dos parlamentos da Escócia e da Inglaterra, estas nações se haviam unido sob um único reino - o Reino da Grã-Bretanha (envolvendo também o Principado de Gales por já pertencer à Inglaterra) - e que desde James I (1603-1625), o primeiro monarca Stuart da Inglaterra, se encontravam unidas sob a mesma coroa, embora sendo, teoricamente, dois estados soberanos distintos.


Foi o tio-tetravô de Elizabeth II, o Rei William IV (1830-1837), o último monarca britânico a envolver-se activa e descaradamente em assuntos de governação e a nomear um Primeiro-Ministro contrário à vontade da maioria parlamentar, numa época em que o Reino Unido já era uma monarquia parlamentar e constitucional (embora, em rigor, se deva para esta época usar mais o termo semi-constitucional, à semelhança do que ainda hoje são o Principado do Mónaco e o Principado do Liechtenstein). Foi também durante o reinado de William IV que o Acto de Reforma (1832) da lei eleitoral britânica, introduzido por John Russell, foi aprovado pelo Parlamento, dando início, nas palavras de Bertrand Russell, neto do promotor da legislação, ao “caminho rumo à Democracia". Por outro lado, foi em 1911 que foi levado a cabo o mais recente esvaziamento do poder aristocrático na política britânica quando foi aprovado, no início do reinado do avô de Elizabeth II, o Rei-Imperador George V, o Acto Parlamentar que outorgou na elegida Câmara dos Comuns a supremacia legislativa sobre a não elegida Câmara dos Lordes, minguando ainda mais, numa perspectiva mais indirecta, o poder do monarca sobre a vida política.


Em Janeiro de 1936, quando o Fascismo tinha atingido a sua idade de ouro a nível global e Elizabeth de York contava 9 anos de idade, George V faleceu, sendo sucedido por Edward VIII, o seu filho primogénito e o homem que iria abalar durante este ano com os alicerces da Monarquia Britânica. Se de um lado Edward VIII intervia verbalmente na vida política e procurava manipular, o melhor que podia, a cena parlamentar - trazendo à luz do dia antigos esqueletos da História da Inglaterra que tinham ficado trancados no armário -, por outro lado Edward VIII pretendia ir contra os próprios dogmas da Igreja Cristã Anglicana (da qual, todavia, ele era o líder máximo enquanto Rei) procurando casar com uma notória socialite norte-americana que já se tinha divorciado uma vez e procurava divorciar-se uma segunda. Seria um ultraje para o Clero britânico e para o Parlamento que o Rei tivesse como Rainha consorte uma mulher divorciada. Uma impossibilidade teológica, inclusive, para a Igreja Anglicana. No braço de ferro entre a tradição monárquica e religiosa e a vontade de um monarca constitucional, Edward VIII cedeu às pressões clericais e religiosas - apesar do seu carisma inegável e da sua popularidade - e optou por abdicar a favor do seu irmão mais novo Albert, Duque de York, a Dezembro do mesmo ano em que tinha assumido o trono. Foi quando o seu pai se tornou o improvável Rei-Imperador George VI que Elizabeth, de forma igualmente improvável, se tornou herdeira da Coroa. Edward VIII e Wallis Simpson receberam o Ducado de York após finalmente celebrarem o matrimónio e, desde então, tornaram-se personae non gratae para a realeza britânica. Ainda hoje se debate, também, se as proximidades de Edward VIII a Hitler e ao movimento fascista internacional pesaram na sua pressionada abdicação. Sabe-se que já durante a 2ª Guerra Mundial, Edward visitou Hitler numa das suas bases nos Alpes e passou em revista um regimento nazi que lá estava estacionado. Sabe-se também que o projecto nazi para a Grã-Bretanha, após a sua conquista, seria fazer do Reino Unido um estado satélite, depondo George VI e toda a sua família e entronizando Edward VIII que na altura era apenas Duque de York, como eu já havia feito alusão. Sabe-se também que a Família Real britânica, indubitavelmente, tomou conhecimento disto há várias décadas. Enfim, a Inglaterra nunca chegou a cair, a Monarquia Britânica conseguiu salvar-se de toda a turbulência, o Duque de York viveu o resto da vida de uma robusta pensão e George VI acabaria por falecer em 1952, com 56 anos, sofrendo de várias maleitas incluindo cancro do pulmão. Os anos da guerra tinham pesado na saúde do monarca, derivado de imenso stress devido ao futuro da nação e à própria segurança física da sua família, e o seu intenso tabagismo tinha sido decisivo a trazer uma morte prematura ao pai de Elizabeth II.


Elizabeth II tomou conhecimento da morte do pai, e de que ela era a nova monarca soberana, enquanto estava no Quénia com o seu marido, o Príncipe Philip, tendo a Austrália como destino. Obviamente, quaisquer perspectivas de continuação do périplo foram descartadas e a Rainha Elizabeth II retornou à Inglaterra, com 25 anos de idade, e a sua coroação viria a ter lugar mais de um anos depois, na Abadia de Westminster, a mesma onde o Rei Conquistador William I (1066-1087) foi coroado e eventualmente sepultado. O que se seguiu foi o mais longo reinado de um monarca britânico, o mais longo 'mandato' de uma estadista e o segundo mais longo reinado de um monarca totalmente soberano da História Universal. Só Louis XIV de França (1643-1715) supera o reinado de Elizabeth II em longevidade - e sublinho que para estes recordes não estou a contar com monarcas vassalos, como exemplo, príncipes autónomos do Sacro Império Romano-Germânico ou monarcas africanos sob domínio colonial.


O que constará deste texto não será um relato sucinto do reinado de Elizabeth II nem uma análise clínica dos prós e dos contras das contribuições da falecida monarca enquanto estadista. Quanto a mim, o que mais importa agora discutir é: 1) o legado deixado por Elizabeth II; 2) qual o futuro do Reino Unido agora que o primogénito da Rainha foi proclamado Rei Charles III. Primeiro o ponto um.


O reinado de Elizabeth II é um reinado pós-Segunda Guerra. A monarca viveu os enormes desafios do mais calamitoso conflito da História - tendo servido, inclusive, o Exército Britânico como enfermeira de guerra e mecânica/condutora de carros militares - mas ainda não detinha a Coroa. O seu reinado atravessou: toda a Guerra Fria; a Queda do Muro; a fragmentação da Jugoslávia; duas invasões do Iraque (das quais o seu estado fez parte); o conflito Israel-Palestina; e o alvor da Guerra Russo-Ucraniana. O seu reinado atravessou também: todo o espaço de tempo que englobou o nascimento da televisão, primeiro a preto e branco e depois a cores; o nascimento do Rock e a Contracultura; o início da era espacial e a chegada do primeiro ser humano à Lua; a proliferação dos álbuns de música popular; a emergência dos computadores, dos telemóveis e a criação da World Wide Web. O seu reinado viu: o desmantelamento progressivo do Império Britânico e a Commonwealth, de certa forma, a ocupar esse lugar (Elizabeth II, contudo, nunca chegou a ter o título de Rainha-Imperatriz, tendo sido o seu antecessor George VI o último a detê-lo, até a Índia ter alcançado a soberania em 1947); a emergência da Comunidade Europeia e a sua transformação numa entidade política sem precedentes na História Universal, a União Europeia (embora o seu Reino tenha sempre estado com um pé dentro e outro fora, até que saiu definitivamente); os primórdios da Organização das Nações Unidas (da qual o seu Reino é membro permanente do Conselho de Segurança) e a sua consolidação como fórum mundial da diplomacia, da união dos povos e da procrastinação internacional; a afirmação do armamento nuclear como ameaça global (e o seu Reino é um estado nuclear); a ascensão da República Popular da China como candidata a superpotência. Pelo seu reinado passaram 7 papas da Igreja Católica - de Pio XII (1939-1958) a Francisco I (2013-) -, 14 presidentes dos EUA - de Harry Truman (1945-1953) a Joe Biden (2021-) - 10 presidentes da República Francesa - de Vincent Auriol (1947-1954), ainda na época da antiga constituição, a Emmanuel Macron (2017-) -, 3 reis da Noruega - de Haakon VII (1905-1957) a Harald V (1991-) -, 3 imperadores do Japão - de Hirohito (1926-1989) a Naruhito (2019-) -, 12 primeiros-ministros do Canadá - de Louis St. Laurent (1948-1957) a Justin Trudeau (2015-) -, 19 chefes do Governo de Portugal - de Oliveira Salazar (1932-1968), ainda na época ditatorial, a António Costa (2015-). A primeira vez que a Rainha Elizabeth II reuniu com um primeiro-ministro do Reino Unido foi com Winston Churchill, na sua segunda vez enquanto líder do executivo (1951-1955), e a última vez foi numa irregular reunião no Castelo de Balmoral, na Escócia, onde havia de falecer dois dias depois, indigitando Liz Truss para formar um governo em seu nome depois de Boris Johnson ter apresentado a demissão a Elizabeth II. E ao longo destes 70 anos foram 15 primeiros/as-ministros/as diferentes, ora do Partido Conservador, ora do Partido Trabalhista.


Durante boa parte do seu reinado, Elizabeth II foi a estadista mais consensual e respeitada em todo mundo, em parte devido às exímias capacidades dos britânicos de promoverem a sua imagem e de venderem a sua diplomacia, mas também devido ao elevado grau de sobriedade e dignidade institucional que a própria Elizabeth II sempre conseguiu emanar, para não falar da natural influência política e diplomática do Reino Unido e do facto de ainda no início do século passado este estado ter sido a superpotência mundial. Evidentemente, sendo que a Rainha nunca exerceu nenhum tipo de poder político real - excluindo as suas prerrogativas cerimoniais e as suas funções enquanto matriarca da Casa Windsor -, a sua influência provinha do prestígio que ela foi criando e da conservação de um certo mistério e de uma certa mística envolvendo a realeza britânica. Será oportuno sublinhar também, no âmbito económico, que todos os anos a realeza produziu centenas de milhões de dólares em turismo - um facto que confirma a popularidade da Monarquia Britânica, em casa e por todo o mundo, e um elemento de utilidade da monarquia usado regularmente por monárquicos para justificarem a continuidade do regime político. No plano das relações internacionais, a Coroa do Reino Unido tem também servido interesses britânicos concretos no quadro da Commonwealth of Nations, enquanto líder diplomática da instituição - um suave exemplo de imperialismo do Século XXI, embora este seja mais 'democrático' do que outros, afinal de contas, ninguém são da cabeça poderá afirmar que as relações que hoje decorrem entre o Reino Unido e estados como o Canadá, a Austrália ou a Nova Zelândia são uma dinâmica entre metrópole e colónias. O mesmo serve para a relação que hoje existe entre o Reino Unido e a África do Sul, por exemplo. Hoje, o fenómeno imperialista tem outras nações mais jovens como protagonistas, e uma outra que é das mais antigas nações do mundo...


Claro que o oportunismo, por ocasião da morte de alguém, é quase sempre uma constante humana, e para aqueles que julgam que estou a falar dos corajosos republicanos que saíram às ruas para protestarem contra a monarquia, desenganem-se… embora também tenhamos tempo de chegar a este assunto, espero eu. O oportunismo de que falo vem do ocidente do Atlântico, de gente 'comum', gente que julga que é mais esperta que os outros. Ainda o corpo de Elizabeth II estava morno, não tardou que viessem os auto-proclamados liberais do Twitter, cidadãos e cidadãs dos Estados Unidos da América - segundo Simon Jenkins, a maior de todas as criações dos britânicos -, falar da injustiça da monarquia, do anacronismo do regime político britânico, dos crimes perpetuados pela realeza, do regime tirânico que a falecida rainha protegeu e encobriu, das colónias que já não o são, e de mais não sei quantas coisas, algumas correctas e outras não tanto, à semelhança das queixas que enumerei há pouco. Para quem estiver a ler, recordo que o autor que isto escreve é um convicto republicano… contudo, um republicano que não alinha em exercícios de hipocrisia e de enaltecimento nacionalista à custa da morte de estadistas estrangeiros, que é isso que a realeza norte-americana (as celebridades da cultura pop) fez com grande deleite. 


Antes de um liberal dos EUA acusar o passado imperialista do Reino Unido, olhe para a própria casa e critique o imperialismo do seu país - um imperialismo que não sucedeu no século passado, nem há 300 anos, mas sucede neste preciso momento, quer seja na América Latina, em África ou na Ásia Ocidental. Antes de um liberal norte-americano dissertar sobre as desigualdades raciais pretéritas do Império Britânico, reflicta em como efectivamente resolver a contínua crise racial dos EUA. Antes de um liberal dos EUA falar da desgraça que é a ocupação das Ilhas Falkland pelo Reino Unido, atire primeiro pedras às várias ocasiões em que, só no presente século, os EUA ocuparam uma nação estrangeira e agiram à revelia do Direito Internacional, algumas vezes, inclusive, em parceria com o próprio Reino Unido. Antes de um liberal norte-americano indignar-se com o passado de opressão de pessoas LGBTQ pelo Estado Britânico, contemple o facto de a Constituição dos EUA - isto sim um hino às coisas anacrónicas - não ter previsto nenhum artigo que confira proteção legal e constitucional a pessoas que venham a ser alvo de discriminação (seja física, verbal ou psicológica), no local de trabalho, na rua ou em casa, por motivo da sua orientação sexual ou identidade de género, ou até mesmo, já agora, por motivos étnicos. Antes de um liberal norte-americano apoucar o regime político do Reino Unido, contemple a falta de pluralidade política que tem em casa e a forma altamente indirecta como é eleito o Chefe de Estado e Governo - o Presidente, que não raras vezes é mais rei e faz mais vida de rei do que muitos reis. Um argumento contrário poderia referir que os liberais norte-americanos que criticam o regime britânico são os mesmos que têm um olhar altamente crítico para o status quo nos EUA, mas afirmar isso seria promover uma falsidade. Todos esses liberais que saíram a terreiro - mouthpieces do Movimento Woke, coisa saloia que dá má reputação aos movimentos de libertação social - são a nata da nata do establishment americano. São a mainstream. São os eleitores de Joe Biden e os promotores da ideia troglodita, muito à semelhança dos seus rivais conservadores e reaccionários, de que os EUA são "the greatest nation on Earth". São também gente oportunista que julga que, por tecer mui categóricas críticas à Coroa Britânica, voltam a fazer de novo o 4 de Julho. Tenham juízo. Da mesma forma como na Bíblia o homem foi criado à imagem de Deus, também os EUA, por ironia da vida, foram criados à imagem da sociedade britânica e do seu sistema político. Até o modelo legislativo é bicameral e uninominal. 


Para aqueles que defendem a continuidade da Monarquia Britânica, certamente Elizabeth II será sempre o elemento pessoal de legitimação, dignidade, prestígio e respeito, e esta realidade faz-se notar, precisamente, nas incertezas que se materializaram automaticamente em torno do futuro da Coroa agora que foi posto um novo monarca no trono. Há um novo rei, mas os monárquicos britânicos e demais admiradores da simbologia realista da Inglaterra por esse mundo fora sentem-se órfãos com o falecimento da nonagenária monarca. Este será talvez o exemplo mais palpável da estabilidade que o seu reinado significava para muitos milhões de pessoas. Todavia, há outros legados que podem ser associados à sua vida.


Se é verdade que o longo percurso do reinado de Elizabeth II viu o Reino Unido perder preponderância militar, política e económica na cena global - apesar de ainda conservar muita -, também é verdade que neste percurso o Reino Unido se cimentou como um dos estados mais abertos, coesos, livres e socialmente prósperos do mundo. Foi no decurso deste reinado que se ergueu o moderno Estado de Providência britânico - e que entretanto também tem sido vítima de muitos ataques por decisores políticos -, homens e mulheres homossexuais e bissexuais deixaram de ser obrigadas a viver uma vida oculta, sob risco de pena criminal, e passaram a viver numa das sociedade mais diversas e livres do mundo, as tensões entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte foram acalmadas e relativamente estabilizadas, e Londres tornou-se numa metrópole cosmopolita e multicultural. Foi também durante este reinado que a sociedade britânica produziu alguma da melhor música e literatura da sua História e que a Coroa se abriu nas suas actividades diárias para com o mundo, tornando-se uma monarquia modernizada e mantendo em simultâneo um considerável grau de tradição. Foi também durante este reinado que o Império Britânico foi desmantelado, culminando com a cedência de Hong Kong à China (1997). Não foi um reinado que viu a incrementação e evolução do poderio colonial mas sim, precisamente, o seu oposto, não obstante outras soluções terem sido inventadas, nomeadamente a Commonwealth com a presidência do/a monarca britânico/a.


Da minha parte, agradeço a Elizabeth II, enquanto Chefe de Estado, por ter silenciado e refreado a tentativa do círculo do Lord Mountbatten para derrubar, mediante um golpe militar - externo às instituições políticas - o governo socialista de Harold Wilson em plena Contracultura. O seu aval e apoio político (que de facto foi procurado) teriam valido tudo para esse golpe, mas a sua acção, a favor da vontade democrática e do Parlamento, impediram que uma enorme infâmia tivesse sido cometida. Nem todos os monarcas constitucionais teriam agido desta forma. Também foi durante o seu reinado que, em 2017, mais de 50 mil homens, entre eles Oscar Wilde e Alan Turing, receberam um perdão real das condenações por sodomia, marcando um oficial distanciamento da Monarquia Britânica desse passado lúgubre. Claro que o que estas pessoas precisavam não era de um perdão, pois não foram eles que erraram mais sim o Estado Britânico na sua robusta perseguição à homossexualidade masculina que remontou, pelo menos, ao reinado de Henry VIII (1509-1547). O que estas pessoas precisavam era de um pedido de desculpas. Em todo caso, nem Wilde, nem Turing, nem tantos outros anónimos estão vivos para serem recompensados pela injustiça a que foram submetidos.


No que concerne ao futuro do Reino Unido, apesar da contínua estabilidade que muitos comentadores políticos querem fazer transparecer, este mostra-se muito incerto. A popularidade e a dignidade do Rei Charles III não se equiparam às de sua mãe e antecessora. Agora que o mais forte alicerce da Coroa Britânica caiu, velhas crises têm hipótese de se erguer de novo para pôr em causa a hegemonia da Inglaterra naquela região insular da Europa. O movimento independentista e republicano da Escócia poderá ganhar nova vida, e pressão eficaz para que seja autorizado um novo referendo, sobre a soberania escocesa, poderá chegar a bom porto. Da minha parte, espero que chegue. Há muito que está adiado o direito à auto-determinação do povo escocês - assim como o do povo catalão -, e também a vontade clara da maioria da Escócia de permanecer integrada na União Europeia é razão mais que suficiente para que se volte a convocar um referendo vinculativo. Também os movimentos de unificação republicana da Irlanda poderão ganhar nova força. Há muitos séculos que o povo irlandês anseia por um Estado Irlandês uno e soberano, e esse dia chegará. Na Câmara dos Comuns do Parlamento do Reino Unido, o Partido Nacional Escocês - um partido republicano e social-democratico (Centro-esquerda) - detém 45 dos 59 lugares elegíveis na Escócia, sendo também o partido governante da Escócia, e sendo, em termos de militância, o terceiro maior partido do Reino Unido, superado somente pelo Partido Conservador e pelo Partido Trabalhista. O Sinn Féin - partido socialista e republicano que concorre a eleições na República da Irlanda e nos círculos eleitorais norte-irlandeses do Reino Unido - detém 36 dos 160 lugares do Dáil Éireann e 4 dos 60 lugares do Seanad Éireann, as duas câmaras do Parlamento da República da Irlanda. Na Assembleia da Irlanda do Norte detém 27 dos 90 lugares. Na Câmara dos Comuns do Reino Unido, 7 dos 18 lugares elegíveis na Irlanda do Norte são detidos pelo Sinn Féin, embora, neste caso em particular, este partido decida, em todas as legislaturas, não ocupar os lugares que conquista nas eleições gerais do Reino Unido, numa postura de protesto e boicote ao imperialismo britânico sobre parte da região de Ulster (uma das quatro regiões históricas da Ilha Irlandesa). Quanto aos cidadãos e cidadãs da República da Irlanda e seus respectivos decisores políticos, embora os ânimos hoje estejam apaziguados, há uma vontade profunda no âmago de qualquer irlandês/a orgulhoso/a de que o Estado-Nação recupere a sua unidade política em nome da identidade e prosperidade do povo irlandês e da defesa da cultura irlandesa.


Na eventualidade de estes fenómenos separatistas no Reino Unido se concretizarem - a Escócia proclamar uma república e a Irlanda do Norte juntar-se à República da Irlanda -, a Coroa da Inglaterra terá os seus dias contados, e então também surgirá a República Inglesa. Quanto a Gales, é difícil preconizar o futuro desta nação. Ainda que ao longo do tempo histórico se tenham assinalado movimentos republicanos galeses (ainda que tenham sido menos enfáticos que aqueles verificados na Escócia ou na Irlanda), não é provável que Gales alinhe por um futuro separado da Inglaterra. Desde 1283, durante o reinado de Edward Longshanks (1272-1307), que Gales, mediante conquista militar, está integrado como um principado autónomo sob soberania inglesa, tendo sido no Século XVI, durante o reinado de Henry VIII, que foi promulgada legislação que unificou os sistemas administrativo e judicial do Principado de Gales com o Reino da Inglaterra, consolidando, enfim, um estado unitário albergando as duas nacionalidades mas, obviamente, sob hegemonia inglesa. Desde então, Inglaterra e Gales, apesar dos justos protestos dos galeses, têm sido confundidos como a mesma nação, apesar das origens identitárias distintas: os galeses têm, sobretudo, ascendência celta, à semelhança dos irlandeses e dos escoceses, enquanto que o caldo identitário inglês é mais heterogéneo. Nos dias correntes, Inglaterra não tem razões para se preocupar com a separação galesa, mesmo com o factor de instabilidade que surgiu com o falecimento de Elizabeth II. Se dúvidas houver, basta, uma vez mais, contemplar o quadro político em Gales. Dos 40 lugares elegíveis em Gales para a Câmara dos Comuns do Reino Unido, apenas 4 são detidos pelo Plaid Cymru - um partido republicano e socialista galês -, sendo que os demais lugares estão repartidos pelo Partido Trabalhista e pelo Partido Conservador. É notório, portanto, que a larga maioria do povo galês manifesta-se satisfeita com a integração britânica, tendo havido também uma maioria do povo gales a ter votado no abandono da União Europeia aquando do referendo de há 6 anos.


Da mesma forma que houve vozes que se ergueram contra um suposto legado negro deixado pela falecida Rainha da Inglaterra, exagerando as conjunturas e transportando para os dias presentes realidades que foram de outrora, quando Elizabeth II ainda não era monarca, também houve aqueles que exageraram as suas reacções de forma inversa. Apesar da Monarquia Britânica ser uma das mais coesas instituições aristocráticas do mundo, há quem não se contente com a permanência da Coroa, do trono, da Câmara dos Lordes e de um infinito número de venerações a um modelo político que, em abono da verdade, já devia estar descontinuado e é efectivamente anacrónico. São os independentistas da Escócia, da Irlanda, de Gales, e são os ingleses que desejam todos os dias que nasça a República Inglesa, ou a República Britânica. São estes que, em primeiro lugar, têm idoneidade para erguer a sua voz contra a Monarquia Britânica. Em solidariedade para com estas vozes erguem-se então as vozes internacionais que desejam o fim preferencialmente pacífico de todas as monarquias, vozes essas às quais em me junto, não me juntando, todavia, às vozes de oportunistas da qualidade daqueles que já tive hipótese de enumerar há alguns parágrafos. Não me junto às vozes de alegados republicanos que nada mais fizeram do que explorar o falecimento de uma Chefe de Estado, soberana sobre um estado livre, para ridicularizar a sociedade europeia e enaltecer pateticamente a suposta superioridade do regime político da sua nação. Há muitas décadas que o Reino Unido, sendo uma monarquia, é um estado mais democrático que os EUA - um embuste de república democrática. Quanto aos fiéis do culto de personalidade da realeza britânica, que acharam horrorosas as manifestações públicas de cidadãos britânicos contra a Monarquia, talvez é hora de escutar estes protestos e compreender-se a questão de fundo que deve ser abordada: fará sentido dar continuidade a um regime político que investe cargos políticos em pessoas somente devido à sua hereditariedade, sejam estes monarcas ou membros da Câmara dos Lordes? Por mais esplendorosa e aparentemente magnânima que seja a pompa e circunstância em torno da realeza, despindo a monarquia de tudo isto, é isso que factualmente tal regime político representa. Fará sentido promover o esplendor e a ostentação extrema como símbolos basilares da unidade do Estado? Para mim não. É por estas principais razões que eu defendo o regime republicano, não obstante conseguir compreender a psicologia daqueles que defendem um regime idêntico ao do Reino Unido - afinal, há muito tempo, quando ainda não conseguia compreender determinadas coisas que hoje são cruciais para a minha pessoa, eu fui monárquico. Terei sido, provavelmente, um jovem e estranho caso de um monárquico agnóstico.


Como o teor deste texto (que já vai demasiado longo) foi capaz de transparecer, não é preciso ser-se monárquico para mostrar respeito perante uma monarca, nem é obrigatório insultar a memória de uma monarca porque se é republicano. Eu, por exemplo, considero que um dos melhores estadistas portugueses dos últimos 200 anos foi um monarca: o Rei Pedro V. E, enquanto republicano, de nenhuma forma fico ofendido pela presença do Presidente da República no funeral de estado da Rainha Elizabeth II. Que corra melhor que a estadia do Professor Marcelo nas cerimónias do bicentenário de independência do Brasil - há muito que não via a minha República ser tão enxovalhada e Chefe de Estado com sorriso de orelha a orelha. Mais valia ter antecipado o circo e não ter metido lá os pés… e a ver vamos quando é que o desgraçado coração do Rei Pedro IV regressa ao sítio de onde nunca devia ter saído. Também não fico ofendido com os três dias de luto nacional decretado pelo Governo da República… embora eu nunca decretasse tal coisa se dependesse de mim, mas enfim, não é o fim do mundo nem é nada daquilo que representantes do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda afirmaram. Se estivessem mais preocupados em obliterar os reaccionários do Parlamento e em fazer reformas internas nos respectivos partidos, do que reagir a coisas meramente triviais e simbólicas, talvez não estivessem na desgraça em que estão metidos.


Falece uma rainha e um novo rei assume funções. Por mais quanto tempo será assim, não sei dizer. Sei que termina no dia em que as consciências britânicas perderem de vista o sentido de todo este aglomerado de cerimónias e vassalagens modernizadas. Quanto aos portugueses e portuguesas que tiraram um minuto do seu tempo de vida para lançar impropérios não provocados contra a memória da falecida monarca, gostava que também fizessem uso dessa energia para a direccionar contra o Rei de Espanha. Isso sim iria deixar-me satisfeito.

Que se dê o capítulo como terminado e que comece o próximo. O funeral será em menos de dois dias e a coroação na Abadia de Westminster ainda está por decidir. Primeiro temos de ver se Charles III consegue chegar lá. O seu tio-avô não conseguiu.


Sábado, 30 de Frutidor CCXXX