domingo, 26 de julho de 2020

Como o Polvo Magenta e Laranja cercou o hemiciclo: Um Caso de Bloco Central

Não me tenho cansado de referir que vivemos hoje tempos esquisitos. Assim é, provavelmente, porque desde sempre os tempos foram esquisitos. O ser humano é, afinal, o mais esquisito de todos os mamíferos, e uma espécie esquisita só poderá forjar um meio esquisito. Deixando divagações extrapolativas de lado, e passando ao lado do coronavirus e todo o fenómeno bizarro e internacional que se materializou na sua órbita, a República Portuguesa prepara-se para entrar num novo estádio governativo, justificado com as alegadas necessidades de uma união nacional e uma estabilidade política, que procura neutralizar o progresso e opções políticas alternativas, secando o espectro político português exterior ao Centro: esse estádio já é por nós conhecido como Bloco Central. Aqueles que apregoam a charada de que a virtude está no centro, numa melodia monocórdica e repetitiva, como se se tratasse dum verso escrito num salmo bíblico ou como se a tivessem lido nos evangelhos, deviam agora juntar-se todos e festejar à grande e à francesa. Festejem, porque nem a Segunda Vinda vos daria tanta felicidade. Mandem o distanciamento social e a cautela às urtigas e festejem porque a vossa utopia política, por fim, está a chegar. 

O surto de Covid-19 tem servido para justificar todo o tipo de inconstitucionalidades e autoritarismos descarados, com o absoluto consentimento de boa parte da população (sobretudo urbana), e na Assembleia da República, apesar da notável resistência de isolados deputados de um partido e outro, os dois maiores partidos da República - e, não sendo por acaso, os únicos que até hoje já chefiaram um governo, se excluirmos as honrosas (terei escrito bem?) aparições raríssimas do CDS -, o PS e o PSD, iconoclastas do próprio nome partidário que carregam, decidiram que afinal o Chefe de Governo já não precisa de prestar muitas contas ao Parlamento democraticamente eleito que decide sobre a continuidade do seu governo. A partir de agora, o fastidioso ritual do Primeiro-Ministro António Costa se deslocar quinzenalmente até ao Parlamento para discutir os destinos da República com os deputados será uma mera trivialidade cumprida de dois em dois meses. Seis vezes por ano, portanto... tudo em nome do heróico trabalho do Primeiro-Ministro, claro, porque o escrutínio parlamentar não interessa para nada. A vigilância do Poder Legislativo ao Poder Executivo não serve para nada, só para marcar passo, nisto pensaram os habilidosos vilões mefistofélicos que permitiram que uma desgraça destas fosse aprovada. 

Entretanto, enquanto o PS e o PSD procuram reunir uma massa apoiante suficientemente grande para tomarem a esmagadora maioria dos lugares no Parlamento, para as próximas Eleições Legislativas, o Presidente da República, que serviria, por exemplo, para intervir politicamente em alturas como esta, guarda silêncio, e assim se vai conservar, porque no grande tabuleiro de xadrez, do lado do Bloco Central, Marcelo é o rei. Se estão tão ansiosos para agilizar procedimentos e poupar trabalho aos Chefes, suspendam também as Eleições Presidenciais do próximo ano, se tiverem a lata bastante para o fazer. No meio de tanta ilegalidade, esta seria só mais uma. Um lapso de tempo tão vasto entre dois encontros dum chefe de governo e o órgão legislativo do respectivo estado não se verifica em nenhuma outra nação com um sistema de ambição democrática. Eu costumo defender a tese de que Portugal detém uma das democracias mais avançadas em todo o mundo - mantenho esta tese e não há a mínima motivação patriótica ou nacionalista por detrás dela -, todavia, encaminharmos a relação de poderes na nossa república para esta situação típica de um estado autoritarista só conduz a um único desfecho: o enfraquecimento dos aparelhos democráticos e a ascensão de soluções políticas que procurem explorar o actual estado de coisas e, em última instância, forjar uma nova ditadura das cinzas da outra já há 46 anos derrubada. Claro que, aquando da tomada desta decisão no Parlamento, a deputada Ana Catarina Mendes saltou em defesa do seu partido, do governo do seu partido e da triste resolução parlamentar, argumentando que tal procedimento não impedirá a vinda regular de outros ministros, para ouvirem e responderem aos deputados. Não querendo desprestigiar os ministros que compõem o Governo da República, a senhora Mendes, tapando o Sol com a peneira, tem o único intento de, com este argumentário, arremessar areia para os olhos dos cidadãos, garantindo-lhes cinicamente que tudo está bem e que nada mudou. O Primeiro-Ministro é o Chefe do Governo. É ele o principal responsável pelas decisões e acções do Executivo. Desta feita, é ele que tem que prestar contas à Nação, não são os seus subordinados que têm esse crucial dever. Rui Rio alegou que o Primeiro-Ministro precisa de trabalhar. Acontece que responder perante o Parlamento é uma base fundamental do seu trabalho, por mais inconveniente que tal lhes afigure.

António Costa e Rui Rio, querendo fugir juntos ao escrutínio público, engendraram este complô. Quem caiu na encenação altamente teatral no Parlamento, em que esgrimavam energicamente um com o outro, que afaste essa ilusão da sua mente, pois tudo isso faz parte de um plano maior para construir um Bloco Central que pretende, sob quaisquer meios necessários, eclipsar toda a Oposição. E se houver alguma boa intenção por parte desta manobra (reitero que não compro a historieta do António Costa ter de se ocupar ao máximo com a crise pandémica, pois nem em tempo de guerra [uma guerra a sério que jamais terei interesse em conhecer] um Parlamento deve reduzir ou desvirtuar os seus procedimentos democráticos), como por exemplo esvaziar a notoriedade de André Ventura até ao tutano, devo dizer que esse é o pior método a abordar. Tal só cria mais alento que ele aproveitará para a narrativa nojenta da sua pseudo-vitimização. São estas coisas que Ventura utiliza para reunir seguidores, e afastá-lo de qualquer contacto público com o Primeiro-Ministro não lhe vai retirar mediatismo. Mestres do oportunismo como ele, exímios em conseguir aparecer, com a sua ladainha irritante cheia de ódio e desprovida de conteúdo, estão já fundidos com o feixe de luz e dele não arredam pé.

Quanto aos partidos que têm dado cobertura ao actual governo para poder continuar - e escolho dar destaque ao Bloco de Esquerda - não chega afirmar apenas que esta decisão parlamentar é errada e anti-democrática, é importantíssimo que haja atitude e acção para enfrentar este plano. Aqui deixo escrito que, se até ao fim desta legislatura, o BE não chumbar um Orçamento de Estado ou apresentar uma moção de censura a este governo, então não tenho outra alternativa senão declará-lo como cúmplice das políticas do PS e do Bloco Central. Esqueçam a Geringonça, essa coisa nunca se quer chegou a existir! E se aos meus olhos forem cúmplices, com muita pena minha, não há propostas económicas, alternativas sociais ou óptimas intenções que vos possam valer.

Quem julga que estes são tempos de pontes, consensos e convergências, eu digo que tais coisas não podem ser consideradas como um caminho visto que os governantes nem se quer contemplam a possibilidade de diálogo sério e transparente. Pontes com gente deste nível é o mesmo que consentir à subordinação a um poder autoritário. É assim que o coronavirus tem sido explorado maquiavelicamente. Arbitrariedades de toda a sorte passam a ser válidas e o autoritarismo é justificado na máxima da segurança, como se uma crise de integridade continental ou mundial fosse eminente (e eles bem têm tentado convencer-nos disso). Faz-me lembrar a estratégia das forças políticas autoritaristas: numa manobra politicamente hipocondríaca, inventam um problema gravíssimo na sociedade e apresentam-se como os supremos defensores da segurança dos cidadãos em troca de muitas liberdades. Evidentemente que um Bloco Central não significa o advento do Fascismo, e se tiver de escolher entre isso ou o Chega, a aliança PS/PSD será a opção óbvia, mas, alcançado desta forma, o Bloco Central representa um grande défice democrático e a prova dos tempos endémicos que vivemos. E, entretanto, a Esquerda portuguesa vai-se afundando numa crise profunda sem ainda ter dado conta...