sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Qatar

Foi há mais de uma década que, no seio da FIFA, numa reunião convocada em Zurique, foi seleccionada a nação anfitriã do Campeonato Mundial de Football que há duas semanas teve início. Essa nação é a primeira dos estados árabes e da Ásia Ocidental a organizar um Mundial e o nome do estado é Qatar. Ainda era um pré-adolescente quando tal resolução veio a público e, logo nessa altura - e disto o meu irmão, por exemplo, é testemunha - olhei com um péssimo esgar a tão idiota decisão por parte dos mestres da FIFA. Embora não detivesse, na época, a bagagem de conhecimento e raciocínio que tenho hoje, já era perfeitamente capaz de compreender várias implicações de tal arranjo, desde a ordem climatérica à ordem política e societal. E como eu houve tantas outras pessoas anónimas ou públicas que se insurgiram com tal decisão e que denunciaram os potenciais casos de corrupção e suborno que inundam os organismos da FIFA. Em 2014 houve, inclusive, extensas investigações por parte de várias instituições (Media e serviços nacionais de informação) que chamaram a atenção do público para estes factos e que alegaram que a decisão de fazer do Qatar o anfitrião do Mundial 2022 é um caso flagrante da corrupção instalada, tanto por parte da FIFA como por parte dos governantes do Qatar. Portanto, o primeiro ponto que quero salientar é o seguinte: as pessoas não se estão a queixar só agora! Há uma década que a questão é discutida e denunciada e há uma década que os governantes do Qatar se riem a bandeiras despregadas porque sabem que levarão a sua avante.


O facto do Qatar ser a nação anfitriã do Mundial 2022 fez deste torneio de football mais do que um evento desportivo-cultural. Com as polémicas que constantemente têm surgido nos noticiários e as discussões sobre a natureza política do Estado do Qatar, o Mundial 2022 tornou-se incontornavelmente um evento com fortes implicações políticas, e não pelos melhores motivos. Na ligação entre o Qatar enquanto país anfitrião do maior torneio desportivo do mundo e enquanto país regido por uma Monarquia Absoluta e islâmica fundamentalista, há quatro principais graves problemas de violação de direitos humanos que são atentados descarados à Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, que deveria reger - pelo menos em ambição - qualquer estado-membro desta grande instituição. É com base na enumeração destes quatro graves problemas que eu irei contradizer o Emir do Qatar, e seus associados governantes, no sentido de afirmar que, afinal, nem toda a gente é bem-vinda ao Qatar, e que eu irei atirar à lama o nome do Presidente da FIFA. Às pessoas leitoras perdoem-me a falta de contenção mas eu sinto-me particularmente fulminado.


O primeiro atentado aos direitos humanos no Qatar é a forma como os donos deste país lidam com as liberdades de expressão e imprensa - liberdades virtualmente inexistentes nesta sociedade islâmica. É proibido segundo a Lei do Qatar: instigar ao derrube do regime; divulgar aquilo que o regime considere ser "notícias falsas" (o que, francamente, poderá ser qualquer coisa que o Emir queira que seja); publicar conteúdos online que os governantes considerem ser um insulto aos valores sociais do Qatar; criticar o Emir; criticar a religião islâmica. Qualquer pessoa que publique notícias ou informações que, na estimativa do regime, comprometa os interesses nacionais, pode resultar em 5 anos de prisão para essa pessoa. A cereja no topo deste bolo totalitário é que é proibido para todos os cidadãos e cidadãs do Qatar declararem-se como apóstatas ou converterem-se a outra religião, sob pena de serem severamente punidos e encarcerados. No índice da liberdade de imprensa (2020) dos Repórteres Sem Fronteiras, o Qatar está classificado na posição 129 em 180 estados classificados.


O segundo atentado aos direitos humanos no Qatar é a forma como o seu regime trata toda e qualquer prática ou interesse romântico ou sexual que fuja à estrita regra da heterossexualidade, ou a forma como o regime trata pessoas que pretendem alterar o seu género ou que, no que concerne a sua identidade de género se declarem não-binárias. De acordo com o sistema jurídico do Qatar, qualquer relação sexual consensual entre dois homens acima dos 16 anos de idade pode ser punível com 7 anos de prisão. Também, qualquer homem que alegadamente incite outro homem em relações sexuais corre o risco de sofrer uma pena de 3 anos de prisão. Para além disso, como tem sido mais que evidente nos últimos dias, o Qatar não tolera qualquer manifestação de apoio a direitos LGBTQ nem qualquer retrato positivo de pessoas LGBTQ. No índice de igualdade para estados favoráveis à Comunidade LGBTQ da Equaldex, o Qatar encontra-se na posição 184 em 198 estados classificados.


O terceiro atentado aos direitos humanos no Qatar é a forma como o seu regime trata cerca de metade da sua população, nomeadamente, as mulheres. De acordo com o sistema do Qatar, qualquer pessoa do sexo feminino precisa de autorização de um tutor masculino (qualquer figura masculina que por ela seja responsável) para casar, deslocar-se ao estrangeiro, aceder aos cuidados de saúde reprodutiva ou trabalhar no Estado. O regime do Qatar também proíbe qualquer mulher de ser a principal tutora de um filho seu. É também uma realidade no aparelho jurídico do Qatar a forma altamente atroz como mulheres que têm relações fora do casamento são tratadas e punidas. No ranking da igualdade de género (2022) do Fórum Económico Mundial, o Qatar está classificado na posição 137 em 146 estados classificados.


O quarto atentado aos direitos humanos no Qatar é a forma como o seu regime trata a Classe Trabalhadora. O modelo laboral do Qatar é regido pelo medievalesco Sistema de Kafala: direccionado, sobretudo, aos trabalhadores migrantes - que compõem cerca de 95% da força de trabalho do Qatar -, estes estão inteiramente dependentes da entidade patronal para terem residência e estatuto civil, havendo fortes dificuldades do trabalhador mudar de trabalho sob pena de acusação criminal. [Sendo uma das bases de produção económica do Qatar, este Sistema de Kafala também pode ser visto como um traço bastante assinalado de xenofobia implícita nesta sociedade.] No Qatar não existem quaisquer direitos de associação sindical, greve ou protesto por melhores condições laborais. O trabalhador que entre por esses caminhos é considerado uma ameaça à ordem pública. Não existe qualquer transparência, por parte do Estado do Qatar, quanto a dados sobre mortes ou lesões em trabalho. As condições salariais para o trabalhador comum são também uma horrível desgraça e quase são sinónimo de escravatura. Não há melhor exemplo, para tudo o que mencionei neste parágrafo, que as condições laborais em que os estádios deste Mundial foram construídos. Estádios construídos sobre sangue: muita gente morreu a trabalhar. No índice global de direitos da Confederação Sindical Internacional, o Qatar está no nível 4, isto é, violações sistemáticas dos direitos laborais. 


Embora eu já tenha referido que o Estado do Qatar é uma monarquia absoluta - possuindo um pseudo-órgão legislativo para fins meramente consultivos - valerá a pena sublinhar que o Emir do Qatar, e o seu círculo de governo, é o legislador, é o executor da lei e é quem julga dentro da sua lei (e já percebemos que a sua lei poderá ser o que ele bem entender). Não existe a mais leve substância de Democracia ou de pluralidade de opiniões. Não existem checks and balances. Tudo o que existe é um despotismo caprichoso que leva à frente tudo o que se meter no seu caminho. E qual o objecto da Lei Fundamental desta nação? A Lei Sharia - tal como no vizinho Reino da Arábia Saudita que tanta coisa tem de semelhante, incluindo as suas tão valiosas reservas de petróleo que, para mal destas dinastias, têm os dias contados.


Foi nisto que a FIFA achou por bem, já lá vão 12 anos, atribuir o Mundial deste ano. Esperariam, entretanto, que a realidade social mudasse? Se assim esperavam, enganaram-se! Claro que o senhor Infantino bem tentou passar uma esponja sobre este desagradável assunto e afirmar que isto é tudo hipocrisia ocidental. Pois bem, se o senhor Infantino, com a sua recém-nascida clarividência holística e multicultural, acha que as justas críticas dirigidas ao regime do Qatar são uma hipocrisia por parte dos estados livres, eu convido o senhor Infantino a levar a sua esposa (se tiver), as suas filhas (se tiver) e um filho gay (se tiver) para o Qatar, enquanto uns se dedicam ao livre jornalismo e outros se dedicam a trabalhar nas obras. Aí o senhor Infantino poderá ver o quão feliz ele e os seus poderão vir a ser… não gasto mais linhas com um ignorante cujo maior mérito é presidir a uma instituição que rima com corrupção.


No que concerne à sociedade alargada, as reacções das reacções (isto é, houve pessoas, como eu, que se indignaram, e houve pessoas que reagiram a essa indignação) do facto do Mundial ter lugar num estado com a anteriormente descrita natureza política foram bastante diversas, surpreendentes, chocantes, frustrantes, estúpidas, sensatas, palermas, acéfalas, irrelevantes, banais, inconsequentes, excelentes, enfim, houve de tudo um pouco! Há quem opte por fazer como a avestruz, enfiar a cabeça na areia, e dizer que o tempo das queixas já passou: "Deviam ter-se queixado há 12 anos, quando a decisão foi tomada!" Já sabemos que as "queixas", impotentes face ao grande capital, começaram logo nessa altura. Há quem opte por fazer papel de cínico, afirmando, nem que seja com o mais tímido e ténue esgar de regozijo, que a cultura dos outros países é para ser respeitada. São precisamente estas mesmas pessoas - do dia para a noite convertidas em campeãs da multiculturalidade - quem têm um défice cultural gritante, seja a cultura respeitante à sua nação, seja a cultura de outras nações. Se, para estas pessoas, direitos humanos é nada mais que uma questão de cultura, como o capote que os alentejanos envergam ou o kimono que os japoneses vestem, se para esta gente os direitos laborais, a liberdade feminina, a liberdade sexual e a liberdade de expressão, são nada mais que simples questões de diferença cultural, como a vodka dos russos ou o kilt dos escoceses, então, face àquilo que é o argumentário destes cínicos, eu pergunto-me: "Para que é que se combateu a 2ª Guerra Mundial?" A perseguição de judeus, entre outros grupos, na Alemanha Nazi, também pode ser vista como uma questão cultural. A forma discriminatória como os atletas judeus foram tratados nos Jogos Olímpicos de 1936 (mais que os negros, inclusive) também pode ser vista como um mero apontamento cultural. Apesar de tudo, Hitler, esse grande benemérito, queria apenas salvaguardar a cultura ariana, a bem ou a mal, verdadeira ou inventada. Se quisermos continuar a esticar esta perigosa corda, a escravatura era uma questão cultural… e económica. Malandro do Lincoln e de toda a União que se meteram a combater uma guerra civil por causa de tão trivial característica cultural dos Estados Confederados. Malandros dos liberais e dos progressistas que quiseram pôr termo à segregação racial, quer tenha sido nos EUA ou na África do Sul. Querem ver como a corda pode esticar até ao limite? A nossa monarquia era uma questão cultural. 771 anos de história. Qual foi a legitimidade dos revolucionários republicanos, a 5 de Outubro de 1910, de terem cilindrado a cultura política portuguesa? (Só aqui entre nós, como já fiz referência num texto semelhante neste blog, havia uma época, quando eu ainda era um jovem ingénuo, em que eu acreditava nessa premissa.) Ao fim de contas, acabámos por importar a República: essa ideia estranha e estrangeira congeminada e trabalhada por helenos, romanos, neerlandeses e franceses. A Ditadura do Estado Novo também tinha muito de cultura portuguesa. Uma serena e moderada ditadura, sempre muito austera e fechada sobre si própria, a abarrotar de Igreja Católica. Para que é que o Movimento das Forças Armadas foi lá mexer, interferindo com o caldo identitário da cultura portuguesa? É nisto que dá a atitude de gente cínica, afirmando que direitos humanos são nada mais que um apontamento cultural. É impressionante como na História da Humanidade a identidade cultural tem justificado tantas barbaridades com a conivência directa ou indirecta de tantos. Se começar a ser um lugar comum a relativização dos direitos humanos, então eu confesso perder todo o interesse na questão da sociedade internacional. Se chegarmos ao rasteiro ponto de relativizar violências, desigualdades, discriminações, perseguições e ausência de Estado de Direito como meros apêndices na fisiologia cultural de determinado estado-nação, então mais vale encerrarem as portas da ONU. Não faz falta, somos forçados a supor. Não queremos interferir com as culturas excêntricas desta vida. Se algum país, um dia destes, quiser meter em andamento uma cultura que seja uma mescla de genocídios e canibalismo, está à vontade desde que seja cultura! Mas a FIFA é a primeira culpada de toda a situação.


Apesar de rectificadas, ditas de novo, riscadas por cima e explicadas em fresco, também foi com alarme que escutei as declarações do Presidente da República Portuguesa pouco antes do Mundial ter início. Em suma, Marcelo afirmou que essa estória dos direitos humanos é preocupante mas que isso agora não importa porque o que importa é dar apoio enquanto 11 rapazes portugueses jogam à bola. São as prioridades. Prioridades essas das quais Marcelo também foi muito rápido a arrepender-se. Marcelo arrependeu-se de tal forma, e o Primeiro-Ministro deve ter ficado de tal forma embaraçado, que no dito fórum em que António Costa falou, este deve ter endurecido de tal forma as críticas ao regime do Qatar que o Emir foi meter a República na sua lista negra, what a bad boy. E nós desolados com isso. Quanto a mim, a mensagem que o Governo tinha para endereçar ao Embaixador seria muito simples: "Homem, arrume as malas, bata com a porta e venha daí embora!" Não precisamos de relações diplomáticas com o Qatar. Não precisamos de relações de amizade com esses sheiks cujo maior desafio diário é decidirem com que toalha de mesa se vão tapar nesse dia. Tomem. Aí têm eu a ser rude, mas não tão rude como esses prepotentes.


Os reaccionários nas várias sociedades afirmam que o liberalismo social está a tomar conta do status quo, e que agora são eles - os reaccionários - os grandes oprimidos desta vida. Alguns vão até ao excêntrico ponto de aderir a essa doida teoria da conspiração do Marxismo Cultural - teoria essa que eu já abordei num texto deste blog. Pois bem, se isso fosse verdade, se fosse verdade que os aparelhos societais do mundo se tivessem a desviar para a Esquerda (como eles dizem), como poderiam então justificar a realização do maior evento desportivo do mundo num estado extremamente capitalista, hierarquizado, monárquico, religioso, anti-democrático e tradicionalista? E como poderiam justificar tal teoria quando a esmagadora maioria, face à natureza do anfitrião, nem pestaneja e se limita a aceitar com serenidade a cultura de um estado totalitário? É por estas que eu sinto que devo sublinhar a seguinte desagradável ideia: a liberdade de pessoas LGBTQ, a emancipação feminina, o progresso das condições laborais da Classe Trabalhadora e a liberdade de expressão e associação, não podem ser dados adquiridos. Perante as prioridades maiores das corporações e dos interesses económicos e políticos, qualquer um destes avanços humanitários poderá ser descartado a favor do grande capital.


À partida, um forte argumento poderia ser levantado contra aquilo que escrevi até aqui, a propósito do Qatar ser a nação anfitriã de um Campeonato Mundial de Football. Alguns poderão argumentar que a minha posição crítica poderá conter uma índole eurocêntrica e que tal posição iria excluir a maior parte dos estados do mundo da idoneidade para organizarem grandes eventos desportivos internacionais. Em suma, poderiam rematar que a essência da minha posição parte de uma postura arrogante. Tal seria verdade se eu defendesse que só as nações com os melhores registos em matéria de direitos humanos tivessem idoneidade para organizar eventos com esta magnitude e projecção. Mas eu não defendo isso, até porque tal postura iria excluir de protagonismo povos que pouca ou nenhuma culpa têm da natureza de regime das respectivas nações. Aliás, eu sou favorável para que quase todos os estados do mundo organizem Campeonatos Mundiais, Jogos Olímpicos, et cetera. Salvaguardo, contudo, a minha objecção para com um conjunto selecto de estados que eu entendo configurarem um extremo e hediondo perfil totalitário no seu regime político e cujo registo em matéria de direitos humanos é absolutamente desolador. O Qatar é um exemplo. Outros exemplos são os Emirados Árabes Unidos, a Arábia Saudita, o Afeganistão, o Irão, a Coreia do Norte e talvez a Bielorrússia. Defendo esta posição não só por entender que a natureza política destes regimes é insalubre para a deslocação livre e massiva de pessoas de várias origens culturais e nacionalidades, e por ser um ambiente muito tóxico para a prática de um jornalismo livre, mas também porque os únicos beneficiários destes eventos são os ditadores governantes que têm a sua dignidade actorial legitimada no palco internacional.


Eu nunca fui o maior fã de football, todavia, houve uma época em que eu via football, e interessava-me pela actualidade do desporto - assim como pela sua história. Ainda hoje, se ligar a televisão e estiver a ser transmitido um bom jogo de football, eu sou capaz de me entreter. Campeonatos Mundiais e Campeonatos Europeus de selecções sempre foram as épocas em que eu mais gostei de football. Este Mundial é o primeiro em toda a minha vida que eu não irei acompanhar. Por minha vontade, ainda não vi quase nada deste torneio. É o meu pessoal e insignificante boicote, e é o boicote que eu gostaria ter visto muitas selecções a aderirem. Todavia, devo agradecer especialmente às selecções da Alemanha e da Inglaterra (selecções de que eu sempre gostei muito) por se terem comprometido com o protesto e por não terem arredado pé de causas que importam. Os anormais que apoucaram a selecção alemã quando esta foi eliminada na fase de grupos nem se quer sabem que a bola é redonda - viu-se como a selecção do Qatar fez história no Mundial a tornar-se a primeira nação anfitriã a não somar um único ponto na fase de grupos, e, no final de contas, é o resultado de se atribuir a organização de um torneio internacional de football a um estado sem qualquer cultura futebolística. Os jogadores iranianos que optaram por protestar silenciosamente contra a sua república islâmica terão para sempre o meu respeito. Que não lhes suceda nada. Já por Carlos Queiroz, não reservo esse respeito. Em 1978, o Campeonato Mundial de Football foi organizado pela Argentina. Foi dois anos antes desse Mundial ter início - bem depois, portanto, do anfitrião ter sido decidido - que houve um golpe militar na Argentina, a liberdade foi abolida, e assumiram o governo ditadores militares de inspiração fascista. Várias federações ameaçaram boicotar esse Mundial. Uma das mais grandiosas figuras na História do desporto, Johan Cruijff, boicotou de facto esse Mundial, tendo recusado jogar perante um regime fascista, e não representou a selecção dos Países Baixos. A História vai-se repetindo. Ontem, como hoje, há aqueles que querem que o desporto seja mais que simples retórica em matéria de inclusão, felicidade e liberdade, e há aqueles cujo amor a esses valores é mais débil e descartável.


Notas finais:


Seria bom que os Media não consumissem tanto tempo com o Football e com as peripécias que constituem a vida pública de Cristiano Ronaldo. Sublinho: não estou a pedir que não cubram a actualidade desportiva da modalidade mais vista e mais influente em Portugal, eu estou a pedir é que não façam disso a primeira prioridade. Muita coisa se passa no país e no mundo para além da bola. No que concerne à pessoa do capitão da selecção nacional, julgo que o que sucede é muito evidente: agora que ele, enquanto atleta, já não tem o rendimento e as capacidades que tinha, o seu péssimo feitio e a sua atitude tóxica para com o colectivo começam a vir muito ao de cima. Independentemente de ser um desportista memorável na História de Portugal, Cristiano Ronaldo, derivado da sua personalidade e mentalidade, não é o mais exemplar embaixador do desporto português.


Quanto aos próximos dois campeonatos mundiais e seus anfitriões, podemos ter a nossa consciência tranquila quanto ao Mundial 2026, organizado entre o México, o Canadá e os EUA (desde que os norte-americanos não insistam em chamar soccer ao desporto) e para o Mundial 2030, apesar da candidatura de Portugal e Espanha - à qual a Ucrânia se atrelou -, julgo apropriado que seja nomeada a candidatura do Uruguai, Paraguai, Chile e Argentina, tratando-se do Mundial Centenário. Afinal, foi em 1930, no primeiro Mundial, que o Uruguai organizou o torneio, tendo a selecção uruguaia, inclusive, saído como a primeira campeã mundial.


Saliento que, sobretudo, o que se discutiu neste texto não foi football propriamente dito (isso está fora dos meus conhecimentos), mas sim as complexidades societais e políticas em torno deste desporto que, para o bem e para o mal, move muitas mentes e multidões… e dinheiros. O football em si já deixou de me interessar há uns anos.


Vernes, 18 de Frimário CCXXXI

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

2 Anos: Carta Aberta ao meu Príncipe

Meu Príncipe


A felicidade, amiúde, é um estado de difícil e demorada conquista. Leva tempo até alcançarmos, no nosso mais profundo âmago, este desígnio último, esta vontade derradeira, que caracteriza uma civilizada existência humana. Receitas para a felicidade colectiva são muitas e tão distintas. Mas a felicidade que conquistei para mim, embora tenha demorado anos, surgiu e instalou-se à velocidade da luz e resgatou-me do vortex tenebroso no qual a minha mente se afundava, ano após ano. Esta felicidade de que te falo é uma felicidade que deve sempre anteceder uma felicidade colectiva na sociedade, da mesma forma que, como defendeu Jim Morrison, para primeiro haver uma revolução na sociedade é primeiro necessário haver uma revolução pessoal, uma revolução de consciência, em cada um de nós. A felicidade sobre a qual te escrevo não é o usufruto consolidado e universal de uma sociedade plenamente livre e com recursos e tempo para satisfazer as necessidades básicas e lúdicas de toda a gente - esse projecto prometaico pensado desde os seguidores de Epicuro até aos iluministas radicais do século XVIII. Não. Eu falo precisamente dessa outra felicidade que antecede esta felicidade que descrevi, ou que, então, deve coexistir com um estádio colectivo de felicidade humana. 


A vida não é perfeita. A própria felicidade não é uma realização perfeita. Eu não sou uma pessoa perfeita. Tampouco tu és, meu Príncipe, uma pessoa perfeita. Todavia, também não é a perfeição que nós procuramos - algo próximo da perfeição, claro, mas não a perfeição rígida e consolidada, possivelmente porque tal coisa seria impossível ou então porque tal coisa deixaria de ser felicidade. 


A felicidade, para quem procura, pode ser conquistada num instante. Um acender da lâmpada. O piscar de um olho. O bater das asas de um pássaro. O cair de uma gota. O sibilar de uma serpente. No momento antes não havia motivos para grandes esperanças e a mente estava pesada, e no momento seguinte o peso do mundo tinha sido levantado de cima do meu peito e o alvor já era visível no horizonte. Sabes quando é que isso aconteceu, meu Príncipe? Quando vi a tua cara sorridente, e os teus olhos azuis a olharem para os meus e a tua voz calma e melodiosa a dizer o meu nome. Foi quando pude sentir o teu peito contra o meu e quando pude absorver-me no perfume que é o odor do teu cabelo. Foi quando tu me disseste que ias embora mas que obviamente ias regressar, e continuar a regressar, até que nunca mais foste embora. Claro que pude conhecer, também, as tuas ocasionais 'alucinações' da mesma forma que tu pudeste conhecer os meus defeitos de personalidade, mas isso também faz parte do amor e fará sempre parte de qualquer projecto de felicidade, não concordas meu Príncipe?! Como havíamos nós de progredir individual e colectivamente se já tivéssemos nascido perfeitos como os profetas e os messias dessas religiões que são veneradas por tantos milhões de mamíferos? Mamíferos como eu e tu. Seres humanos. Seres cujo único desígnio é - ou deveria ser - a procura incessante, dentro das várias circunscrições éticas, da felicidade. Tal procura, julgo eu, nunca será realizável se não houver amor. É isso que tu significas para mim, Filipe. O tudo ou o nada da procura da minha felicidade indissociável da tua própria felicidade.


Tenho lido Oscar Wilde para me inspirar a escrever-te esta carta. Optei por reler The Picture of Dorian Gray, para me embalar nas sensações e nas imagens e na beleza das frases e dos diálogos, e li uma pequena obra de Wilde que ainda nunca tinha lido: De Profundis. Uma carta que foi endereçada ao amado de Wilde, Lord Alfred Douglas, redigida enquanto o Oscar cumpria a sua ignóbil pena de prisão, e postumamente publicada. Não pude deixar de me encher de melancolia. O contraste das imagens literárias entre luzes (em Dorian Gray) e sombras (em De Profundis) é chocante. Como pôde um ser tão luminoso e optimista como Wilde ter mergulhado em tanta depressão e tanto ascetismo? E a parte mais melancólica é que nós sabemos como a estória acaba… pelo menos para Wilde. Certamente, em alguma altura da vida dele, ele terá sido feliz, mas, numa das últimas obras que ele alguma escreveu (esta de que escrevo), ele iniciou da seguinte forma: "Suffering is one very long moment." Mas esse não será o nosso desfecho, meu Príncipe. Escolha curiosa para um republicano convicto designar o amor da sua vida como Príncipe: Erguido, em luz, na acrópole da minha helénica cidade mental, tu és o Princeps Civitatis. És a bússola para os meus desígnios. O teu surgimento na minha vida representa para mim o que a publicação do Manifesto de Marx e Engels representa para os comunistas, a ascensão de Buda ao Nirvana representa para os budistas ou o que o nascimento e renascimento de Jesus Cristo representa para os cristãos. Antes de ti havia uma Era na minha vida, e depois de ti começou outra Era.


Faz hoje dois anos que nos conhecemos. Faz hoje dois anos que reencontrei felicidade plena. Tivesse eu nunca vindo para Évora, ou tivessem as circunstâncias da minha vinda para Évora sido diferentes, os tempos presentes, para mim e para ti, seriam muito diferentes. Mais sombrios, certamente. Mas a vida lá resolveu, finalmente, sorrir para nós. Desde nos conhecermos até decidirmos partilhar uma vida juntos, debaixo do mesmo tecto, passaram apenas três meses. Será portanto dentro deste tempo que mais outro aniversário se concretiza: o segundo aniversário do momento em que resolvemos viver juntos e em que decidimos adormecer e acordar lado-a-lado todos os dias. Não foi algo que tenhamos pensado com antecedência. Não foi algo que discutimos ou que projectámos. Simplesmente sucedeu porque era aquilo que faria mais sentido para nós. Porque haveriam duas pessoas que se amam de viverem em locais separados quando existe a oportunidade de viverem juntas? Porque haveriam, duas pessoas que se amam e que pretendem trilhar o longo caminho da vida juntas, de passar menos tempo na companhia mútua quando é possível maximizarem em união o usufruto do tempo? Estes pensamentos que partilho contigo transportam-me para uma expressão latina - carpe diem. Fazer o máximo feliz usufruto dos dias que vivemos e daqueles que temos pela frente. É nesta senda, pensando em ti, que gravo aqui estas quadras escritas por Robert Herrick em 1648:


"Gather ye rosebuds while ye may,

Old Time is still a-flying;

And this same flower that smiles today

Tomorrow will be dying.


The glorious lamp of heaven, the sun,

The higher he's a-getting,

The sooner will his race be run,

And neerer he's to setting.


The age is best, which is the first,

When youth and blood are warmer;

But being spent, the worse, and worst

Times still succeed the former.


Then be not coy, but use your time,

And while ye may, go marry;

For having lost but once your prime,

You may forever tarry."


Quando leres esta carta, sei perfeitamente o que estarás a pensar quando chegares a este parágrafo: a carta já vai longa! Sei também que gostas de evitar este tipo de exposições. Mas se tanta coisa é dita e celebrada na praça pública, e sobre tantos nomes e temas já versaram dezenas de textos neste blog, porque não usar o meu Pensatório da Divisão para manifestar o amor e a paixão que sinto por ti? Porque não celebrar o amor e a nossa jornada rumo à felicidade?


Já ouvi dizer, e já li, que em qualquer relação a paixão romântica e ardente desaparece de forma célere. Dizem que é uma chama fátua, e que aquilo que fica no seu lugar é aquilo que muitos caracterizam como uma forma mais madura de amar e que envolve sobretudo paciência. Que tipo de amor é esse que se baseia na paciência? O amor que sinto por ti, meu Príncipe, é um sentimento absolutamente dependente e apaixonado que aumenta cada dia que passa e que tomou o meu coração logo no início. Evidentemente que também há alguma paciência. Paciência minha para lidar com o teu mau humor quando tens fome, quando tens sono ou quando acordas, paciência tua para aturar as minhas predileções por tabaco e vinho ou o meu ocasional mau feitio. Todavia, face àquilo que nos une, a paciência é um grão de areia na totalidade da nossa razão de ser. A nossa pedra angular é a vontade mútua e incontornável de estarmos na companhia um do outro todos os dias das nossas vidas.


Uma vida inteira estende-se ante nós. Não percamos o tempo e os dias e concentremo-nos em fortalecer a nossa felicidade. Esta é a minha simples proposta, meu Príncipe. É verdade que já não imagino o que é viver sem ti - e por vezes esse facto deixa-me sobressaltado -, mas tal factualidade não tem de representar per se uma fragilidade se compreender que viver uma vida contigo me torna uma pessoa melhor, me torna feliz, me dá vontade de viver, me dá um propósito férreo e me dá esperança para o futuro.


Graças a ti, Sunshine, digo sem reticências que sou feliz. Parabéns para nós neste belo dia de Outono - e nós que gostamos tanto das épocas frias e da chuva. Amo-te, Filipe.


Post scriptum:


Esta primeira estrofe do Kubla Khan, de Samuel Taylor Coleridge, uma peça de poesia cheia de cenários naturais, imagens maravilhosas e letras magistrais, faz-me lembrar a tua beleza. Tão bom poder comunicar contigo na Língua Inglesa.


In Xanadu did Kubla Khan

A stately pleasure-dome decree:

Where Alph, the sacred river, ran

Through caverns measureless to man

Down to a sunless sea.

So twice five miles of fertile ground

With walls and towers were girdled round;

And there were gardens bright with sinuous rills,

Where blossomed many an incense-bearing tree;

And here were forests ancient as the hills,

Enfolding sunny spots of greenery.


Mércores, 2 de Frimário CCXXXI

sábado, 17 de setembro de 2022

A Morte da Rainha Elizabeth II e reflexões relacionadas

Há 9 dias, Elizabeth II da Casa de Windsor, Soberana sobre o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte (englobando quatro países constituintes, sendo estes Inglaterra, Gales, Escócia e Irlanda do Norte), assim como de todos os territórios e possessões ultramarinas da Coroa Britânica, e para além disso sendo também a Soberana de mais de uma dezena de estados independentes, membros da Commonwealth of Nations (da qual o/a monarca é o/a líder institucional), que partilham a mesma coroa com o Reino Unido (entre estes estão o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia, a Jamaica, et cetera), dizia eu então que esta Rainha da Inglaterra - como já é do conhecimento comum de toda a gente - faleceu aos 96 anos de idade, no mesmo ano em que celebrou o seu 70º ano de reinado como monarca constitucional. 

Em 1926 nasceu em Londres Elizabeth de York, princesa da Família Real britânica e filha do então Duque de York, Albert, filho mais novo do então Soberano do Reino Unido, George V (1910-1936). Tinha sido há 9 anos, no decorrer da 1ª Guerra Mundial e por razão do intenso sentimento anti-germânico na Grã-Bretanha, uma vez que o Império Alemão era o maior inimigo da Triple Entente (da qual o Reino Unido fazia parte), que a Casa Real britânica tinha alterado o seu nome de Saxe-Coburg e Gotha (uma casa nobiliárquica de origem alemã) para o muito inglês nome de Windsor, em referência, por exemplo, ao Castelo de Windsor situado no Condado de Berkshire. O próprio nome Saxe-Coburg e Gotha só aguentou 17 anos como designação da dinastia reinante: em 1901 Edward VII (1901-1910) sucedeu à sua mãe, a famosa Rainha Victoria (1837-1901), e não herdando o nome da casa nobiliárquica da mãe, herdou antes o do pai, o germânico príncipe consorte da Rainha-Imperatriz cujo nome era Albert de Saxe-Coburg e Gotha e, a título de curiosidade, tio de sangue do Rei de Portugal Pedro V (1853-1861). Antes do Rei Edward VII ter assumido o nome do pai, a Casa Real tinha o nome Hannover, também esta uma casa nobiliárquica de origem germânica cuja real dinastia na Grã-Bretanha remonta ao reinado de George I (1714-1727), o Príncipe-Eleitor de Hannover no Sacro Império Romano-Germânico que, falando pouco ou nada de inglês, por via de caminhos apertados, havia sucedido à Rainha Anne (1702-1714), a última monarca da Casa Stuart, tendo sido durante este reinado que, com os Actos de União (1707), por emissão legislativa dos parlamentos da Escócia e da Inglaterra, estas nações se haviam unido sob um único reino - o Reino da Grã-Bretanha (envolvendo também o Principado de Gales por já pertencer à Inglaterra) - e que desde James I (1603-1625), o primeiro monarca Stuart da Inglaterra, se encontravam unidas sob a mesma coroa, embora sendo, teoricamente, dois estados soberanos distintos.


Foi o tio-tetravô de Elizabeth II, o Rei William IV (1830-1837), o último monarca britânico a envolver-se activa e descaradamente em assuntos de governação e a nomear um Primeiro-Ministro contrário à vontade da maioria parlamentar, numa época em que o Reino Unido já era uma monarquia parlamentar e constitucional (embora, em rigor, se deva para esta época usar mais o termo semi-constitucional, à semelhança do que ainda hoje são o Principado do Mónaco e o Principado do Liechtenstein). Foi também durante o reinado de William IV que o Acto de Reforma (1832) da lei eleitoral britânica, introduzido por John Russell, foi aprovado pelo Parlamento, dando início, nas palavras de Bertrand Russell, neto do promotor da legislação, ao “caminho rumo à Democracia". Por outro lado, foi em 1911 que foi levado a cabo o mais recente esvaziamento do poder aristocrático na política britânica quando foi aprovado, no início do reinado do avô de Elizabeth II, o Rei-Imperador George V, o Acto Parlamentar que outorgou na elegida Câmara dos Comuns a supremacia legislativa sobre a não elegida Câmara dos Lordes, minguando ainda mais, numa perspectiva mais indirecta, o poder do monarca sobre a vida política.


Em Janeiro de 1936, quando o Fascismo tinha atingido a sua idade de ouro a nível global e Elizabeth de York contava 9 anos de idade, George V faleceu, sendo sucedido por Edward VIII, o seu filho primogénito e o homem que iria abalar durante este ano com os alicerces da Monarquia Britânica. Se de um lado Edward VIII intervia verbalmente na vida política e procurava manipular, o melhor que podia, a cena parlamentar - trazendo à luz do dia antigos esqueletos da História da Inglaterra que tinham ficado trancados no armário -, por outro lado Edward VIII pretendia ir contra os próprios dogmas da Igreja Cristã Anglicana (da qual, todavia, ele era o líder máximo enquanto Rei) procurando casar com uma notória socialite norte-americana que já se tinha divorciado uma vez e procurava divorciar-se uma segunda. Seria um ultraje para o Clero britânico e para o Parlamento que o Rei tivesse como Rainha consorte uma mulher divorciada. Uma impossibilidade teológica, inclusive, para a Igreja Anglicana. No braço de ferro entre a tradição monárquica e religiosa e a vontade de um monarca constitucional, Edward VIII cedeu às pressões clericais e religiosas - apesar do seu carisma inegável e da sua popularidade - e optou por abdicar a favor do seu irmão mais novo Albert, Duque de York, a Dezembro do mesmo ano em que tinha assumido o trono. Foi quando o seu pai se tornou o improvável Rei-Imperador George VI que Elizabeth, de forma igualmente improvável, se tornou herdeira da Coroa. Edward VIII e Wallis Simpson receberam o Ducado de York após finalmente celebrarem o matrimónio e, desde então, tornaram-se personae non gratae para a realeza britânica. Ainda hoje se debate, também, se as proximidades de Edward VIII a Hitler e ao movimento fascista internacional pesaram na sua pressionada abdicação. Sabe-se que já durante a 2ª Guerra Mundial, Edward visitou Hitler numa das suas bases nos Alpes e passou em revista um regimento nazi que lá estava estacionado. Sabe-se também que o projecto nazi para a Grã-Bretanha, após a sua conquista, seria fazer do Reino Unido um estado satélite, depondo George VI e toda a sua família e entronizando Edward VIII que na altura era apenas Duque de York, como eu já havia feito alusão. Sabe-se também que a Família Real britânica, indubitavelmente, tomou conhecimento disto há várias décadas. Enfim, a Inglaterra nunca chegou a cair, a Monarquia Britânica conseguiu salvar-se de toda a turbulência, o Duque de York viveu o resto da vida de uma robusta pensão e George VI acabaria por falecer em 1952, com 56 anos, sofrendo de várias maleitas incluindo cancro do pulmão. Os anos da guerra tinham pesado na saúde do monarca, derivado de imenso stress devido ao futuro da nação e à própria segurança física da sua família, e o seu intenso tabagismo tinha sido decisivo a trazer uma morte prematura ao pai de Elizabeth II.


Elizabeth II tomou conhecimento da morte do pai, e de que ela era a nova monarca soberana, enquanto estava no Quénia com o seu marido, o Príncipe Philip, tendo a Austrália como destino. Obviamente, quaisquer perspectivas de continuação do périplo foram descartadas e a Rainha Elizabeth II retornou à Inglaterra, com 25 anos de idade, e a sua coroação viria a ter lugar mais de um anos depois, na Abadia de Westminster, a mesma onde o Rei Conquistador William I (1066-1087) foi coroado e eventualmente sepultado. O que se seguiu foi o mais longo reinado de um monarca britânico, o mais longo 'mandato' de uma estadista e o segundo mais longo reinado de um monarca totalmente soberano da História Universal. Só Louis XIV de França (1643-1715) supera o reinado de Elizabeth II em longevidade - e sublinho que para estes recordes não estou a contar com monarcas vassalos, como exemplo, príncipes autónomos do Sacro Império Romano-Germânico ou monarcas africanos sob domínio colonial.


O que constará deste texto não será um relato sucinto do reinado de Elizabeth II nem uma análise clínica dos prós e dos contras das contribuições da falecida monarca enquanto estadista. Quanto a mim, o que mais importa agora discutir é: 1) o legado deixado por Elizabeth II; 2) qual o futuro do Reino Unido agora que o primogénito da Rainha foi proclamado Rei Charles III. Primeiro o ponto um.


O reinado de Elizabeth II é um reinado pós-Segunda Guerra. A monarca viveu os enormes desafios do mais calamitoso conflito da História - tendo servido, inclusive, o Exército Britânico como enfermeira de guerra e mecânica/condutora de carros militares - mas ainda não detinha a Coroa. O seu reinado atravessou: toda a Guerra Fria; a Queda do Muro; a fragmentação da Jugoslávia; duas invasões do Iraque (das quais o seu estado fez parte); o conflito Israel-Palestina; e o alvor da Guerra Russo-Ucraniana. O seu reinado atravessou também: todo o espaço de tempo que englobou o nascimento da televisão, primeiro a preto e branco e depois a cores; o nascimento do Rock e a Contracultura; o início da era espacial e a chegada do primeiro ser humano à Lua; a proliferação dos álbuns de música popular; a emergência dos computadores, dos telemóveis e a criação da World Wide Web. O seu reinado viu: o desmantelamento progressivo do Império Britânico e a Commonwealth, de certa forma, a ocupar esse lugar (Elizabeth II, contudo, nunca chegou a ter o título de Rainha-Imperatriz, tendo sido o seu antecessor George VI o último a detê-lo, até a Índia ter alcançado a soberania em 1947); a emergência da Comunidade Europeia e a sua transformação numa entidade política sem precedentes na História Universal, a União Europeia (embora o seu Reino tenha sempre estado com um pé dentro e outro fora, até que saiu definitivamente); os primórdios da Organização das Nações Unidas (da qual o seu Reino é membro permanente do Conselho de Segurança) e a sua consolidação como fórum mundial da diplomacia, da união dos povos e da procrastinação internacional; a afirmação do armamento nuclear como ameaça global (e o seu Reino é um estado nuclear); a ascensão da República Popular da China como candidata a superpotência. Pelo seu reinado passaram 7 papas da Igreja Católica - de Pio XII (1939-1958) a Francisco I (2013-) -, 14 presidentes dos EUA - de Harry Truman (1945-1953) a Joe Biden (2021-) - 10 presidentes da República Francesa - de Vincent Auriol (1947-1954), ainda na época da antiga constituição, a Emmanuel Macron (2017-) -, 3 reis da Noruega - de Haakon VII (1905-1957) a Harald V (1991-) -, 3 imperadores do Japão - de Hirohito (1926-1989) a Naruhito (2019-) -, 12 primeiros-ministros do Canadá - de Louis St. Laurent (1948-1957) a Justin Trudeau (2015-) -, 19 chefes do Governo de Portugal - de Oliveira Salazar (1932-1968), ainda na época ditatorial, a António Costa (2015-). A primeira vez que a Rainha Elizabeth II reuniu com um primeiro-ministro do Reino Unido foi com Winston Churchill, na sua segunda vez enquanto líder do executivo (1951-1955), e a última vez foi numa irregular reunião no Castelo de Balmoral, na Escócia, onde havia de falecer dois dias depois, indigitando Liz Truss para formar um governo em seu nome depois de Boris Johnson ter apresentado a demissão a Elizabeth II. E ao longo destes 70 anos foram 15 primeiros/as-ministros/as diferentes, ora do Partido Conservador, ora do Partido Trabalhista.


Durante boa parte do seu reinado, Elizabeth II foi a estadista mais consensual e respeitada em todo mundo, em parte devido às exímias capacidades dos britânicos de promoverem a sua imagem e de venderem a sua diplomacia, mas também devido ao elevado grau de sobriedade e dignidade institucional que a própria Elizabeth II sempre conseguiu emanar, para não falar da natural influência política e diplomática do Reino Unido e do facto de ainda no início do século passado este estado ter sido a superpotência mundial. Evidentemente, sendo que a Rainha nunca exerceu nenhum tipo de poder político real - excluindo as suas prerrogativas cerimoniais e as suas funções enquanto matriarca da Casa Windsor -, a sua influência provinha do prestígio que ela foi criando e da conservação de um certo mistério e de uma certa mística envolvendo a realeza britânica. Será oportuno sublinhar também, no âmbito económico, que todos os anos a realeza produziu centenas de milhões de dólares em turismo - um facto que confirma a popularidade da Monarquia Britânica, em casa e por todo o mundo, e um elemento de utilidade da monarquia usado regularmente por monárquicos para justificarem a continuidade do regime político. No plano das relações internacionais, a Coroa do Reino Unido tem também servido interesses britânicos concretos no quadro da Commonwealth of Nations, enquanto líder diplomática da instituição - um suave exemplo de imperialismo do Século XXI, embora este seja mais 'democrático' do que outros, afinal de contas, ninguém são da cabeça poderá afirmar que as relações que hoje decorrem entre o Reino Unido e estados como o Canadá, a Austrália ou a Nova Zelândia são uma dinâmica entre metrópole e colónias. O mesmo serve para a relação que hoje existe entre o Reino Unido e a África do Sul, por exemplo. Hoje, o fenómeno imperialista tem outras nações mais jovens como protagonistas, e uma outra que é das mais antigas nações do mundo...


Claro que o oportunismo, por ocasião da morte de alguém, é quase sempre uma constante humana, e para aqueles que julgam que estou a falar dos corajosos republicanos que saíram às ruas para protestarem contra a monarquia, desenganem-se… embora também tenhamos tempo de chegar a este assunto, espero eu. O oportunismo de que falo vem do ocidente do Atlântico, de gente 'comum', gente que julga que é mais esperta que os outros. Ainda o corpo de Elizabeth II estava morno, não tardou que viessem os auto-proclamados liberais do Twitter, cidadãos e cidadãs dos Estados Unidos da América - segundo Simon Jenkins, a maior de todas as criações dos britânicos -, falar da injustiça da monarquia, do anacronismo do regime político britânico, dos crimes perpetuados pela realeza, do regime tirânico que a falecida rainha protegeu e encobriu, das colónias que já não o são, e de mais não sei quantas coisas, algumas correctas e outras não tanto, à semelhança das queixas que enumerei há pouco. Para quem estiver a ler, recordo que o autor que isto escreve é um convicto republicano… contudo, um republicano que não alinha em exercícios de hipocrisia e de enaltecimento nacionalista à custa da morte de estadistas estrangeiros, que é isso que a realeza norte-americana (as celebridades da cultura pop) fez com grande deleite. 


Antes de um liberal dos EUA acusar o passado imperialista do Reino Unido, olhe para a própria casa e critique o imperialismo do seu país - um imperialismo que não sucedeu no século passado, nem há 300 anos, mas sucede neste preciso momento, quer seja na América Latina, em África ou na Ásia Ocidental. Antes de um liberal norte-americano dissertar sobre as desigualdades raciais pretéritas do Império Britânico, reflicta em como efectivamente resolver a contínua crise racial dos EUA. Antes de um liberal dos EUA falar da desgraça que é a ocupação das Ilhas Falkland pelo Reino Unido, atire primeiro pedras às várias ocasiões em que, só no presente século, os EUA ocuparam uma nação estrangeira e agiram à revelia do Direito Internacional, algumas vezes, inclusive, em parceria com o próprio Reino Unido. Antes de um liberal norte-americano indignar-se com o passado de opressão de pessoas LGBTQ pelo Estado Britânico, contemple o facto de a Constituição dos EUA - isto sim um hino às coisas anacrónicas - não ter previsto nenhum artigo que confira proteção legal e constitucional a pessoas que venham a ser alvo de discriminação (seja física, verbal ou psicológica), no local de trabalho, na rua ou em casa, por motivo da sua orientação sexual ou identidade de género, ou até mesmo, já agora, por motivos étnicos. Antes de um liberal norte-americano apoucar o regime político do Reino Unido, contemple a falta de pluralidade política que tem em casa e a forma altamente indirecta como é eleito o Chefe de Estado e Governo - o Presidente, que não raras vezes é mais rei e faz mais vida de rei do que muitos reis. Um argumento contrário poderia referir que os liberais norte-americanos que criticam o regime britânico são os mesmos que têm um olhar altamente crítico para o status quo nos EUA, mas afirmar isso seria promover uma falsidade. Todos esses liberais que saíram a terreiro - mouthpieces do Movimento Woke, coisa saloia que dá má reputação aos movimentos de libertação social - são a nata da nata do establishment americano. São a mainstream. São os eleitores de Joe Biden e os promotores da ideia troglodita, muito à semelhança dos seus rivais conservadores e reaccionários, de que os EUA são "the greatest nation on Earth". São também gente oportunista que julga que, por tecer mui categóricas críticas à Coroa Britânica, voltam a fazer de novo o 4 de Julho. Tenham juízo. Da mesma forma como na Bíblia o homem foi criado à imagem de Deus, também os EUA, por ironia da vida, foram criados à imagem da sociedade britânica e do seu sistema político. Até o modelo legislativo é bicameral e uninominal. 


Para aqueles que defendem a continuidade da Monarquia Britânica, certamente Elizabeth II será sempre o elemento pessoal de legitimação, dignidade, prestígio e respeito, e esta realidade faz-se notar, precisamente, nas incertezas que se materializaram automaticamente em torno do futuro da Coroa agora que foi posto um novo monarca no trono. Há um novo rei, mas os monárquicos britânicos e demais admiradores da simbologia realista da Inglaterra por esse mundo fora sentem-se órfãos com o falecimento da nonagenária monarca. Este será talvez o exemplo mais palpável da estabilidade que o seu reinado significava para muitos milhões de pessoas. Todavia, há outros legados que podem ser associados à sua vida.


Se é verdade que o longo percurso do reinado de Elizabeth II viu o Reino Unido perder preponderância militar, política e económica na cena global - apesar de ainda conservar muita -, também é verdade que neste percurso o Reino Unido se cimentou como um dos estados mais abertos, coesos, livres e socialmente prósperos do mundo. Foi no decurso deste reinado que se ergueu o moderno Estado de Providência britânico - e que entretanto também tem sido vítima de muitos ataques por decisores políticos -, homens e mulheres homossexuais e bissexuais deixaram de ser obrigadas a viver uma vida oculta, sob risco de pena criminal, e passaram a viver numa das sociedade mais diversas e livres do mundo, as tensões entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte foram acalmadas e relativamente estabilizadas, e Londres tornou-se numa metrópole cosmopolita e multicultural. Foi também durante este reinado que a sociedade britânica produziu alguma da melhor música e literatura da sua História e que a Coroa se abriu nas suas actividades diárias para com o mundo, tornando-se uma monarquia modernizada e mantendo em simultâneo um considerável grau de tradição. Foi também durante este reinado que o Império Britânico foi desmantelado, culminando com a cedência de Hong Kong à China (1997). Não foi um reinado que viu a incrementação e evolução do poderio colonial mas sim, precisamente, o seu oposto, não obstante outras soluções terem sido inventadas, nomeadamente a Commonwealth com a presidência do/a monarca britânico/a.


Da minha parte, agradeço a Elizabeth II, enquanto Chefe de Estado, por ter silenciado e refreado a tentativa do círculo do Lord Mountbatten para derrubar, mediante um golpe militar - externo às instituições políticas - o governo socialista de Harold Wilson em plena Contracultura. O seu aval e apoio político (que de facto foi procurado) teriam valido tudo para esse golpe, mas a sua acção, a favor da vontade democrática e do Parlamento, impediram que uma enorme infâmia tivesse sido cometida. Nem todos os monarcas constitucionais teriam agido desta forma. Também foi durante o seu reinado que, em 2017, mais de 50 mil homens, entre eles Oscar Wilde e Alan Turing, receberam um perdão real das condenações por sodomia, marcando um oficial distanciamento da Monarquia Britânica desse passado lúgubre. Claro que o que estas pessoas precisavam não era de um perdão, pois não foram eles que erraram mais sim o Estado Britânico na sua robusta perseguição à homossexualidade masculina que remontou, pelo menos, ao reinado de Henry VIII (1509-1547). O que estas pessoas precisavam era de um pedido de desculpas. Em todo caso, nem Wilde, nem Turing, nem tantos outros anónimos estão vivos para serem recompensados pela injustiça a que foram submetidos.


No que concerne ao futuro do Reino Unido, apesar da contínua estabilidade que muitos comentadores políticos querem fazer transparecer, este mostra-se muito incerto. A popularidade e a dignidade do Rei Charles III não se equiparam às de sua mãe e antecessora. Agora que o mais forte alicerce da Coroa Britânica caiu, velhas crises têm hipótese de se erguer de novo para pôr em causa a hegemonia da Inglaterra naquela região insular da Europa. O movimento independentista e republicano da Escócia poderá ganhar nova vida, e pressão eficaz para que seja autorizado um novo referendo, sobre a soberania escocesa, poderá chegar a bom porto. Da minha parte, espero que chegue. Há muito que está adiado o direito à auto-determinação do povo escocês - assim como o do povo catalão -, e também a vontade clara da maioria da Escócia de permanecer integrada na União Europeia é razão mais que suficiente para que se volte a convocar um referendo vinculativo. Também os movimentos de unificação republicana da Irlanda poderão ganhar nova força. Há muitos séculos que o povo irlandês anseia por um Estado Irlandês uno e soberano, e esse dia chegará. Na Câmara dos Comuns do Parlamento do Reino Unido, o Partido Nacional Escocês - um partido republicano e social-democratico (Centro-esquerda) - detém 45 dos 59 lugares elegíveis na Escócia, sendo também o partido governante da Escócia, e sendo, em termos de militância, o terceiro maior partido do Reino Unido, superado somente pelo Partido Conservador e pelo Partido Trabalhista. O Sinn Féin - partido socialista e republicano que concorre a eleições na República da Irlanda e nos círculos eleitorais norte-irlandeses do Reino Unido - detém 36 dos 160 lugares do Dáil Éireann e 4 dos 60 lugares do Seanad Éireann, as duas câmaras do Parlamento da República da Irlanda. Na Assembleia da Irlanda do Norte detém 27 dos 90 lugares. Na Câmara dos Comuns do Reino Unido, 7 dos 18 lugares elegíveis na Irlanda do Norte são detidos pelo Sinn Féin, embora, neste caso em particular, este partido decida, em todas as legislaturas, não ocupar os lugares que conquista nas eleições gerais do Reino Unido, numa postura de protesto e boicote ao imperialismo britânico sobre parte da região de Ulster (uma das quatro regiões históricas da Ilha Irlandesa). Quanto aos cidadãos e cidadãs da República da Irlanda e seus respectivos decisores políticos, embora os ânimos hoje estejam apaziguados, há uma vontade profunda no âmago de qualquer irlandês/a orgulhoso/a de que o Estado-Nação recupere a sua unidade política em nome da identidade e prosperidade do povo irlandês e da defesa da cultura irlandesa.


Na eventualidade de estes fenómenos separatistas no Reino Unido se concretizarem - a Escócia proclamar uma república e a Irlanda do Norte juntar-se à República da Irlanda -, a Coroa da Inglaterra terá os seus dias contados, e então também surgirá a República Inglesa. Quanto a Gales, é difícil preconizar o futuro desta nação. Ainda que ao longo do tempo histórico se tenham assinalado movimentos republicanos galeses (ainda que tenham sido menos enfáticos que aqueles verificados na Escócia ou na Irlanda), não é provável que Gales alinhe por um futuro separado da Inglaterra. Desde 1283, durante o reinado de Edward Longshanks (1272-1307), que Gales, mediante conquista militar, está integrado como um principado autónomo sob soberania inglesa, tendo sido no Século XVI, durante o reinado de Henry VIII, que foi promulgada legislação que unificou os sistemas administrativo e judicial do Principado de Gales com o Reino da Inglaterra, consolidando, enfim, um estado unitário albergando as duas nacionalidades mas, obviamente, sob hegemonia inglesa. Desde então, Inglaterra e Gales, apesar dos justos protestos dos galeses, têm sido confundidos como a mesma nação, apesar das origens identitárias distintas: os galeses têm, sobretudo, ascendência celta, à semelhança dos irlandeses e dos escoceses, enquanto que o caldo identitário inglês é mais heterogéneo. Nos dias correntes, Inglaterra não tem razões para se preocupar com a separação galesa, mesmo com o factor de instabilidade que surgiu com o falecimento de Elizabeth II. Se dúvidas houver, basta, uma vez mais, contemplar o quadro político em Gales. Dos 40 lugares elegíveis em Gales para a Câmara dos Comuns do Reino Unido, apenas 4 são detidos pelo Plaid Cymru - um partido republicano e socialista galês -, sendo que os demais lugares estão repartidos pelo Partido Trabalhista e pelo Partido Conservador. É notório, portanto, que a larga maioria do povo galês manifesta-se satisfeita com a integração britânica, tendo havido também uma maioria do povo gales a ter votado no abandono da União Europeia aquando do referendo de há 6 anos.


Da mesma forma que houve vozes que se ergueram contra um suposto legado negro deixado pela falecida Rainha da Inglaterra, exagerando as conjunturas e transportando para os dias presentes realidades que foram de outrora, quando Elizabeth II ainda não era monarca, também houve aqueles que exageraram as suas reacções de forma inversa. Apesar da Monarquia Britânica ser uma das mais coesas instituições aristocráticas do mundo, há quem não se contente com a permanência da Coroa, do trono, da Câmara dos Lordes e de um infinito número de venerações a um modelo político que, em abono da verdade, já devia estar descontinuado e é efectivamente anacrónico. São os independentistas da Escócia, da Irlanda, de Gales, e são os ingleses que desejam todos os dias que nasça a República Inglesa, ou a República Britânica. São estes que, em primeiro lugar, têm idoneidade para erguer a sua voz contra a Monarquia Britânica. Em solidariedade para com estas vozes erguem-se então as vozes internacionais que desejam o fim preferencialmente pacífico de todas as monarquias, vozes essas às quais em me junto, não me juntando, todavia, às vozes de oportunistas da qualidade daqueles que já tive hipótese de enumerar há alguns parágrafos. Não me junto às vozes de alegados republicanos que nada mais fizeram do que explorar o falecimento de uma Chefe de Estado, soberana sobre um estado livre, para ridicularizar a sociedade europeia e enaltecer pateticamente a suposta superioridade do regime político da sua nação. Há muitas décadas que o Reino Unido, sendo uma monarquia, é um estado mais democrático que os EUA - um embuste de república democrática. Quanto aos fiéis do culto de personalidade da realeza britânica, que acharam horrorosas as manifestações públicas de cidadãos britânicos contra a Monarquia, talvez é hora de escutar estes protestos e compreender-se a questão de fundo que deve ser abordada: fará sentido dar continuidade a um regime político que investe cargos políticos em pessoas somente devido à sua hereditariedade, sejam estes monarcas ou membros da Câmara dos Lordes? Por mais esplendorosa e aparentemente magnânima que seja a pompa e circunstância em torno da realeza, despindo a monarquia de tudo isto, é isso que factualmente tal regime político representa. Fará sentido promover o esplendor e a ostentação extrema como símbolos basilares da unidade do Estado? Para mim não. É por estas principais razões que eu defendo o regime republicano, não obstante conseguir compreender a psicologia daqueles que defendem um regime idêntico ao do Reino Unido - afinal, há muito tempo, quando ainda não conseguia compreender determinadas coisas que hoje são cruciais para a minha pessoa, eu fui monárquico. Terei sido, provavelmente, um jovem e estranho caso de um monárquico agnóstico.


Como o teor deste texto (que já vai demasiado longo) foi capaz de transparecer, não é preciso ser-se monárquico para mostrar respeito perante uma monarca, nem é obrigatório insultar a memória de uma monarca porque se é republicano. Eu, por exemplo, considero que um dos melhores estadistas portugueses dos últimos 200 anos foi um monarca: o Rei Pedro V. E, enquanto republicano, de nenhuma forma fico ofendido pela presença do Presidente da República no funeral de estado da Rainha Elizabeth II. Que corra melhor que a estadia do Professor Marcelo nas cerimónias do bicentenário de independência do Brasil - há muito que não via a minha República ser tão enxovalhada e Chefe de Estado com sorriso de orelha a orelha. Mais valia ter antecipado o circo e não ter metido lá os pés… e a ver vamos quando é que o desgraçado coração do Rei Pedro IV regressa ao sítio de onde nunca devia ter saído. Também não fico ofendido com os três dias de luto nacional decretado pelo Governo da República… embora eu nunca decretasse tal coisa se dependesse de mim, mas enfim, não é o fim do mundo nem é nada daquilo que representantes do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda afirmaram. Se estivessem mais preocupados em obliterar os reaccionários do Parlamento e em fazer reformas internas nos respectivos partidos, do que reagir a coisas meramente triviais e simbólicas, talvez não estivessem na desgraça em que estão metidos.


Falece uma rainha e um novo rei assume funções. Por mais quanto tempo será assim, não sei dizer. Sei que termina no dia em que as consciências britânicas perderem de vista o sentido de todo este aglomerado de cerimónias e vassalagens modernizadas. Quanto aos portugueses e portuguesas que tiraram um minuto do seu tempo de vida para lançar impropérios não provocados contra a memória da falecida monarca, gostava que também fizessem uso dessa energia para a direccionar contra o Rei de Espanha. Isso sim iria deixar-me satisfeito.

Que se dê o capítulo como terminado e que comece o próximo. O funeral será em menos de dois dias e a coroação na Abadia de Westminster ainda está por decidir. Primeiro temos de ver se Charles III consegue chegar lá. O seu tio-avô não conseguiu.


Sábado, 30 de Frutidor CCXXX

domingo, 14 de agosto de 2022

Um Crime Anunciado

Anteontem, um crime que tinha sido anunciado 33 anos antes foi efectuado e, com azar, pode atingir o seu hediondo objectivo derradeiro: o assassinato de um escritor por fazer uso do seu universal direito de se exprimir livremente. Sir Salman Rushdie, autor anglo-americano de origem indiana e muçulmana, 75 anos de idade, é um dos maiores embaixadores das letras inglesas das últimas décadas e, amiúde, por motivos não directamente relacionados com o conteúdo da sua obra literária, um dos mais famosos escritores vivos, tendo sido também professor universitário a título de convidado. Sobre a sua bibliografia sei muito pouco. Tanto quanto o meu conhecimento alcança, o palco da acção dos seus romances situa-se geralmente na Índia e as suas estórias estão ligadas à corrente do realismo mágico. Com excepção da Fátua que foi lançada - e que é um dos assuntos primeiros deste texto -, o que conheço concretamente sobre Rushdie resume-se a debates e intervenções, sobre selectos temas, que ele tem feito ao longo das duas últimas décadas (sei, por exemplo, que o autor é ateu), e sei que ele era amigo de duas grandes referências intelectuais para a minha pessoa: Christopher Hitchens e José Saramago.


Em 1988, Salman Rushdie publicou um romance, Versículos Satânicos. O livro foi pessimamente recebido pela comunidade islâmica internacional, que sempre que algo não ortodoxo é dito sobre o seu profeta, levanta-se numa gritaria imensa e dedica-se a um desporto que os fanáticos adoram: a queima de livros. No imediato foi isso que aconteceu com a nova obra de Rushdie. Desde Londres a Islamabad, fogueiras públicas foram ateadas, com os Versículos Satânicos como combustível. A oeste da Península Arábica, o romance foi bem recebido pelo público e pelos críticos literários. No Reino Unido, onde o autor residia na altura, a classe política dividiu-se em condenações e elogios… e não, esta não foi uma previsível divisão de Esquerda e Direita. Elogios a Rushdie houve-os em ambas as alas, por motivos variados, assim como as condenações. Entretanto, na capital da República Islâmica do Irão, o Ayatollah Khomeini tinha emitido uma Fátua - decreto absoluto do Supremo Líder do Irão sem hipótese de revogação, a não ser pelo próprio Supremo Líder -, ordenando todos os muçulmanos à necessidade moral de assassinar Salman Rushdie e todos aqueles que estivessem envolvidos com a publicação da obra. Anos mais tarde, o seu sucessor e actual Supremo Líder, Ali Khamenei, reforçaria a necessidade virtuosa da Fátua oferecendo uma recompensa de 3 milhões de dólares à ovelha cega que cometesse o homicídio… em nome de uma alegada religião da paz. Desde então, foram diversas as tentativas de atentado à vida de Rushdie, a ponto da polícia britânica ter sido destacada para assegurar a integridade física do escritor, e o então tradutor do livro para japonês, Hitoshi Igarashi, foi assassinado em 1991. No Reino Unido, perante a Fátua de Khomeini, vários deputados do Partido Conservador e do Partido Trabalhista optaram por não defender o direito de liberdade de expressão de Rushdie e antes preferiram juntar-se ao lamaçal de condenações. O conservador Norman Tebbit rotulou Rushdie como um "notável vilão" (uma desforra, certamente, das críticas que Rushdie já havia articulado no passado sobre a fé cristã), e o deputado trabalhista Keith Vaz apelou à censura dos Versículos Satânicos. Desde a Fátua e dos Versículos Satânicos que Rushdie é considerado um escritor controverso (apesar de eu considerar que, enquanto ateu e crítico da religião, é um pensador bastante moderado e contido), constantemente ameaçado de morte por fundamentalistas islâmicos e pelo Estado Iraniano, não obstante também ter sido defendido em praça pública por admiradores e colegas escritores, entre os quais os já referidos Hitchens e Saramago - estes sim, muito mais radicais nas críticas que expressaram relativamente à religião e, em especial, às religiões abraâmicas. Felizmente, Saramago e Hitchens faleceram sem alguma vez terem sido vítimas de um ataque motivado por ódio religioso. Salman Rushdie não teve essa sorte.


Foi há dois dias, no Estado de New York, EUA, pouco antes de dar uma palestra no Instituto Chautauqua, que Salman Rushdie foi violentamente esfaqueado por um desgraçado de 24 anos chamado Hadi Matar. Rushdie foi golpeado em sítios tão diversos como o pescoço, o abdómen e uma mão, tendo sofrido danos consideráveis no fígado. O agente literário de Rushdie tem adiantado que o escritor corre o risco de perder um olho. Imagino eu que alguns golpes terão sido desferidos no rosto. Felizmente, a criatura foi neutralizada por atendentes do evento e detido pela polícia. Oficialmente, ainda não se conhecem as motivações de Hadi Matar para tentar matar tão sereno escritor, já idoso, todavia, não é necessário ser um génio para deduzir as suas razões se tivermos em conta que este indivíduo professa a corrente xiita da fé islâmica, aquela que venera o Ayatollah do Irão como líder religioso máximo do Islamismo. 


Rushdie, no hospital, já acordou. A Fátua quase foi cumprida, mas o escritor ainda respira e o inimigo da liberdade vai para o cárcere. Mas este que vai para a prisão é apenas um soldado raso, manipulado e torturado por uma vida de medos e ilusões e promessas de uma esplêndida vida depois de esta que vivemos nesta Terra. Os seus mestres tiranos, negando a liberdade aos seus súbditos, gozam-na e quase abririam uma garrafa de champanhe não tivesse Rushdie sobrevivido, e não fossem eles abstencionistas do álcool como manda o Alcorão. Pelo menos é o que eles garantem. Acredite quem quiser.


As sociedades seculares têm um grande problema em mãos. É um problema antigo, mas que se vai mutando com o passar dos tempos, com a transformação de circunstâncias, pensamentos e conjunturas. O que fazer com as religiões que usam da violência e/ou do discurso de ódio para fazer avançar as suas agendas? O que fazer com determinadas igrejas cristãs manhosas que escravizam mentalmente os seus fiéis? O que fazer com as mesquitas fundamentalistas que continuam a funcionar em culturas que rejeitam os mais basilares direitos humanos? Temo que, nesta sociedade de tolerância que felizmente se vai fortalecendo, pouco a pouco, a liberdade religiosa está a ser sobreposta à liberdade de expressão. A partir do momento que criticamos um escritor, por criticar uma religião, apelando a que as pessoas não ofendam esta ou aquela religião, estamos a oferecer santuário seguro às vozes odiosas que apelam à eliminação desse escritor que lhes ofereceu crítica. É um paradoxo ideológico do Século XXI: muitos movimentos progressistas, em nome da defesa da liberdade e dos direitos humanos, optam por tentar calar críticas à religião - ainda que uma crítica de uma religião não implique nenhum comprometimento da liberdade religiosa, da mesma forma que criticar um partido político não implica um ataque à liberdade política -, mesmo que essas práticas e dogmas religiosas/os criticadas/os representem uma ofensa a esses mesmos direitos humanos e liberdades que os movimentos progressistas dizem defender. Que direitos humanos e liberdades são esses, colocados em perigo por fundamentalistas cristãos e islâmicos? Direitos das mulheres. Direito à autodeterminação de género. Liberdade religiosa e separação entre Estado e Religião. Liberdade política. Direito à apostasia. Liberdades do foro sexual. A pessoa leitora deste texto poderá inquirir porque é que tantos liberais e progressistas alinharam neste paradoxo. Eu próprio me pergunto porque é que quando chega a hora de se defenderem causas feministas ou direitos LGBTQ, critica-se tudo o que de direito é justo criticar, com excepção das práticas de comunidades islâmicas e das políticas de regimes islâmicos ditatoriais. Um tiro no pé, quanto a mim. O filósofo esloveno Slavoj Zizek tem explicações interessantes para este esquisito fenómeno. Segundo Zizek, muitos progressistas elegem por não condenar grupos islâmicos pelas suas práticas e posições, temendo serem acusados de racismo, julgando estes que ser islâmico é pertencer a uma etnia. Ser islâmico não significa pertencer a uma etnia. Ninguém nasce crendo numa religião. Ser muçulmano, sim, é uma etnia, tal como Salman Rushdie… que não era islâmico. Se dúvidas houver do que escrevi, repare-se no seguinte: raro é o órgão de comunicação social que está a noticiar a religiosidade do atacante. Porquê? Não querem identificar uma pessoa islâmica como perpetuadora desse crime. É relevante essa informação? Muito. 33 anos antes um amo seu tinha emitido a tal Fátua. Temos aqui o resultado.


O esfaqueamento de Rushdie é mais que uma tentativa de homicídio. O ataque a Rushdie é um ataque a qualquer pessoa defensora do Espírito Crítico do indivíduo e é um ataque contra a sociedade secular. No que me concerne, o ataque físico a Rushdie é um ataque a toda a sociedade ateísta mundial. Aqui na Europa, e na República Portuguesa, toda a vigilância é pouca e o obscurantismo está sempre à espreita.


Nota final:

JK Rowling exprimiu solidariedade por Salman Rushdie na rede social Twitter. Um internauta, comentando a publicação, ameaçou Rowling dizendo que ela seria a próxima. Rowling já reportou o caso à polícia. Aqui será certamente um daqueles lunáticos que acusa JK de transfobia e que julga que ela é o Hitler renascido. Há gente doida para tudo. Há pessoas fascistas que nem sequer sonham que o são.


Domingo, 26 de Termidor CCXXX