domingo, 8 de novembro de 2020

O Mundo Petrificou-se

Venho até aos meus leitores sem filtros. Não os quero. Não os suporto nos tempos que corremos. Talvez até a boa educação seja menos do que aquilo que é necessário, embora eu a tente conservar na retórica do texto que segue.

O mundo, e a nossa sociedade portuguesa, em particular, petrificou-se perante uma multitude de fenómenos, e poucos são os dedos que o Ser Humano tem ao seu dispor para os contar manualmente. É o Covid que é a maior ameaça ao mundo conhecido desde que Genghis Khan invadiu o Leste. É o Biden que veio ressuscitar a Democracia. É o Marcelo que está a um decreto de distância de ser coroado Rei de Portugal. É a União Nacional o único caminho possível para nos safar deste pandemónio. É o terrorismo religioso no coração da Europa que passou a ser um assunto terciário, atrás do Football e do Covid (claro). E quando o céu cair verdadeiramente em cima das nossas cabeças, haverá mamíferos muito sábios que perguntarão como chegámos a este ponto, sem se terem apercebido - ou talvez, mais provável, se façam de desentendidos - do caminho trilhado até esta encruzilhada... Pois bem, quiseram depositar no Governo, no Presidente da República e em instâncias estrangeiras, que nos são absolutamente estranhas, as chaves para resolver todos os problemas com os quais nos debatemos? Aí têm o resultado... ainda que ele não seja, por enquanto, evidente. Um qualquer leitor estreante deste blog poderá considerar que quem isto escreve é um nacionalista ferrenho. Pena que tal dedução esteja longe da verdade. Quem isto escreve é um europeu preocupado com a sua civilização e com o Progresso Histórico que já sabemos não ser imparável, infelizmente.

O mundo rejubila por um iletrado senil ser eleito Comandante das mais poderosas Forças Armadas que o mundo já conheceu, apenas por um outro doido ter sido corrido desse mesmo lugar... Que pensais? Que os EUA passarão a respeitar os assuntos internos dos Estados livres deste mundo? Que os EUA deixarão de sugar a Europa com mundos e fundos militares que não têm razão de ser? Que um Serviço Nacional de Saúde será erguido nessa nação? Que a laicidade daquela Constituição será, finalmente, respeitada? Que a palavra "Diplomacia" ganhará um renascido significado? Que a Casa Branca foi retirada aos maus e restituída aos bons? Se tudo isto for verdade, então talvez, ainda hoje, por volta das cinco da tarde, Jesus Cristo descerá à Terra para nos relatar que notícias chegam do Reino dos Céus.

Mudou o estilo. Mudou a retórica. Mudou a postura. Talvez até tenham mudado políticas ambientais aqui e políticas sociais acolá - e não julguem que será algo substancial - mas aquilo que é um dos problemas maiores dos EUA, e que afligem o resto do mundo por contágio, não será resolvido por esta Administração: falo de política económica e financeira que, penosamente, nos dias que correm, tem sido posta de lado nas discussões por muita gente esclarecida, inclusive pelo meu quadrante político.

Quanto ao Covid, aqui pela nossa República, ele tem sido pretexto para justificar as mais arbitrárias decisões a que temos assistido nos últimos anos. O Estado de Direito está a morrer. A Constituição já não serve para guiar a governação. Antes preferem estados de emergência que tornem possíveis medidas dantescas que, caso contrário, nunca poderiam impor num cenário constitucional... e entretanto, desde o início deste circo, mais de 90% das pessoas que morreram nesta Nação não tinham se quer coronavírus no seu organismo, embora, em honra do velho estilo demagógico, tenham decidido montar um especial Dia de Luto Nacional para essa minoria que padeceu de Covid (ou apenas com o vírus, pois não conhecemos, de facto, a distinção entre aqueles que falecem do vírus e aqueles que falecem com o vírus mas devido a circunstâncias que nada lhe dizem respeito) menorizando todas as outras mortes. Como será possível que os olhos da opinião pública se tenham fechado a esta realidade? Porque as pessoas, há vários meses, estão paralisadas pelo medo de morrer. A televisão não pára de jurar, a pés juntos, que esta é a mais grave pandemia desde a Gripe Pneumónica de há 100 anos, ignorando as inúmeras pandemias que, ao longo de décadas, têm inundado África, e ignorando o HIV que, até hoje, já provocou 30 vezes mais mortes que o coronavírus, muitas das quais, por acaso, foram em África. Sabe o leitor o que muitos dirão deste discurso (se é que o próprio leitor não tenha já essa cassete entranhada no sistema)? Uma retórica negacionista e perigosa, quase comparável ao mais vulgar racismo. Eu não estou minimamente preocupado com isso. Se me quiserem colar ao Bolsonaro e ao Trump, façam-no à vontade, pois tal só demonstrará a desgraça do vosso juízo. Aliás, até está na moda a Horseshoe Theory! "Os extremos tocam-se". A minha consciência permanece tranquila.

Entretanto, o nosso Chefe de Estado confunde-se com o Rei João V. Viu o leitor a entrevista do Presidente, na RTP, ao jornalista António José Teixeira? Pois, nem eu. Aquilo não foi uma entrevista. Na prática foi um monólogo e nenhum órgão de comunicação social se ergueu, em peso, perante aquela afronta. Mas ele lá segue todo sorrisos. No final de contas, ele sabe muito bem que nada lhe poderá tirar o segundo mandato, ainda que ele afirme que ainda não se decidiu quanto à candidatura para segundo mandato. Todos sabemos que a rotatividade do Presidente Marcelo vale para toda a gente excepto para ele, e quem não perceber esta referência, por favor, volte atrás no filme. E já que o Presidente da República está tão decidido em manter a unidade e a estabilidade - da mesma forma que ele afirmou que seria irresponsável chumbar o Orçamento de Estado (de forma subliminar, claro) passando por cima de toda e qualquer lógica da existência de um Parlamento - porque não suspender também as Eleições Presidenciais? Quanto a mim (ainda que isso não vá acontecer, espero) já estivemos mais longe desse cenário.

E afinal que é essa lenga-lenga da União Nacional ser o único caminho para resolver problemas nacionais? Estarão a afeiçoar-se aos princípios do Ventura? Terão esquecido que a Democracia também serve para criar sínteses a partir de pontos de vista muito diferentes e que a divisão de ideias também cria o Progresso? Ou a Democracia não se aplica a tempos de alegado aperto?

Quem isto escreve está farto das incongruências, omissões e contraditoriedades de muitos meses, e teme por esta República e por toda a Europa, que entretanto volta a ser atacada pelo fundamentalismo religioso do Islão. Cidadãos decapitados na via pública por motivo nenhum para além da barbaridade mais explícita. "Temos que ter atenção aos vários séculos de violência da Europa Cristã ante os países muçulmanos", afirmaram alguns. Claro que essas violências sucederam - e sucederam mutuamente -, todavia, tal não é justificação nem explicação para a violência a que temos assistido em França ou outras bem piores noutras partes do Mundo. A História não é um escudo de batalha que torne legítima a barbaridade. Todavia, apesar da barbaridade, este é agora um assunto menor comparado ao outro de gigante importância... o coronavírus, claro!

Até à vinda da vacina - e saber se a obrigam aos cidadãos ou não, e a que preço - vamos permanecer nesta encruzilhada infernal.

Quanto a mim, estou bem de saúde, obrigado, e não será, com certeza, graças a deus. Talvez um pouco mais cínico, mas, por vezes, os tempos fazem de um idealista um indivíduo desiludido, e por consequência um cínico, e também reconheço, contra mim próprio, que tal não é uma qualidade. Mas é aquilo que temos quando todas as hipóteses ao Hedonismo nos são compulsivamente barradas.

A quem leu isto do início ao fim peço desculpa pelo tom, mas quando aquilo que não tem sentido é apresentado como a mais fundamental razão, entendo que não deve haver fronteiras para a sua mais aguda crítica.

domingo, 26 de julho de 2020

Como o Polvo Magenta e Laranja cercou o hemiciclo: Um Caso de Bloco Central

Não me tenho cansado de referir que vivemos hoje tempos esquisitos. Assim é, provavelmente, porque desde sempre os tempos foram esquisitos. O ser humano é, afinal, o mais esquisito de todos os mamíferos, e uma espécie esquisita só poderá forjar um meio esquisito. Deixando divagações extrapolativas de lado, e passando ao lado do coronavirus e todo o fenómeno bizarro e internacional que se materializou na sua órbita, a República Portuguesa prepara-se para entrar num novo estádio governativo, justificado com as alegadas necessidades de uma união nacional e uma estabilidade política, que procura neutralizar o progresso e opções políticas alternativas, secando o espectro político português exterior ao Centro: esse estádio já é por nós conhecido como Bloco Central. Aqueles que apregoam a charada de que a virtude está no centro, numa melodia monocórdica e repetitiva, como se se tratasse dum verso escrito num salmo bíblico ou como se a tivessem lido nos evangelhos, deviam agora juntar-se todos e festejar à grande e à francesa. Festejem, porque nem a Segunda Vinda vos daria tanta felicidade. Mandem o distanciamento social e a cautela às urtigas e festejem porque a vossa utopia política, por fim, está a chegar. 

O surto de Covid-19 tem servido para justificar todo o tipo de inconstitucionalidades e autoritarismos descarados, com o absoluto consentimento de boa parte da população (sobretudo urbana), e na Assembleia da República, apesar da notável resistência de isolados deputados de um partido e outro, os dois maiores partidos da República - e, não sendo por acaso, os únicos que até hoje já chefiaram um governo, se excluirmos as honrosas (terei escrito bem?) aparições raríssimas do CDS -, o PS e o PSD, iconoclastas do próprio nome partidário que carregam, decidiram que afinal o Chefe de Governo já não precisa de prestar muitas contas ao Parlamento democraticamente eleito que decide sobre a continuidade do seu governo. A partir de agora, o fastidioso ritual do Primeiro-Ministro António Costa se deslocar quinzenalmente até ao Parlamento para discutir os destinos da República com os deputados será uma mera trivialidade cumprida de dois em dois meses. Seis vezes por ano, portanto... tudo em nome do heróico trabalho do Primeiro-Ministro, claro, porque o escrutínio parlamentar não interessa para nada. A vigilância do Poder Legislativo ao Poder Executivo não serve para nada, só para marcar passo, nisto pensaram os habilidosos vilões mefistofélicos que permitiram que uma desgraça destas fosse aprovada. 

Entretanto, enquanto o PS e o PSD procuram reunir uma massa apoiante suficientemente grande para tomarem a esmagadora maioria dos lugares no Parlamento, para as próximas Eleições Legislativas, o Presidente da República, que serviria, por exemplo, para intervir politicamente em alturas como esta, guarda silêncio, e assim se vai conservar, porque no grande tabuleiro de xadrez, do lado do Bloco Central, Marcelo é o rei. Se estão tão ansiosos para agilizar procedimentos e poupar trabalho aos Chefes, suspendam também as Eleições Presidenciais do próximo ano, se tiverem a lata bastante para o fazer. No meio de tanta ilegalidade, esta seria só mais uma. Um lapso de tempo tão vasto entre dois encontros dum chefe de governo e o órgão legislativo do respectivo estado não se verifica em nenhuma outra nação com um sistema de ambição democrática. Eu costumo defender a tese de que Portugal detém uma das democracias mais avançadas em todo o mundo - mantenho esta tese e não há a mínima motivação patriótica ou nacionalista por detrás dela -, todavia, encaminharmos a relação de poderes na nossa república para esta situação típica de um estado autoritarista só conduz a um único desfecho: o enfraquecimento dos aparelhos democráticos e a ascensão de soluções políticas que procurem explorar o actual estado de coisas e, em última instância, forjar uma nova ditadura das cinzas da outra já há 46 anos derrubada. Claro que, aquando da tomada desta decisão no Parlamento, a deputada Ana Catarina Mendes saltou em defesa do seu partido, do governo do seu partido e da triste resolução parlamentar, argumentando que tal procedimento não impedirá a vinda regular de outros ministros, para ouvirem e responderem aos deputados. Não querendo desprestigiar os ministros que compõem o Governo da República, a senhora Mendes, tapando o Sol com a peneira, tem o único intento de, com este argumentário, arremessar areia para os olhos dos cidadãos, garantindo-lhes cinicamente que tudo está bem e que nada mudou. O Primeiro-Ministro é o Chefe do Governo. É ele o principal responsável pelas decisões e acções do Executivo. Desta feita, é ele que tem que prestar contas à Nação, não são os seus subordinados que têm esse crucial dever. Rui Rio alegou que o Primeiro-Ministro precisa de trabalhar. Acontece que responder perante o Parlamento é uma base fundamental do seu trabalho, por mais inconveniente que tal lhes afigure.

António Costa e Rui Rio, querendo fugir juntos ao escrutínio público, engendraram este complô. Quem caiu na encenação altamente teatral no Parlamento, em que esgrimavam energicamente um com o outro, que afaste essa ilusão da sua mente, pois tudo isso faz parte de um plano maior para construir um Bloco Central que pretende, sob quaisquer meios necessários, eclipsar toda a Oposição. E se houver alguma boa intenção por parte desta manobra (reitero que não compro a historieta do António Costa ter de se ocupar ao máximo com a crise pandémica, pois nem em tempo de guerra [uma guerra a sério que jamais terei interesse em conhecer] um Parlamento deve reduzir ou desvirtuar os seus procedimentos democráticos), como por exemplo esvaziar a notoriedade de André Ventura até ao tutano, devo dizer que esse é o pior método a abordar. Tal só cria mais alento que ele aproveitará para a narrativa nojenta da sua pseudo-vitimização. São estas coisas que Ventura utiliza para reunir seguidores, e afastá-lo de qualquer contacto público com o Primeiro-Ministro não lhe vai retirar mediatismo. Mestres do oportunismo como ele, exímios em conseguir aparecer, com a sua ladainha irritante cheia de ódio e desprovida de conteúdo, estão já fundidos com o feixe de luz e dele não arredam pé.

Quanto aos partidos que têm dado cobertura ao actual governo para poder continuar - e escolho dar destaque ao Bloco de Esquerda - não chega afirmar apenas que esta decisão parlamentar é errada e anti-democrática, é importantíssimo que haja atitude e acção para enfrentar este plano. Aqui deixo escrito que, se até ao fim desta legislatura, o BE não chumbar um Orçamento de Estado ou apresentar uma moção de censura a este governo, então não tenho outra alternativa senão declará-lo como cúmplice das políticas do PS e do Bloco Central. Esqueçam a Geringonça, essa coisa nunca se quer chegou a existir! E se aos meus olhos forem cúmplices, com muita pena minha, não há propostas económicas, alternativas sociais ou óptimas intenções que vos possam valer.

Quem julga que estes são tempos de pontes, consensos e convergências, eu digo que tais coisas não podem ser consideradas como um caminho visto que os governantes nem se quer contemplam a possibilidade de diálogo sério e transparente. Pontes com gente deste nível é o mesmo que consentir à subordinação a um poder autoritário. É assim que o coronavirus tem sido explorado maquiavelicamente. Arbitrariedades de toda a sorte passam a ser válidas e o autoritarismo é justificado na máxima da segurança, como se uma crise de integridade continental ou mundial fosse eminente (e eles bem têm tentado convencer-nos disso). Faz-me lembrar a estratégia das forças políticas autoritaristas: numa manobra politicamente hipocondríaca, inventam um problema gravíssimo na sociedade e apresentam-se como os supremos defensores da segurança dos cidadãos em troca de muitas liberdades. Evidentemente que um Bloco Central não significa o advento do Fascismo, e se tiver de escolher entre isso ou o Chega, a aliança PS/PSD será a opção óbvia, mas, alcançado desta forma, o Bloco Central representa um grande défice democrático e a prova dos tempos endémicos que vivemos. E, entretanto, a Esquerda portuguesa vai-se afundando numa crise profunda sem ainda ter dado conta...

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Estátuas

Agora que a poeira já acalmou, saio eu a terreiro. Estátuas. Inerentemente, são blocos de pedra, ou de um qualquer metal como o bronze, trabalhados, para representarem uma qualquer figura humanoide. Os objectivos das suas construções são muitos: memória, prevalência do património cultural, assinalar um marco histórico, enaltecimento dum culto de personalidade, etc. As estátuas não têm vida. As figuras representadas estão sujeitas à arte (ou falta dela) de quem as esculpe, e também estão sujeitas aos caprichos de quem as representa. As estátuas, por vezes, durante o seu tempo de existência - pois nada dura para sempre - recebem mais atenção que a pessoa que pretendem representar durante o seu tempo de vida. Eis a estátua de Fernando Pessoa na esplanada d'A Brasileira. Nunca Pessoa sonhou, a dormir ou acordado, que alguma vez receberia tanta atenção como a sua famosa estátua que ele nunca chegou a contemplar. Outras tantas estátuas permanecem na sua morada sem alguma vez terem recebido a mínima atenção de quem passa. Há ainda habilidosas estátuas que lutam contra o tempo, jazendo no seu local, muitos anos passados do regime que justificava a sua existência. Outras, para desgraça de poucos e salvas de muitos, não resistem a mudanças de regime e acabam por cair ante o poder inafrontável do tempo histórico. É, portanto, racional mas arbitrária a importância, ou carinho, que todos nós nutrimos pela multitude de estátuas que foram erguidas por esse mundo fora. Há estátuas totalmente consensuais. Há estátuas adoradas. Há estátuas detestadas. Há estátuas de que ninguém quer saber, salvo o escultor ou escultora que a ergueu, isso é no caso de ainda viver. Dentro daquilo que é a normalidade do quotidiano, as estátuas são invisíveis. Mas nos últimos tempos, para pasmo meu, que tanto gosto de estátuas e esculturas, foram estátuas que estiveram na ordem do dia.

A minha relação com estátuas é bastante interessante... digo eu, na minha descarada presunção. Vou enumerar porquê. Uma das minhas peças de arte favoritas (e que, ironicamente, nunca a contemplei presencialmente, mas se o fizesse demorar-me-ia, sem exagero, uns bons trinta minutos) é uma estátua (ou uma escultura, se preferirem) que neste momento se encontra em exposição na Galeria da Academia de Florença, o seu título é David (por representar a personagem bíblica homónima) e o seu autor foi um grande humanista e artista do Renascimento chamado Michelangelo. Uma peça de uma estética imbatível. De uma perfeição técnica lendária. De uma irreverência cultural que fez tremer com muitas tradições. De uma beleza assombradora. De uma percepção inspiradora da beleza enaltecida do corpo humano masculino (esse, que muitas aves raras afirmam que, por natureza, é feio e rude). Se, um dia, alguma tragédia lhe acontecesse, eu era bem capaz de verter umas quantas lágrimas. Outra estória, relacionada comigo, sobre estátuas. Um dos momentos definitivos que me acordou para a política foi precisamente o derrube e espancamento de uma estátua. Quando eu tinha 14 anos, e já me interessava sobremaneira por História e pelo porquê do Mundo ser aquilo que é, enquanto jantava, assisti nas notícias, no contexto do conflito russo-ucraniano pela região da Crimeia, ao ataque, por parte de cidadãos ucranianos, a uma estátua de Vladimir Lenin que repousava (salvo erro) em Donetsk ou em Kiev. Eu na altura não consegui discernir totalmente porquê, mas por alguns motivos, que para o assunto não são chamados, achei errada aquela atitude iconoclasta... até porque Lenin, historicamente, nada tinha a ver com o conflito que decorria e ainda decorre. Terceira e última enumeração. Há uma estátua bem próxima de mim, e de que não gosto nada. Ela ergue-se teimosa, quase toldando o Monte da Penha no horizonte se o observador estiver e certas perspectivas, ao nível do edifício da Câmara Municipal de Portalegre, e para ela sou quasi forçado a olhar, como se dum acidente de automóvel se tratasse. É a imponente estátua de João III, Rei de Portugal, o mesmo que tinha tanto ou mais interesse que o próprio Vaticano em trazer a Inquisição para Portugal, para perseguir os judeus e toda a sorte de heresias imagináveis, com todas as consequências socioeconómicas que tal acto importou no Reino de Portugal. A única razão para a estátua ali repousar é o facto de ter sido no reinado de João III que Portalegre se tornou cidade mediante uma Carta de Foral. É só essa a razão para ali estar aquela triste e descomunal figura. Por mim saía hoje. Gentil e educadamente claro, não era necessário recorrer à iconoclastia, mas saia e naquele pedestal que pusessem outra pessoa. Portanto, como vêem, apesar do respeitável trabalho de quem as projectou, esculpiu ou construiu, há estátuas incomodativas, e outras que se tornam mesmo insultuosas. Mas apesar de tudo, devo dizer que, opções estéticas de parte, adoro estátuas em geral.

O movimento social de danificar ou destruir estátuas não nasceu ontem, era aliás muito comum acontecer no Egipto quando o então Faraó se aborrecia com a memória de algum antecessor seu. Já no Iraque, quando o regime totalitário de Saddam Hussein foi derrubado, os cidadãos de Bagdad apressaram-se, epicamente, a mandar abaixo uma enorme estátua que o tirano tinha na cidade. Quem achou aquilo errado ou inapropriado que atire a primeira pedra. E da mesma forma como esse legítimo acto de iconoclastia não recebeu uma cascata de críticas e impropérios, também os não receberam os cidadãos ucranianos que violentaram à martelada (irónico) a estátua de Lenin que mencionei anteriormente. Aliás, muitos por cá e do outro lado do Atlântico aplaudiram entusiasticamente e não fizeram, ao contrário das suas posições nos tempos presentes, nenhum apelo à preservação da cultura e da História. E assim desconstruí o argumento daqueles que, vendo aquela miríade de estátuas atacadas por todo mundo, fizeram um apelo à cultura e ao património histórico, porque, para eles também, há umas estátuas que são mais que outras. A verdade é esta: há estátuas que são puramente políticas, e essas tendem, como já afirmei, a sucumbir com a mudança dos tempos políticos. O que diríamos todos nós se nos cruzássemos com uma estátua de Hitler ou Stalin na rua? Certamente não viríamos, primeiramente, aquelas estátuas como património que deve ser conservado mas sim como culto de personalidade que deve ser derrubado. O apelo à cultura e ao património é legítimo, sim, quando estamos perante peças cuja motivação era plenamente artística ou quando as figuras representadas, políticas ou não, fazem parte ao cânone cultural de um povo, e um exemplo desse tipo de estátuas é a de Afonso Henriques que está em Guimarães. Desta feita, julgo também apropriado clarificar que foi um disparate danificar a estátua de António Vieira, uma vez que ele tinha um pensamento bem avançado para o seu tempo e, sobretudo, é um intemporal escritor lusófono. E dou eu de barato que foram anti-racistas que atacaram a estátua de António Vieira, porque, na realidade, pode nem ter sido isso que aconteceu... em todo caso, esta estátua particular é um grão de areia no Deserto.

A falta de sensibilidade que muitas franjas da sociedade nacional e internacional revelaram perante os esforços de afirmação de muitas pessoas, que se debatem com o racismo, é igualmente gritante. Aqueles que indignados se manifestaram face àquilo que se fez à estátua de Vieira, se acharem decente, adequado ou ponderado reagirem de semelhante forma aos ataques de estátuas como a de Leopold II, Rei da Bélgica, ou a de Jefferson Davis, Presidente da Confederação durante a Guerra Civil Americana, então retirem essa máscara de moralismos e compreendam que, neste preciso momento, se combate uma luta social e cultural que já há algum tempo não tinha tanta pujança como tem agora. Se me pedirem para pensar nas várias estátuas erguidas em memória de Leopold II - dono a título pessoal do território que hoje é a República Democrática (nada democrática, deva-se dizer) do Congo entre 1885 e 1908, território esse explorado por ele com tanta falta de humanidade e liberdade que até indignou e revoltou os colonialistas impérios europeus da época -, e me pedirem para ficar ultrajado com a destruição delas, pois bem, não me peçam isso. O enaltecimento público de um déspota absoluto não é algo que deva ser encarado com leviandade, especialmente tendo em conta de que é uma figura histórica que ainda está muito presente nos nossos dias. Não sabemos ao certo a fasquia de mortandade causada pela ditadura colonial imposta sobre o Congo, naquela época, mas crê-se que tenha ultrapassado o milhão de mortos. Já Jefferson Davis foi só o homem que presidiu à nação separatista da Guerra Civil Americana - os Estados Confederados da América -, combatendo uma guerra fratricida com o principal objectivo de poder continuar a escravizar negros. Felizmente para muitos norte-americanos que a Confederação perdeu a guerra, mas esse passado obscuro ainda hoje está a ser combatido nos EUA, e ainda combate-se em cada estátua pública que queira enaltecer esse desgraçado passado racista e esclavagista. E quem, com alguma razão, afirmar que não devemos fazer julgamentos sobre a História, eu recordo que o século XIX não é uma época assim tão longínqua e que a memória da Confederação, por razões múltiplas, ainda está muito presente, nomeadamente em norte-americanos de pele negra. Em Berlim, por exemplo, chegaram à conclusão de que a estátua que tinham erguido ao fundador dos escuteiros iria ser removida devido às inclinações nazis do indivíduo, e na Universidade de Oxford a estátua erguida em homenagem a Cecil Rhodes irá ter o mesmo destino. Isto prova que estas acções de remoção de estátuas que muitas pessoas hoje consideram ofensivas, devido ao significado e motivação política e cultural intrínsecas ao monumento, pode também ter lugar num plano ordeiro e meramente reformista. Poderá ser colocada esta pergunta: então é legítimo remover estátuas de pessoas que, nos séculos XIX ou XX, tinham opiniões pessoais que hoje consideramos repreensíveis? Tal dá legitimidade a agarrarmos em martelos para abatermos qualquer estátua do Johannes Brahms ou do Richard Wagner - por sabermos hoje que eram indivíduos racistas e anti-semitas (especialmente Wagner) - que se cruze no nosso caminho? Não. Essas são estátuas erguidas em homenagem dos músicos Wagner e Brahms. É um importantíssimo legado musical, e portanto cultural, que está a ser celebrado, e tal coisa, independentemente da pessoa, deve ser celebrado - é principalmente por essa razão que eu resolvi defender a estátua de Vieira, em primeiro lugar.

Devo, como é habitual, pedir perdão pelo longo texto, mas a minha impressão foi que a ideia, apesar de tudo, era discutir sobre estátuas, das quais tanto gosto. Fico contente que tenham aparecido alguns historiadores na colunas do jornais, como o Professor Pedro Cardim ou a Professora Ângela Barreto Xavier, comentando, num plano mais historiográfico, o fenómeno do abate de selectas estátuas, mas fico triste, logo a seguir, devido ao conteúdo da maioria dos textos que foram escritos por esses historiadores. Sinto que se canalizou demasiada atenção para a estátua de António Vieira - que, já sabemos, merece o nosso respeito por ter, na época, um pensamento um pouco avançado e sobretudo por ser um autor imortal das letras portuguesas - e muito pouca para um outro fenómeno que merecia reflexão por parte daqueles que sabem o significado da palavra historiografia: que tipo enfermo e patológico de nostalgia faz com que ainda se honrem e ergam estátuas em memória de gente que tantas feridos abriu nos dois últimos séculos? É que, caso ainda não tenham reparado, há gente, com outro life background, que ao ver Leopold II, Jefferson Davis, Stalin ou Hitler celebrados, em praça pública, em pedra no topo dum pedestal, é ver a mesma coisa!

Ainda, face aos meus argumentos, há quem possa responder, indagando-me se isso também dá legitimidade a que se atire com estátuas de Luís XIV, de Júlio César ou de Alexandre Magno, para o desterro mais longínquo, por terem sido, segundo as nossas lentes da sociedade contemporânea, aquilo que hoje classificaríamos como imperialistas. Bem, todos sabemos que, isso sim, seria julgar a História. (E ficaria muito ofendido, obviamente, se atirassem com César ou Alexandre para um desterro!)

Comecei por escrever que uma estátua é, fundamentalmente, uma estátua, mas, se a estátua for sortuda, uma estátua torna-se sempre mais que uma estátua, quer seja por bons motivos, como a indelével beleza de David, ou por maus motivos, como a estátua de Jefferson Davis que, volvidos mais de 150 anos sobre a Guerra Civil, ainda tem um vergonhoso destaque de honra no Capitólio de Washington D.C... e, convivendo com tal facto, ainda houve gente que ficou admirada por um pedaço de pedra ter sido atirado a um rio.

domingo, 7 de junho de 2020

Blackout

O medo, receio, asco à diferença é, depois do dinheiro, a maior fonte de segregação na sociedade em que vivemos. Assim sempre foi ao longo da História e por vezes temo que assim continue a ser ad aeternum. O assunto que me traz hoje - que, em sinceridade, não é um que eu seleccione abordar com tanta regularidade como outros - tem que ver com segregação humana: neste caso, aquela que é baseada em algo positivamente tão trivial como a cor de pele que todos nós envergamos. O ser humano é um mamífero que, ao ser bem sucedido em espalhar o seu ecossistema por todos os cantos da Terra, pôs em causa tantos outros ecossistemas. Esse ecossistema é uma civilização a que hoje chamamos Humanidade. Mas antes desta grande civilização já houve tantas outras, muitas delas coexistindo em total ignorância mútua de suas existências. As diferentes cores de pele sempre lá estiveram... excepto no início da vida humana, ainda antes de estarmos organizados em civilizações, há duas centenas de milhar de anos. Os antropólogos e biólogos crêem que a vida humana - o homo sapiens - começou por florescer, num lento processo evolutivo, na África subsariana, onde hoje é a República da Etiópia. Como tal também crêem que o ser humano começou por ter uma pele escura - o que faz todo o sentido, dada a localização geográfica de enorme exposição solar -, sendo a evolução para pigmentações mais claras um fenómeno posterior, quando vastos grupos humanos migraram para outras localizações do globo terrestre, em regiões onde a exposição solar é muito mais reduzida - como é exemplo a Europa - e, por conseguinte, os níveis de melanina desses humanos reduziram, começando então a surgir nesses mamíferos humanos uma progressiva clarificação da pele. E algures, ao longo deste longo caminho - da mesma forma que nasceu uma miríade de mistificações e intolerâncias segregacionistas -, algo tão trivial como a cor de pele tornou-se motivo de discriminação e hierarquização. Não deixa então de ser irónico que a primeira grande sociedade civilizada da História tenha sido o Egipto Faraónico (ou Antigo, se preferirem). Os egípcios que adoravam Amón-Rá, Hórus e Anúbis, que estenderam os domínios do Faraó, que compreenderam os cíclos do Nilo, que desenvolveram a escrita hieroglífica e a economia agrícola, que construíram - com muito labor escravo, sei disso perfeitamente - magníficas estruturas que, 3000 e 4000 anos depois, ainda perduram, como o Templo de Abu Simbel, o Templo de Karnak ou a Grande Pirâmide de Giza, eram africanos de pele morena e escura. Mas a supremacia da cor de pele haveria de surgir, mas invocar a sua origem é uma pesquisa genealógica impossível. How did we come to this?, como inquiria o Rei Théoden...

É certo que o racismo assume muitas formas. Ele existe entre negros, ele existe entre e contra a cultura hindu, ele existe contra asiáticos e entre asiáticos, ele existe contra ciganos, ele existe contra judeus, ele existe contra árabes e entre os próprios, ele existe contra latino-americanos e entre eles e, inclusive, ele existe entre europeus e (que ninguém se deixe equivocar) contra europeus. Sim, a eurofobia também é uma realidade, e eu não fecho os olhos a nenhuma forma de racismo. Mas de entre todas as caras que o racismo pode assumir - e não mencionei a maior parte, evidentemente - nenhuma tem sido tão endémica e sistemática como o racismo praticado contra o ser humano de pele negra. Não há como negá-lo. Começou algures numa qualquer época virtualmente ilocalizável da História (talvez durante as épocas pré-expansionistas da Europa onde o racismo seria praticado por sociedades muçulmanas contra sociedades e tribos africanas.) Depois tornou-se mainstream com o mercado internacional esclavagista na época da Expansão Marítima Europeia. Nos séculos XIX e XX ganhou uma dimensão ideológica, pseudo-científica e filosófica, passando a compor o cânone daquilo que seriam pensamentos fascistizantes, e por fim chegou aos nossos dias. Luther King já marchou sobre Washington, e de Selma a Montgomery. Rosa Parks já se opôs à Segregação Legal do Alabama. O Apartheid já foi derrubado e Mandela já foi Presidente. Gandhi já liderou a libertação da Índia. Malcolm X, assim como Gandhi e Dr. King, já foram assassinados. Por sua vez, os impérios coloniais da Europa já foram destroçados (ainda que subsista um outro tipo de Imperialismo). Jesse Owens já ganhou as quatro medalhas de ouro olímpicas na Alemanha Nazi. Morgan Freeman já é uma lenda em Hollywood. Louis Armstrong, Robert Johnson, Aretha Franklin e Whitney Houston já deixaram para a posteridade os seus legados na arte musical. Inclusive, Jimi Hendrix já foi consagrado um génio da música universal. Até Barack Obama já foi eleito Presidente dos EUA. Mas de alguma forma a psicose mantém-se como um cancro incurável. É tão difícil de compreender a Humanidade. Eu, francamente, não a compreendo... mas não é uma incompreensão que faça perder a esperança, por enquanto. Em Minneapolis eles não cruzaram os braços. 

Entretanto, é importante que não nos tornemos em hipocondríacos políticos. A realidade dos EUA, em boa parte, não passa da realidade dos EUA. É certo que na Europa continuamos a experienciar situações localizadas de racismo, quer a nível urbano ou a nível institucional, e Portugal continua a ter os seus fenómenos racistas, especialmente patentes nas desigualdades financeiras que se traduzem em indesejáveis resultados escolares e em habitações indignas, ou na atitude de agentes de autoridade face selectas comunidades, todavia, não nos comparemos a uma sociedade, como são os EUA, em que, em largos quadrantes políticos e sociais, o racismo ainda é um pensamento requisitado, e onde a violência policial vê muitos poucos obstáculos para impor, à lei do bastão e da bala, a sua presumida supremacia. Os EUA, apesar de ter sido uma das nações onde a resistência ao racismo teve uma dimensão maior e mais organizada, é também uma nação onde, historicamente, a ideia de supremacia branca importa maior impacto. Para termos evidência disto basta pensarmos na Confederação do século XIX, que tentou preservar o trabalho escravo nos Estados do Sul, combatendo uma Guerra Civil fratricida contra os Estados Unidos, ou pensarmos em como esse legado supremacista - que ainda não desapareceu de muitos estados sulistas - deu vida a coisas abomináveis como o Ku Klux Klan ou às leis segregacionistas (como exemplo, lugares divididos para negros e brancos nos transportes públicos, estabelecimentos exclusivos para brancos ou negação do direito de voto à população negra) que imperaram em estados como Alabama, Georgia, Texas, Virginia, Mississipi, Missouri, Louisiana ou Kentucky, até à Contracultura e o Movimento dos Direitos Civis dos anos 60. Portanto, o ponto fundamental a que eu quero convocar o leitor deste texto é o seguinte: não negando que nos EUA o racismo é endémico e de certa forma institucional, a realidade de hoje na Europa não tem essa dimensão horrorosa. Nós, que nos revoltamos e indignamos e manifestamos contra aquilo que aconteceu a George Floyd, temos de compreender que a escala racista, nos EUA, é muito maior do que deste lado do Atlântico devido aos factores históricos já mencionados. Não será sensato, portanto, enveredarmos pela hipocondria política e 'trazermos' os problemas de outras paragens para dentro de casa. Está feita a ressalva.

O clamor colectivo e tonitruante contra o racismo e a brutalidade policial - no triste caso de Floyd estamos a falar de ambas as coisas - não pode emergir só quando algo grave acontece nos EUA ou quando é trazido até nós um caso mediático. Esse clamor tem de ser constante e ininterrupto. Noam Chomsky escreveu o seguinte no seu ensaio What You Can Do: "If you go to one demonstration and then go home, that's something, but the people in power can live with that. What they can't live with is sustained pressure that keeps building, organisations that keep doing things, people that keep learning lessons from the last time and doing it better the next time." É disto que eu estou a falar. Não podemos alinhar em movimentos de insurgência como se adere a uma moda. Essa não é uma boa praxis. É preciso que a participação seja constante e informada. É necessário que a preocupação seja constante e vigilante. Quanto maior for o conhecimento de quem se insurge mais munições existem para serem disparadas contra a parede de ódio e intolerância (e peço desculpa pela linguagem bélica, mas ela é meramente figurativa). Quanto à retórica, há um aspecto que é crucial ser observado: quem se manifesta não pode partir do princípio de que quem não se manifesta é um racista. Não podemos partir do princípio que ao virar de qualquer esquina há-de surgir um racista, ou assumir que todos os polícias nos EUA ou em Portugal são pessoas odiosas e racistas. Entrar por estas linhas de raciocínio é entrar por um caminho maniqueísta, injusto, ingrato e contra-produtivo.

Em todo caso, apesar das precauções retóricas e práticas que devem ser observadas por quem vigorosamente se insurge, indigna ou manifesta contra a brutalidade policial que constatámos, julgo importante clarificar que, no problema que enfrentamos, o seu aspecto mais crucial é a compreensão da natureza do racismo e como erradicá-lo. Ele erradica-se através da promoção de uma equidade económica, através da total promoção de, e igual acesso à, instrução escolar para todas as crianças e jovens, através da promoção de valores cívicos e da premente relevância da Declaração Universal dos Direitos Humanos em todas as escolas, e erradica-se, também, através de uma meditação individual e profunda sobre algumas das nossas concepções estereotipadas que eventualmente tenhamos. Mas ele nunca se poderá erradicar por decreto. A linguagem que usamos para nos referirmos a pessoas de uma certa etnia diz também muito, nem que seja só a um nível subliminar ou subconsciente, daquilo que são as percepções que temos de quem é diferente de nós a nível étnico. O mesmo serve para a linguagem segregadora que é usada para descrever a homossexualidade, ou serve para a presumida heteronormatividade que foi legada às sociedades contemporâneas pelo pensamento das três religiões abraâmicas... mas, apesar de relacionado a muitos níveis, isso é outro assunto na longa História da Discriminação.

Se o leitor deste texto estiver suficientemente familiarizado com o meu pensamento político, saberá que - para além de eu considerar que em lugar nenhum do mundo foi atingida uma democracia pura, e que só uma mão cheia de nações é que está lá (mais ou menos) perto - eu considero os EUA um estado autoritário e anti-democrático. O problema não é da Constituição Americana (que tem o defeito de ser pequena e quiçá abstracta). O problema é da natureza autoritária e nacionalista que assolou os EUA, especialmente a partir da Guerra Fria. A paranóia da ameaça esquerdista impeliu os EUA a criar mecanismos de repressão, como é exemplo o FBI - uma obra de Edgar Hoover - e de total vigilância estatal dos seus cidadãos, como é bom exemplo a NSA, e a forjar de raiz guerras cujo interesse era económico e imperial e não humanitário. A própria comunicação social de grande envergadura é abertamente partidário e parcial e as opções sufragistas estão diminuídas a dois partidos que fazem parte de um interesse corporativo comum. Nem o princípio constitucional do Estado Laico aquela república consegue respeitar minimamente. A educação pública vê-se amplamente ameaçada e um sistema nacional de saúde ainda está por ser fundado. O racismo, embora grande, é só mais um dos imensos problemas daquela nação. E que não se julgue que estes problemas foram uma construção da Administração Trump. Eles fazem parte do próprio molde do país, e só assim é que haveria condições para um indivíduo como Donald Trump ser eleito Presidente. É o reflexo daquela América, receio. Quem de facto tem controlo sobre os destinos daquele país são os banqueiros, a Reserva Federal, a indústria do armamento e o Pentágono. E estes não têm a mais remota inclinação para placar o racismo institucional dos EUA. Só acção radical e revolucionária o pode fazer, e creio que nem sempre essa acção pode ter uma índole pacifista, apesar dos ensinamentos de Luther King e Gandhi.

Esta é uma altura pertinente, julgo, para escutar atentamente o Man in Black do Johnny Cash.

Falar em raças, para além de não ter a mínima coerência intelectual ou científica, pode ser per se um substancial resíduo de racismo, ainda que inconsciente, uma vez que tudo o que há são incontáveis etnias aglomeradas numa única raça - numa única espécie humana.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Sacrilégios: como o Coronavírus também conseguiu infectar a alma dos crentes

Por entre as brumas de confusão com as quais estes tempos patológicos nos brindaram - tempos esses que nos trazem aquele assunto, o qual é virtualmente impossível contornar, e ele materializa-se, desde os televisores, de manhã à noite, no reflexo brilhante duma casca de maçã e até na própria sopa - não tivemos (pelo menos esperava eu que toda a gente já tivesse chegado a esta conclusão) só a confirmação de que um Estado grande e interventivo e um Sistema Nacional de Saúde vigorosamente reforçado - e, já agora, com todos os seus trabalhadores (entenda-se profissionais, em linguagem mais mediática, que é o que os médicos e os enfermeiros de facto são) a serem altamente remunerados -  são condições sine qua non (a par com altos índices positivos no domínio do Ensino, assunto que não é para aqui chamado) para vivermos numa sociedade próspera, segura e livre. Uma outra confirmação - não tão imediatamente relevante, talvez, mas, ainda assim, digna de atenção -, pelo menos na minha cabeça, foi trazida por estas brumas de confusão. Falo da confirmação de que deus já não vive. Friedrich Nietzsche, essa controvérsia em pessoa, já nos havia chamado a atenção para esse facto no seu livro Assim Falou Zaratustra, embora o verdadeiro significado da sua, para muitos pavorosa, afirmação esteja, ainda hoje, envolto em debate: referia-se ao facto que o Iluminismo do Século XVIII tinha descartado, definitivamente, a existência de um deus, ou afirmava que o Deus Abraâmico já tinha existido e que, a dada altura, deixou de existir porque a Humanidade (de alguma forma paradoxal) cometeu deicídio? Independentemente das motivações da afirmação "Gott ist tot" de Nietzsche, ele estava, de certa maneira, certo no fundamental, especialmente, se considerarmos os cem anos que seguiram o findar do Século XIX: deus morreu.

De entre as arbitrárias - sim senhor, arbitrárias!, porque, cientificamente, não são comprovadas nem consensuais entre a comunidade científica - decisões tomadas nos Estados, e no nosso em específico, durante o Estado de Emergência, para travar a COVID-19, desde a proibição de circulação no território, passando pelo encerramento de tudo e mais alguma coisa e pela proibição enfática do direito à greve (e outros direitos laborais fundamentais), indo até à proibição do consumo de bebidas alcoólicas na via pública (e se via pública significar "espaço exterior às nossas habitações" então, a dada altura, durante o Estado de Excepção, eu, qual vilão, desobedeci à lei), também as igrejas foram encerradas para férias e, portanto, o sacramento da Eucaristia foi suspenso. Não foi esse, curiosamente, o único dos sete sacramentos a ter sido suspenso na Igreja Católica. Na verdade, tanto quanto sei, desde que começou o período da quarentena (e que, ainda que ele, legalmente, já tenha terminado, ainda há muito cidadão moralista que o tenta enfiar goela abaixo dos demais cidadãos), nenhum sacramento foi celebrado... salvo as missas celebradas, clandestinamente, ainda com muito fervor religioso, em lugares como Trás-os-Montes. Nem a Extrema-Unção, o sacramento final, foi poupado, imagine-se! Em cima de toda esta anulação de religiosidade que, convenhamos, assim como a anulação de muitas liberdades, foi, na generalidade, admitida de forma passiva pela massa crente, também o Santuário de Fátima repousou de movimentações peregrinas. Dividido entre dois registos retóricos, um bastante compreensivo e, quiçá, solidário para com a espiritualidade/religiosidade das pessoas, outro, confesso, bastante cínico face ao próprio fenómeno da Religião, há três comentários que devo fazer, conectados entre si, relativamente à relação entre o fenómeno religioso e o surto do Coronavírus. Um diz respeito à peregrinação a Fátima, outro às missas e um terceiro diz respeito aos sacramentos da Cristandade, com especial incidência sobre a Extrema-Unção (e, a seu tempo, também explicarei o porquê da incidência sobre este particular sacramento). Antes de prosseguir devo fazer uma salvaguarda. Apesar da relevância de que outras religiões possam gozar, o meu comentário aplica-se concretamente à realidade católica - em parte por ser muito pitoresca - não esquecendo que, num patamar mais geral, as vicissitudes de maior parte das religiões (excepção para o Budismo, Taoismo, etc.) repetem-se da mesma forma.

Fátima, como sabemos, é o maior fenómeno religioso - com grande peso social - em Portugal, e também é um grande negócio. Um belo negócio para as empresas hoteleiras que inflaccionam o custo de alojamentos na zona, e um mirabolante negócio para as cobiçosas criaturas que vendem, a preços descontrolados, simples tendas, água de Fátima que alegam ser sacra e até terra de Fátima. Terra do chão, literalmente. Já faltou mais para anunciarem a venda do Santo Graal, da Arca da Aliança, do Santo Sudário e da Pedra Filosofal em hasta pública, espectáculo esse que pagaria, não para poder comprar, mas poder assistir na primeira fila. A Igreja Católica, disfarçando a indignação, apela à moralidade na vida comerciante de Fátima, mas ri dentro de portas, fascinada com o poder mental que, em certos espaços, ainda detém. Todos os anos, peregrinos portugueses e estrangeiros dirigem-se, muitos andando outros de carro, ao Santuário celebratório das supostas aparições, da virgem progenitora de Jesus Cristo e de um certo Sol dançante, que lá tiveram lugar há 103 anos. As Aparições de Fátima, como foram traduzidas pela imprensa crente e pela Igreja, moveram milhões de crentes cristãos até ao sagrado local em território português, alentados também pelos famosos Mistérios de Fátima, divulgados por uma certa irmã Lúcia dos Santos, e ao longo destes anos tem sido um autêntico evento de dinamismo religioso, tendo também servido, em selectos tempos, com especial incidência para o Estado Novo de Oliveira Salazar, largos propósitos de ultra-conservadorismo político. Negar, portanto, a relevância social e política de Fátima seria um exercício tolo. As imagens, ano após ano, de muitos milhares de peregrinos a encherem a Praça do Santuário, com velas acesas apontadas ao firmamento, devo confessar que me impressionam, e também me impressiona (neste ponto pela negativa) ver humanos, deliberadamente, em nome de uma qualquer promessa, a arrastarem-se de joelhos pelo chão do Santuário, pedindo clemência a um deus que não compreendem tratar-se dum tirano (ainda que efectivamente não exista). Relativamente a esses peregrinos em particular fico com um sentimento misto de incompreensão e comoção... mas cada um faz aquilo que entender a si próprio. Pondo este fenómeno em pratos limpos, é de espantar como a Igreja Católica e os seus seguidores abriram mão, tão facilmente, deste evento, sem celebrarem as aparições em que acreditam a pés juntos, sem procissões, sem nada. É como se o próprio vírus lhes tivesse dissipado a inabalável fé. Não seria agora o momento de clamar por mais um milagre aos Céus? Não terão fé de que Nossa Senhora faria a folha ao COVID-19 num instantinho? Enfim, poderá-se argumentar dizendo, Fátima é uma celebração, a fé pode ser professada de outras formas mais simples, ao que eu pergunto, Formas essas como as missas, cujo sacramento da Eucaristia é central na fé? Mas também não há missas...

A celebração da missa e da Eucaristia - isto é, dito de forma simples, a recriação da Última Ceia, como pedida por Jesus Cristo aos seus apóstolos, segundo aquilo que está escrito no Novo Testamento da Bíblia - é nuclear na fé cristã, e Cristo foi bem explícito que essa cerimónia devia ser sempre repetida. Eventualmente as missas, para esse efeito, foram inventadas. O que vemos hoje é um fenómeno incrível (na verdadeira acepção da palavra) em que até isto os crentes e a Igreja Católica acederam de forma mais ou menos silenciosa a cancelar. Não levantaria tal coisa um gigantesco problema do foro teológico? Não põe, tal suspensão de celebração religiosa, tão importante - quase como se fosse o tempo de antena formal que os crentes leigos têm com o altíssimo todo-poderoso -, os próprios terráqueos mortais em grande dívida para com deus, também conhecido como Jeová? Não será tudo isto contraditório? Se deus existe e é omnipotente, omnisciente e omnipresente, e ainda por cima bom para as suas sementes, porque haveria ele de congeminar tal evento patológico que cancelaria as próprias celebrações sagradas em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo (o trio, de uma entidade só, imagine-se tal coisa, conhecido como Santíssima Trindade)? Será sinistramente cínico, e portanto, com certeza, não será bom? Será o Diabo/Satanás, ou Lúcifer como eu gosto que ele seja referido, o mafarrico por detrás de tudo isto, emperrando a engrenagem da "máquina do mundo [referência a'Os Lusíadas]"? Na Idade Média era assim: algo corria mal e punha-se as culpas em Lúcifer. Logicamente, apesar de, como Deus, não passar de uma personagem fictícia e bíblica, Lúcifer é, precisamente, a minha personagem favorita na Bíblia - uma espécie de Prometeu anti-heróico e revolucionário - e custa-me muito ver a sua figura angelical a ser constantemente vilipendiada. Ou melhor que tudo isto, não será, toda esta História da Religião, uma estória muito mal contada, saturada de plot holes e incongruências indescortináveis, como se tivesse sido redigida por um escritor de baixa categoria? Façam o que quiserem disto, cada um acredita na sobrenaturalidade que entender, mas levar isto como dogmas não é diferente de crer no monstro do esparguete voador ou que todos nós vivemos dentro do globo ocular dum gigante.

Por último a Extrema-Unção. É aqui que sinto uma maior solidariedade para com as barreiras montadas contra as livres práticas da espiritualidade, porque, é preciso afirmar, apesar do meu antiteísmo, eu sou um defensor da liberdade religiosa, desde que essa liberdade religiosa não implique, por exemplo, a incineração pública de livros e pessoas, o que, felizmente, já não se assiste tanto com há 500 anos. O meu choque pela abolição temporária da Extrema-Unção - o sacramento concedido ao crente no seu leito de morte - tem que ver, precisamente, com a sensibilidade do assunto, uma vez que, parecendo que não, eu também me consigo colocar no lugar do outro, neste caso dum sólido religioso. A paz do crente no leito de morte - com fé de que a sua alma viaje até às portas do Céu - creio que não será um assunto que os religiosos, neste caso cristãos católicos, encarem de forma leviana. Nem percebo como é que a Igreja Católica se deu ao trabalho de fazer tanto barulho contra coisas como a legalização da Eutanásia, e para tudo isto que já descrevi - que basicamente significa a suspensão de todas as bases fundamentais do credo - não se maçam nem com o mínimo ruído. É quase como se a fé se tivesse esfumado nas brumas da virose. Não deixa de ser irónico que uma das instituições mais inflexíveis da História tenha concedido suspender quase toda a celebração da fé, de forma tão serena. Face a isto, eu só posso perguntar: onde está a fé? E onde está deus? Não está...

Nada disto tem por base ferir a integridade dos que se afirmam religiosos, ou fazer uso desta pandemia como trampolim para atacar a lógica da fé e da Religião. Todavia, é um fenómeno ao qual é difícil de fechar os olhos. Pergunto-me: será que, com este vazio, as pessoas não se começam a aperceber do absurdo e da incongruência que é ter fé - colocando de lado o primado da razão - no sobrenatural quando este não dá provas de si mesmo? Será que a diferença entre haver ou não haver Eucaristia não é nenhuma? Não é o sobrenatural que atende os doentes no Hospital, são pessoas que trabalham... e no meio disto tudo, já Saramago inquiriu, ironicamente como era seu magistral estilo, "Onde está deus"? Saramago disse, também, que a ideia de deus morre - não é que deus morra porque, para morrer, precisava de existir - quando deixar de haver um único crente. Quando tal acontecer, o proverbial deicídio aconteceu. 

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Entre o Medo e a Razão: Memórias sobre a Pandemia

Notícias desse louco Mundo:

Há poucos dias, no Mar das Caraíbas, a norte da Venezuela, teve lugar um incidente que, por enquanto, se manterá misterioso e estranho. Um cruzeiro identificado como RCGS Resolute, com a bandeira da República Portuguesa, alegadamente ao serviço de uma companhia privada denominada Columbia Cruise Services, entrou em colisão com uma embarcação militar ao serviço da Venezuela. O Presidente venezuelano Nicolás Maduro declarou que o Resolute investiu, propositadamente, contra a embarcação militar identificada como Naiguatá, tendo provocado o naufrágio da embarcação. Os oficiais na sede da Cruise Services, na Alemanha, alegam o contrário. Afirmam ter sido o Naiguatá que investiu contra o Resolute, e que o naufrágio da embarcação militar se deveu à placa de protecção anti-glacial que reveste o cruzeiro a estibordo. Uma terceira eminência, o Ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, descansa quem destes assuntos se importa - que nos dias que correm não são muitas pessoas - e assegura que o incidente não alterará as relações diplomáticas entre Portugal e a Venezuela e que tudo se encontra na mais serena tranquilidade... apesar da reacção tempestuosa de Maduro (tendo ou não tendo razão) e apesar do barco ser português. Felizmente ninguém se aleijou. Mas será que o orgulho nacional tem potencial para ficar ferido?

Há uma miríade de questões que se podiam colocar a propósito deste incidente, contudo, eu trago estas ao Pensatório: que fazia e qual era o objectivo daquela embarcação, de bandeira portuguesa, e ao serviço duma empresa privada, enquanto navegava em espaço marítimo venezuelano, a 181km de Caracas, sem aparente autorização estatal? Porquê a leviandade de Santos Silva, quando este afastou as hipóteses de problemas diplomáticos com a Venezuela? Porque é que este incidente foi vagamente mencionado nos noticiários e nos Media em geral? Saberemos mais nos próximos capítulos? O leitor deste texto nem imagina (na eventualidade de não estar a par) a dificuldade que é, na secção de notícias, no Google, encontrar notícias e artigos plenamente informativos sobre esta situação que teve lugar ainda no início da semana passada. Há quem diga que eu tenho a mania da teoria da conspiração. Mas será possível que, na conjuntura geopolítica da América do Sul, estejam neste momento a ter lugar decisões e operações cuja importância internacional é crucial, e das quais nada sabemos porque a comunicação social por um lado, e a opinião pública por outro, estão demasiado absorvidas e conquistadas pelo vírus que aí anda? Será que os EUA se preparam para dar novo golpe do baú, tentando neutralizar por completo a área latina aos seus interesses? Imagine o leitor se Portugal estivesse a participar em tais esquemas de índole maquiavélica - nada que não tenha já acontecido várias proeminentes vezes só este século. O Presidente da Venezuela tem reportado que as forças vizinhas, daquilo a que Maduro gosta de referir como "Oligarquia Colombiana", ameaçam cada vez mais a integridade do território. E ainda há, claro, o incidente de há uns tempos em que, alegadamente, segundo autoridades venezuelanas, um avião da TAP aterrou no território latino com explosivos para distribuir entre a oposição do governo venezuelano. Tudo isto pode parecer muita coisa, mas duvido que tudo se resuma a uma embirração de Maduro com a República Portuguesa. Muitos - como os 'novos padres' que colocaram a dizer os jornais da hora do jantar - poderão considerar que possíveis ingerências de Estado e possibilidades de guerra, no outro lado do Oceano Atlântico, são trivialidades quando comparadas com um vírus. Mas sabe o leitor o que não fica do outro lado do Atlântico? Lisboa.

Foi também há uns dias que, no Aeroporto Humberto Delgado em Lisboa, aconteceu um dos incidentes mais insólitos e absurdos dos últimos tempos em Portugal. Um conjunto de inspectores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras fez questão de recordar à Nação Portuguesa que as práticas de outrora, quando quem tinha poder neste país era uma Ditadura Católica - o Estado Novo -, ainda não foram abolidas na sua totalidade, e que ainda há indivíduos (muitos deles ligados às instituições de cumprimento das leis) que optam por uma conduta muito pouco diferente daquela que estava associada à PIDE. Estes inspectores do SEF, aquando da chegada de um viajante ucraniano ao aeroporto, vindo da Turquia, interceptar-lhe o caminho e chegaram à conclusão que o dito viajante não podia entrar no território nacional. Até aqui tudo bem, nada de surpreendente. Há imensas razões e circunstâncias que podem levar os inspectores do SEF a tal conclusão, por mais que não seja de vivermos, hoje, em condições excepcionais. O problema é com o que aconteceu depois. Depois do indivíduo ucraniano ter reagido mal às indicações dos inspectores - no limite até poderá ter oferecido resistência - este foi agredido, detido numa sala do aeroporto, e aí foi torturado e espancado até falecer. Este cidadão ucraniano foi abandonado, no chão da sala, com a cara virada para o chão (uma técnica que cortou o fôlego da vítima) e os pulsos algemados, já com lesões severas devido ao espancamento que lhe foi administrado, e aí foi deixado durante uma noite inteira até ser dia. Como vale pouco a vida humana. Como é gratuita a violência e como é fácil o homicídio. Acrescentando o insulto ao dano, estes assassinos praticaram este crime em nome do Estado português, e é com mais esta sensação de culpa que todos nós teremos de suportar. Todos nós somos o Estado e são as estruturas da sociedade que permitem a subsistência deste género de mentalidades e valores assassinos.


Os tais inspectores encontram-se, neste momento, em prisão domiciliário - quase como todos nós - porque a justiça, de momento, está meio suspensa. Nem a justiça se safou ao shutdown a que a República foi submetida, e quando a justiça funciona a meio gás - e antes já não funcionava muito bem - são os tiranos de rua que proliferam e dominam. Parabéns. Até os criminosos nas cadeias portuguesas tiveram um indulto presidencial para regressarem, a título temporário, às suas residências e aí permanecerem. A justificação de Marcelo prende-se com razões humanitárias e sanitárias. Como a vida é irónica. Enquanto a Classe Trabalhadora vê imposição de restrições à sua liberdade - com complacência de uma parte substancial dessa mesma classe - os reclusos assistem a um alívio das condições penitenciárias a que, supostamente, deveriam estar submetidos. 

Descendo para sul, no Algarve, outro acontecimento insólito e com contornos macabros sucedeu. Um jovem com a minha idade foi assassinado e desmembrado por duas raparigas com idades não muito diferentes. As várias partes do corpo foram espalhadas pelo território algarvio. A Polícia Judiciária, felizmente, conseguiu chegar à verdade de toda a situação. Segundo o que a PJ conseguiu apurar, as criminosas em questão praticaram este acto hediondo por razões financeiras. Também se conseguiu perceber que eram raparigas bem inseridas social e economicamente. Quanto ódio e desequilíbrio cognitivo é necessário para encabeçar crimes desta natureza?

Promoção Viral:

O leitor mais desatento poderá julgar que eu estou a copiar o estilo do pasquim que se dá pelo nome Correio da Manhã, com todos estes pormenores e este relato. Se essa é a ideia, permita-me que o esclareça. Embora eu esteja altamente preocupado com os níveis e contornos alarmantes de violência, e com os esquemas que envolvem embarcações registadas em Portugal, a minha preocupação prende-se também com a fraquíssima atenção mediática que todos estes incidentes têm recebido. Tudo o que interessa, neste momento, é o vírus. Tudo o que interessa é ficar em casa e, de preferência, não fazer grande uso das faculdades intelectuais. É esta a mensagem dos noticiários, agindo como se a salvação e a razão estivessem com eles, incondicionalmente. A deontologia do texto jornalístico morreu. Não se informa o quê, o onde, o quando, em função daquilo que é a importância das questões e com atenção ao equilíbrio da diversidade dos vários assuntos abordados. Em vez disso inundam-nos com conselhos arbitrários, falsas notícias onde é visada a juventude pelas quais pedem mais tarde perdão, falsas notícias de mortes em regiões que, na verdade, não aconteceram, e frases de autores que nem se quer mencionam. São autênticas homilias em que todos os que não são eles e os decisores políticos, são tratados com o mais básico dos paternalismos. Os novos porque, na óptica deles, são arruaceiros egoístas que não querem saber dos velhos. Os velhos porque não querem saber deles próprios quando vão apanhar ar à rua. Um destes novos padres, um jornalista que até há pouco tempo tinha em alta consideração, Rodrigo Guedes de Carvalho, sugeriu-nos de modo imperativo que ficássemos no cárcere domiciliário sempre que não precisássemos de ir à farmácia ou comprar alimentação. Para ele, o simples passeio higiénico ou a casual deslocação de 100 metros para visitar um amigo, são insultos àqueles que sofrem e àqueles que vivem apavorados com o coronavírus, barricados em suas casas. Diz ele, é um insulto a todos os profissionais de saúde. Já voltaremos ao assunto relacionado com a descoberta dos mainstream Media de que há problemas laborais sérios nos hospitais. Agora vamos regressar no tempo.


A ideia que tem sido transmitida pelos noticiários e pelo poder político é que vivemos tempos sem precedentes na História recente, e que esta pandemia pode ser discutida num patamar de importância similar a outras mortandades que sucederam ao longo da História. Infelizmente, a historiografia não tem saído à rua para esclarecer a população de que este surto não tem comparação possível às terríveis pandemias da História, e que no século XX houve eventos de grande mortandade - pandemias e conflitos militares - que eclipsam os tempos chatos em que vivemos.

Uma história de maleitas:

Só na História Moderna (XVI-XVIII) a variedade de surtos, desde febres, cólera e gripes contagiosas, deixou um rasto que a historiografia ainda hoje tenta trilhar. Entre 1707 e 1709, a varíola erradicou 36% da população islandesa. Entre 1616 e 1620, uma grande epidemia liquidou entre 30% a 90% da população da zona sul de New England, na América do Norte. Durante todo o século XVI, a região onde hoje é o México foi assolada por epidemias que arrasaram a população nativa da zona, pavimentando as páginas da História com milhões de mortos.

Na Antiguidade também temos registos, dados e evidências, embora estes sejam muito mais reduzidos e esquivos. A Praga Antonina, por exemplo, um surto de varíola possivelmente, liquidou entre 5 a 10 milhões de habitantes do Império Romano, na segunda metade do século II. A Praga Justiniana foi bem mais implacável, e teve lugar 400 anos depois. 25 a 100 milhões de habitantes do Império Romano foram dizimados. Na altura correspondia a bem mais de um terço da população do continente europeu. Dois século depois, no Japão, a varíola provocou a morte de cerca de 2 milhões de pessoas - o que correspondeu a um terço da população.

Claro que nenhum evento pandémico é tão conhecido como a Peste Negra, um surto de praga bubónica na Europa medieval do século XIV. A praga bubónica não foi a maleita que mais casualidades provocou na História - esse lugar vai para a varíola -, todavia, o infame surto que explodiu na Europa medieval, e que ficou conhecido no léxico português como Peste Negra, deixou a marca mais indelével na História da Humanidade, devido às transformações sociais/demográficas que provocou, e devido às mudanças culturais e políticas que acelerou. A praga bubónica, provocada pela bactéria yersinia pestis, e cujos sintomas se traduziam em devastadoras pneumonias e no surgimento de bubos (inflamações em género de bolha, cheias de sangue) nas axilas, virilhas e pescoço, terminando com vómito de sangue - devido à punição a que os pulmões tinham sido submetidos pela bactéria - ou com a erupção em sangue desses bubos, dizimou cerca de 200 milhões de habitantes, entre 1331 (quando a Peste começou por reclamar as primeiras vidas, na Ásia ocidental) e 1353 (o ano em que a mortalidade da praga, em solo europeu, entrou numa linha decrescente). A bactéria fez o seu percurso até à Europa, em moscas e ratos, viajando da Mongólia até à Crimeia, e daí navegou o Mar Mediterrâneo até aos dinâmicos portos da Península Itálica. Foram os reinos e repúblicas, que compunham o mosaico da península que hoje é a Itália, os primeiros estados europeus a sofrerem com a Peste Negra. Os estados itálicos eram, na época, potentados comerciais e a principal ponte de comunicação entre a Europa ocidental e o mundo árabe do norte de África e da Ásia ocidental. Foi de cidades como Veneza, Florença e Génova, e pelo norte itálico Europa dentro, que o yersinia pestis se disseminou. Desde o primeiro contacto de contaminação até à morte do infectado, o espaço de tempo variava entre 2 dias e uma semana. A generalidade das nações europeias demoraram dois séculos a recuperar os níveis demográficos pré-Peste Negra, e Portugal não foi excepção. Cidades como Florença só recuperaram esses níveis demográficos 500 anos depois. A Europa converteu-se num cemitério onde metade da sua população foi sepultada, algures entre 1348 e 1352. As causas para tal mortandade, sobretudo, foi a ausência de higiene ou qualquer saúde pública, muita superstição, a fraca alimentação da maioria da população e a inexistência de antibióticos. 


Houve mais surtos bubónicos ao longo da História. A última grande pandemia de praga bubónica foi no século XIX, na qual morreram 12 milhões de pessoas na Índia e na China. 

O século XX não foi estranho a pandemias e a mortandade. Entre 1918 e 1920, logo após a mortandade da 1ª Guerra Mundial, a gripe pneumónica, vulgar e erradamente conhecida na época como Gripe Espanhola, trazida pelo vírus H1N1, liquidou 17 milhões de pessoas em todo o mundo. Mais tarde, na década de 60, surgiu um novo vírus. O HIV - cuja infecção provoca a destruição do sistema imunitário, sendo transmitido através de relações sexuais ou transfusão de sangue -, que gozou dos seus tempos de maior fama nos anos 80, reclamou a vida, até agora, a mais de 30 milhões de pessoas. Quanto a mim, se há vírus misterioso é este. O seu surgimento é abrupto e silencioso, pois não conseguimos recuar na História e encontrar evidências de que ele já existisse. As teses que explicam o seu surgimento são múltiplas. Eu não acredito nas mais consensuais. Morreram pessoas de todas as orientações sexuais, mas foi a homossexualidade aquela que foi visada sob todas as formas e feitios. Foram os homossexuais e bissexuais os visados nas homilias tresloucadas que muitos padres administraram por esse mundo fora. A homofobia voltou a ganhar imenso terreno na sociedade internacional, recuperando aquele que tinha perdido durante os anos 60. Pessoas como essa inquisidora adorada, Teresa de Calcutá, difundiram a mensagem de que o HIV foi castigo divino bem merecido. Nada disto foram emissões de apoio ou solidariedade para com pessoas que estavam a morrer, muito pelo contrário, e não aconteceu na Idade Média.

Há 10 anos, o H1N1 voltou a provocar uma pandemia, com centenas de milhares de mortos em todo o mundo, mas nada que se pudesse comparar ao passado histórico. Lembro-me, na altura, quando o vírus surgiu novamente, com um nome comercial, Gripe A, de prometerem milhões de mortos em todo o mundo. Lembro-me do medo que os mesmos poderes de hoje espalharam na consciência colectiva. E lembro-me de que, após tanto cataclismo anunciado, tudo voltou à normalidade. E lembro-me também de que nenhum Estado de Excepção foi decretado. À data em que este texto é publicado, 'apenas' mais de 72 mil pessoas foram vitimadas, desde que o surto de Covid-19 foi primeiramente notado em Dezembro de 2019, na China, e ao que parece todas as nações do mundo atingirão, em poucos meses, a tal rota decrescente da tal bem-dita curva de infectados. Mas com todo este historial relatado, o que faz o coronavirus ser diferente de outras maleitas como o HIV ou o H1N1, ao ponto de ter honras de Estado de Emergência?

Uma guerra invisível:

Neste momento, guerra é a palavra de ordem. Os Media e o poder político usam-na com a maior desfaçatez, tentando convencer os cidadãos que os tempos que hoje vivemos são comparáveis aos tempos da 2ª Guerra Mundial. Será um vírus infeccioso, com uma muito reduzida taxa de mortalidade, comparável à blitzkrieg do III Reich? Tem sido dito que o coronavirus tem deixado um rasto de morte industrial. Será isto comparável à verdadeira indústria de morte que foi o Holocausto? Será isto comparável à destruição de cidades e derrube de economias inteiras que alastrou todo o mundo, antes e durante a 2ª Guerra Mundial? Será isto comparável aos 100 milhões de mortos, em resultado de guerra, entre 1914 e 1945? Não é. É um insulto afirmar que há comparação possível. Quem o faz não quer sensibilizar as pessoas para os riscos da actual pandemia. Fá-lo no intuito de disseminar viralmente o medo. Num registo puramente semântico, quanto a mim, o uso do vocábulo "guerra" também não é uma opção saudável. As guerras são fenómenos inventados pelo ser humano, e o vírus não combate nenhuma guerra connosco. As crises de saúde pública não se combatem com opções autoritárias e com "um, dois, esquerdo, direito". Crises de saúde pública são evitadas, sim, com financiamento e melhoramento do sistema nacional de saúde. Como é sabido, na esmagadora maioria das nações do mundo, essa aposta orçamental nunca foi uma prioridade. Em muitos casos nem se quer existe um sistema nacional de saúde. E quando a saúde é disponibilizada só para alguns, e quando o Estado não assume o seu papel colossal e exclusivo na saúde, pagando justamente aos profissionais de saúde (e não é só desde ontem que são ingratamente remunerados, como a atenção de muitos parece ter notado), não devem haver surpresas quando as coisas tremem numa eventualidade como esta que vivemos.

O que soçobra:

A União Europeia cava a sua sepultura a passos rápidos. As economias dos países europeus funcionam a meio gás. As vidas de muitos cidadãos estão intermitentes. Ignorar a factualidade de qualquer evento pandémico é um acto criminoso que qualquer estado pode cometer. Exagerar as medidas tomadas ante qualquer crise - particularmente as medidas que colocam em risco os cidadãos - é um acto irresponsável. O Estado de Emergência nunca devia ter sido levado a cabo em Portugal porque, em primeiro lugar, a actual pandemia não justifica a estagnação da actividade socioeconómica da nação. A economia parou, e com isso, no futuro não muito distante, serão os cidadãos que terão de pagar essa estagnação. E por enquanto ainda estamos em estado de estagnação. Uma eventual recessão, em Portugal e no mundo, será inevitável. Pior que estar parado é andar para trás. Um artigo publicado no site da International Marxist Tendency, por Hamid Alizadeh, com o título Coronavirus pandemic opens a new stage in world history, é bastante eloquente na explicação da crise económica que está por chegar. A República Portuguesa e muitos outros estados europeus não estão preparados para enfrentar a depressão que se aproxima. Haverá novos cortes salariais, haverá um aumento do desemprego, e por consequência um aumento da pobreza, e a austeridade irá regressar. Claro que esta crise só afectará a Classe Trabalhadora. Aqueles que detêm os meios de produção económica manter-se-ão seguros nos lugares que ocupam, como acontece em qualquer crise económica. A única hipótese que Portugal tinha, para atenuar os efeitos desta crise, seria não ter fechado o país e, em vez disso, ter restringido selectos territórios nacionais à quarentena. Mas o mal já está feito. Os despedimentos já começaram, e isso é apenas o começo. Muitos pequenos negócios não terão capacidade para continuar a sua actividade no aftermath deste Estado de Excepção. Por outro lado, com este Estado de Emergência, a Justiça - uma base fundamental dum Estado de Direito - foi parcialmente suspensa, sendo que neste momento só os casos considerados graves é que continuam a receber atenção dos tribunais, e o Governo recebeu poderes excepcionais que, sinceramente, assustam-me. Por outro lado, enquanto haverá muitos cidadãos que enfrentarão dificuldades sérias, o Governo e o Presidente da República já discutem, com as grandes empresas e os bancos privados, planos de contingência para que estes tenham direito de exclusividade ao barco salva-vidas. E o mais curioso disto tudo é que, no imediato, todos estes detentores do poder económico passaram de neoliberais económicos a intervencionistas. É caso para dizer que, apesar de não haver peregrinação a Fátima em Maio, os milagres não deixam de acontecer. Outro aspecto quase distópico do Estado de Emergência foi a proibição do direito à greve, e em Portugal as políticas, nesse sentido, foram ainda mais duras que na Itália ou em Espanha. O direito laboral não pode ser encarado como uma mera trivialidade, quando assim é, abrimos precedentes gravíssimos na construção democrática dum estado. Tais políticas só devem ser implementadas quando a própria integridade democrática ou nacional está por um fio. Estes problemas graves que elenquei, sobre o actual Estado de Excepção, já foram expostos por individualidades como o jornalista Daniel Oliveira ou a historiadora Raquel Varela. Loucos como eu, certamente... A prioridade, julgo eu, será cessar com a escavação do túmulo e pôr um fim a este atrofio socioeconómico. Quanto mais nos aventurarmos nele, mais nos arrependeremos mais tarde. 

Quanto à Europa, o próximo passo de desintegração da União Europeia já foi dado, e esse teve lugar no dia em que muitos dos seus decisores políticos decidiram que a Itália e a Espanha não têm direito a apoio financeiro para enfrentarem os problemas económicos que já se fazem sentir. A dívida pública italiana, que já é alta, vai escalar a valores medonhos, e será na Itália que, possivelmente, o próximo passo de desintegração da UE será dado. E quantos mais saírem, mais célere será a concretização do efeito dominó. Triste mas necessário fim, custa-me dizer. Num panorama mais geral, o continente europeu subscreveu a ficha da sua capitulação quando aceitou suspender a sua actividade económica. Ficaremos à mercê da águia de rapina, no outro lado do Atlântico, e do dragão no oriente da Ásia. Tudo o que eu espero é que haja presença de espírito por parte dos europeus para atenuarem a queda que todos iremos sofrer. A partir de agora o próprio conceito de Estado Social está em causa. Se o eleitorado não agir com determinação para evitar tal desfecho, estaremos entregues aos lobos.

Alternativa Socialista:

O artigo que há pouco mencionei, da International Marxist Tendency, apesar do relato perturbador mas realista que faz, também aponta para políticas concretas que devem ser tomadas no imediato - e que eu sei que não serão tomadas - para refrear o choque financeiro que se vai abater sobre a Classe Trabalhadora. Passo à citação de algumas, tomando a liberdade para eu próprio traduzir do inglês:
  • Em todo os  países, temos de exigir a nacionalização de todas as instituições de saúde privada. Toda a Saúde e a indústria farmacêutica deve ser imediatamente nacionalizada sob controlo dos seus trabalhadores para que seja planeado um imediato e efectivo alívio às necessidades daqueles que precisam.
  • Salários completos por motivos de doença devem ser garantidos a todos (...) ou devem ser garantidos subsídios equivalentes a um salário para os trabalhadores que perderam o seu emprego. Pais e cuidadores devem continuar a receber um salário para continuarem a zelar pelas crianças (...) afectadas pelo encerramento de escolas e infantários.
  • Rígido controlo de preços deve ser imposto em todos os bens essenciais. Nacionalização de todas as fábricas que produzem produtos de higiene e equipamento médico escassos.
  • Residências vazias usadas como veículos de especulação pelos imensamente ricos devem ser levadas ao controlo público para que seja fornecido alojamento aos sem-abrigo.
  • Os recursos necessários para combater a pandemia [em toda a sua dimensão socioeconómica e financeira] não serão encontrados aumentando o défice orçamental ou a dívida pública, que, em contrapartida, seria paga pelos trabalhadores, posteriormente, mediante austeridade. Um imposto sobre as grandes corporações deve ser introduzido. Devemos também elevar o apelo para a nacionalização dos bancos com via a direccionar os recursos onde estes são necessários, fornecendo financiamento às famílias, aos pequenos negócios e sectores afectados pelo shutdown.
Estas linhas de acção são uniformes para qualquer nação. Só falta a coragem para as assumir. Claro que, para muitos, isto não é mais do que uma terrível receita congeminada por Lúcifer... haveria elogio mais biblicamente poético que esse?


Com franqueza:

Em última análise, o meu desagrado para com a imposição dum Estado de Excepção advém da própria natureza da pandemia. Como já afirmei num outro parágrafo, o HIV, ou até mesmo o H1N1, deixaram um rasto de casualidades muito mais preocupante e assustador. Falando do HIV, que reclamou vidas sem fronteiras há 20 e 30 anos, a pandemia nunca foi assumida universalmente como um caso grave de saúde pública a ser resolvido. E quando era olhado com seriedade, era também olhado com desconfiança e preconceito, à semelhança do que hoje ainda acontece. Não posso compactuar que o mundo tenha assistido impávido e sereno, com nada mais que esgares de desprezo, para a suposta imoralidade  e morte de milhões de pessoas, e hoje acorde afirmando que esta é que é a grande crise dos nossos tempos. Revolto-me que nos comportemos como burgueses amedrontados com uma pandemia tímida, quando o continente africano é avassalado por epidemias mortíferas que ceifam a vida de crianças. Espanto-me com a facilidade com que se tem visado a juventude como irresponsável e egoísta, vindo tais críticas das gerações que engoliram a patranha de que o HIV era a doença dos gays. Envergonho-me que o heroísmo do século XXI seja ficar passivamente em casa, e que indivíduos - os tais 'novos-padres' dos noticiários - que, agindo como se fossem herdeiros de Prometeu, a transbordar de virtude, ordenem às pessoas que não saiam de casa, ignorando que há muita gente que não tem uma casa abastada ou espaçosa onde possa permanecer semanas a fio.

E estou francamente cansado...


A não ser que haja um cataclismo global notável, só dedicarei mais um texto ao coronavírus. Será sobre a relação entre o Covid-19 e a Fé dos crentes religiosos. Se o leitor, desde o princípio, chegou aqui, fico-lhe francamente agradecido.

terça-feira, 31 de março de 2020

Ficar em Casa? (Poema)

Um poema para os inconformistas singulares em tempos depressivos de crise, como este.

Ficar em casa e fazer nada
Agora é o melhor remédio,
Dizem-nos com cara fechada
Enquanto tentamos matar o tédio.

Ficar em casa e fazer pouco
É o que muitos de nós fazemos
Enquanto olhamos o televisor oco.
Bom é que disto nos lembremos.

Ficar em casa e fazer muito
Diz-nos o pivot à secretária
Com um prometaico intuito
E uma moralística áurea.

“Por favor, em casa fiquem”
Vão suplicando pelos quatro cantos
Desta nação recheada de gente de bem
Vestida com imaculados sacros mantos.

“Não saiam de casa, por favor”
Apelos como romarias estoicas
Proferidas com um beato rubor
E com notórias artes prosaicas.

“Sugerimos que fique em casa”
Repetem-se com a ladainha missal
Enquanto a vida se atrasa,
E a comida ficará sem sal.

E a Igreja já está vazia
E foi dispensada toda a romaria.
A fé desertou os fidelíssimos.
Os Media estão felicíssimos.
O sacerdote saiu para férias
Falar ao patrão de coisas sérias.
Convocam a adesão à guerra
E sepultam liberdades debaixo de terra.
Protege-se todo o ancião
Isolando-o num lar de solidão.
Acode-se o magnata empresário
E todo o banqueiro fragmentário,
Queixosos dum encargo malvado
Opositores à socialização do Estado.

Uma fábula de calamidade é contada
Deixando-nos a consciência marcada.
Apelam a uma passiva razão
E tudo isto é uma saturação.
Há um prognóstico reservado
Para uma sociedade de atestado,
E o futuro que se avizinha
Caminha uma fina linha.
Há um novo heroísmo,
Que alegam interceptar-nos do abismo,
Que se traduz em ficar em casa
E a lendárias crónicas embaraça.
Afirmam ser o Armagedão que não se vê
E quem nisto crer, treslê.

Uma estrada erguida em contradições
Para combater o inimigo viral
Pavimentada para todas as estações
Com excepção do frio invernal.

Houve centúrias em que era Morte
Que brotava nos campos europeus
E não houve preces à sorte
Que chegassem aos ouvidos dum deus.

Houve cidades em cemitérios transfiguradas
Por uma negra pandemia que nasceu,
Que deixou vozes sepulcrais e silenciadas
Não mais esperando por Prometeu.

Houve medo para lá do concebível
Com destronadas torres e tiros na rua
Trazendo veneno ao coração sensível
Roubando a beleza da própria Lua.

Londres foi abatida por ferro e fogo,
Uma história que ainda me arrasa.
Muitos pulmões ficaram sem fôlego
Mas os londrinos não ficaram em casa.

Vender a liberdade e obedecer
Dramatizar um pseudo-heroísmo
Ficar em casa e tudo esquecer…
Mas haverá um socioeconómico abismo.

Não morremos da doença, morremos da cura
E o lacrimoso Augurey só já tem uma asa.
A solidão alastra numa sombra escura,
Teremos mesmo de ficar em casa?

Morremos de uma cura ou uma doença
E os mortos já nem têm um sudário.
Partilho esta mente em verso que pensa,
Queremos mesmo um cárcere domiciliário?


Escrito entre 23 e 30 de Março de 2020