domingo, 14 de agosto de 2022

Um Crime Anunciado

Anteontem, um crime que tinha sido anunciado 33 anos antes foi efectuado e, com azar, pode atingir o seu hediondo objectivo derradeiro: o assassinato de um escritor por fazer uso do seu universal direito de se exprimir livremente. Sir Salman Rushdie, autor anglo-americano de origem indiana e muçulmana, 75 anos de idade, é um dos maiores embaixadores das letras inglesas das últimas décadas e, amiúde, por motivos não directamente relacionados com o conteúdo da sua obra literária, um dos mais famosos escritores vivos, tendo sido também professor universitário a título de convidado. Sobre a sua bibliografia sei muito pouco. Tanto quanto o meu conhecimento alcança, o palco da acção dos seus romances situa-se geralmente na Índia e as suas estórias estão ligadas à corrente do realismo mágico. Com excepção da Fátua que foi lançada - e que é um dos assuntos primeiros deste texto -, o que conheço concretamente sobre Rushdie resume-se a debates e intervenções, sobre selectos temas, que ele tem feito ao longo das duas últimas décadas (sei, por exemplo, que o autor é ateu), e sei que ele era amigo de duas grandes referências intelectuais para a minha pessoa: Christopher Hitchens e José Saramago.


Em 1988, Salman Rushdie publicou um romance, Versículos Satânicos. O livro foi pessimamente recebido pela comunidade islâmica internacional, que sempre que algo não ortodoxo é dito sobre o seu profeta, levanta-se numa gritaria imensa e dedica-se a um desporto que os fanáticos adoram: a queima de livros. No imediato foi isso que aconteceu com a nova obra de Rushdie. Desde Londres a Islamabad, fogueiras públicas foram ateadas, com os Versículos Satânicos como combustível. A oeste da Península Arábica, o romance foi bem recebido pelo público e pelos críticos literários. No Reino Unido, onde o autor residia na altura, a classe política dividiu-se em condenações e elogios… e não, esta não foi uma previsível divisão de Esquerda e Direita. Elogios a Rushdie houve-os em ambas as alas, por motivos variados, assim como as condenações. Entretanto, na capital da República Islâmica do Irão, o Ayatollah Khomeini tinha emitido uma Fátua - decreto absoluto do Supremo Líder do Irão sem hipótese de revogação, a não ser pelo próprio Supremo Líder -, ordenando todos os muçulmanos à necessidade moral de assassinar Salman Rushdie e todos aqueles que estivessem envolvidos com a publicação da obra. Anos mais tarde, o seu sucessor e actual Supremo Líder, Ali Khamenei, reforçaria a necessidade virtuosa da Fátua oferecendo uma recompensa de 3 milhões de dólares à ovelha cega que cometesse o homicídio… em nome de uma alegada religião da paz. Desde então, foram diversas as tentativas de atentado à vida de Rushdie, a ponto da polícia britânica ter sido destacada para assegurar a integridade física do escritor, e o então tradutor do livro para japonês, Hitoshi Igarashi, foi assassinado em 1991. No Reino Unido, perante a Fátua de Khomeini, vários deputados do Partido Conservador e do Partido Trabalhista optaram por não defender o direito de liberdade de expressão de Rushdie e antes preferiram juntar-se ao lamaçal de condenações. O conservador Norman Tebbit rotulou Rushdie como um "notável vilão" (uma desforra, certamente, das críticas que Rushdie já havia articulado no passado sobre a fé cristã), e o deputado trabalhista Keith Vaz apelou à censura dos Versículos Satânicos. Desde a Fátua e dos Versículos Satânicos que Rushdie é considerado um escritor controverso (apesar de eu considerar que, enquanto ateu e crítico da religião, é um pensador bastante moderado e contido), constantemente ameaçado de morte por fundamentalistas islâmicos e pelo Estado Iraniano, não obstante também ter sido defendido em praça pública por admiradores e colegas escritores, entre os quais os já referidos Hitchens e Saramago - estes sim, muito mais radicais nas críticas que expressaram relativamente à religião e, em especial, às religiões abraâmicas. Felizmente, Saramago e Hitchens faleceram sem alguma vez terem sido vítimas de um ataque motivado por ódio religioso. Salman Rushdie não teve essa sorte.


Foi há dois dias, no Estado de New York, EUA, pouco antes de dar uma palestra no Instituto Chautauqua, que Salman Rushdie foi violentamente esfaqueado por um desgraçado de 24 anos chamado Hadi Matar. Rushdie foi golpeado em sítios tão diversos como o pescoço, o abdómen e uma mão, tendo sofrido danos consideráveis no fígado. O agente literário de Rushdie tem adiantado que o escritor corre o risco de perder um olho. Imagino eu que alguns golpes terão sido desferidos no rosto. Felizmente, a criatura foi neutralizada por atendentes do evento e detido pela polícia. Oficialmente, ainda não se conhecem as motivações de Hadi Matar para tentar matar tão sereno escritor, já idoso, todavia, não é necessário ser um génio para deduzir as suas razões se tivermos em conta que este indivíduo professa a corrente xiita da fé islâmica, aquela que venera o Ayatollah do Irão como líder religioso máximo do Islamismo. 


Rushdie, no hospital, já acordou. A Fátua quase foi cumprida, mas o escritor ainda respira e o inimigo da liberdade vai para o cárcere. Mas este que vai para a prisão é apenas um soldado raso, manipulado e torturado por uma vida de medos e ilusões e promessas de uma esplêndida vida depois de esta que vivemos nesta Terra. Os seus mestres tiranos, negando a liberdade aos seus súbditos, gozam-na e quase abririam uma garrafa de champanhe não tivesse Rushdie sobrevivido, e não fossem eles abstencionistas do álcool como manda o Alcorão. Pelo menos é o que eles garantem. Acredite quem quiser.


As sociedades seculares têm um grande problema em mãos. É um problema antigo, mas que se vai mutando com o passar dos tempos, com a transformação de circunstâncias, pensamentos e conjunturas. O que fazer com as religiões que usam da violência e/ou do discurso de ódio para fazer avançar as suas agendas? O que fazer com determinadas igrejas cristãs manhosas que escravizam mentalmente os seus fiéis? O que fazer com as mesquitas fundamentalistas que continuam a funcionar em culturas que rejeitam os mais basilares direitos humanos? Temo que, nesta sociedade de tolerância que felizmente se vai fortalecendo, pouco a pouco, a liberdade religiosa está a ser sobreposta à liberdade de expressão. A partir do momento que criticamos um escritor, por criticar uma religião, apelando a que as pessoas não ofendam esta ou aquela religião, estamos a oferecer santuário seguro às vozes odiosas que apelam à eliminação desse escritor que lhes ofereceu crítica. É um paradoxo ideológico do Século XXI: muitos movimentos progressistas, em nome da defesa da liberdade e dos direitos humanos, optam por tentar calar críticas à religião - ainda que uma crítica de uma religião não implique nenhum comprometimento da liberdade religiosa, da mesma forma que criticar um partido político não implica um ataque à liberdade política -, mesmo que essas práticas e dogmas religiosas/os criticadas/os representem uma ofensa a esses mesmos direitos humanos e liberdades que os movimentos progressistas dizem defender. Que direitos humanos e liberdades são esses, colocados em perigo por fundamentalistas cristãos e islâmicos? Direitos das mulheres. Direito à autodeterminação de género. Liberdade religiosa e separação entre Estado e Religião. Liberdade política. Direito à apostasia. Liberdades do foro sexual. A pessoa leitora deste texto poderá inquirir porque é que tantos liberais e progressistas alinharam neste paradoxo. Eu próprio me pergunto porque é que quando chega a hora de se defenderem causas feministas ou direitos LGBTQ, critica-se tudo o que de direito é justo criticar, com excepção das práticas de comunidades islâmicas e das políticas de regimes islâmicos ditatoriais. Um tiro no pé, quanto a mim. O filósofo esloveno Slavoj Zizek tem explicações interessantes para este esquisito fenómeno. Segundo Zizek, muitos progressistas elegem por não condenar grupos islâmicos pelas suas práticas e posições, temendo serem acusados de racismo, julgando estes que ser islâmico é pertencer a uma etnia. Ser islâmico não significa pertencer a uma etnia. Ninguém nasce crendo numa religião. Ser muçulmano, sim, é uma etnia, tal como Salman Rushdie… que não era islâmico. Se dúvidas houver do que escrevi, repare-se no seguinte: raro é o órgão de comunicação social que está a noticiar a religiosidade do atacante. Porquê? Não querem identificar uma pessoa islâmica como perpetuadora desse crime. É relevante essa informação? Muito. 33 anos antes um amo seu tinha emitido a tal Fátua. Temos aqui o resultado.


O esfaqueamento de Rushdie é mais que uma tentativa de homicídio. O ataque a Rushdie é um ataque a qualquer pessoa defensora do Espírito Crítico do indivíduo e é um ataque contra a sociedade secular. No que me concerne, o ataque físico a Rushdie é um ataque a toda a sociedade ateísta mundial. Aqui na Europa, e na República Portuguesa, toda a vigilância é pouca e o obscurantismo está sempre à espreita.


Nota final:

JK Rowling exprimiu solidariedade por Salman Rushdie na rede social Twitter. Um internauta, comentando a publicação, ameaçou Rowling dizendo que ela seria a próxima. Rowling já reportou o caso à polícia. Aqui será certamente um daqueles lunáticos que acusa JK de transfobia e que julga que ela é o Hitler renascido. Há gente doida para tudo. Há pessoas fascistas que nem sequer sonham que o são.


Domingo, 26 de Termidor CCXXX

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Verão em Chamas

A pobre alma que estabeleceu que o Verão é a melhor estação do todo o ano, não o afirmou, certamente, passeando na rua enquanto estavam 40 e tal graus à sombra. Se me perguntassem, quando eu tinha 13 anos, nessa remota época em que para mim começava o ano lectivo em Setembro e terminava em Junho do ano seguinte, haveria talvez uma probabilidade considerável de afirmar, com todos os sinceros dentes que tenho nesta boca, que sem réstias de dúvidas o Verão é a melhor das estações anuais. Afinal, Verão significava três meses de férias, sem escola, com tempo para desfrutar a meu bel-prazer. Se soubesse o que sei hoje, teria quintuplicado esse aproveitamento. Não é que eu tenha aproveitado mal a minha infância e a minha adolescência, mas se soubesse o que sei hoje, teria feito mais, teria desobedecido mais, teria feito mais maluquices, teria superado a linha mais vezes e, já depois dos meus 16 anos, teria bebido da taça hedonística muitas mais vezes. Isso foi outrora, todavia. A realidade, perante as lentes de quem já tem uma mente algo calejada, e de quem já não tem um Verão inteiro para usufruto de férias, é bem diferente. E, portanto, jamais sendo sinónimo de lazer total, quanto mais se arrasta este calor, mais o Verão se traduz em inferno.

Recordes constantemente batidos de média de temperaturas máximas. Cada vez mais semanas consecutivas onde o calor extremo se instala. Secas de rios e lagos inteiros por esse mundo fora onde nesta época do ano se instala este clima seco que até por dentro nos evapora a água. Desertificação dos solos e escassez de água para desgosto de tantos mamíferos - entre eles também os humanos - que amiúde lhes finda a vida devido à consequente desidratação. Glaciares derretem a ritmos velozes nos círculos polares ártico e antárctico, assim como no cume das mais elevadas montanhas deste mundo, provocando o nefasto aumento dos níveis do mar que um dia atormentará muitos milhões de pessoas, inclusive as que vivem no litoral português. Tirando os luminosos acessórios dos quais o Verão tira proveito, alentando a sua tão preciosa publicidade - praia, esplanadas, banhos e férias, nomeadamente - o clima do Verão resume-se ao que eu expus neste parágrafo. Argumentos e manobras de contraditório haverá para esgrimar contra aquilo que eu penso do Verão, e, antevendo o que poderão ser alguns desses argumentos, confesso não ter contra-argumentação sólida. Todavia, dificilmente alguém me mudará as ideias e sentimentos que eu tenho vindo a nutrir relativamente a esta fornalha sazonal.

O único motivo real que eu tenho para manifestar apreciação por esta estação de clima dantesco é as oportunidades que tal clima sugere quanto a idas a praias e piscinas. Se há algo que eu adoro, é de nadar na água. Irónico, portanto, que a estação que mais hidrogénio faz transformar do estado sólido para o estado líquido, e do estado líquido para o estado gasoso (fazendo a água 'desaparecer', portanto) é o Verão. O Verão é a estação que mais convida o ser humano à água e é a estação que a faz evaporar. Um clássico da vida a dar com uma mão e a tirar com a outra. E escusado seria sublinhar que a singular razão pela qual as pessoas procuram constantemente a água é porque esta mesma estação peganhenta, tão adorada pela nossa cultura contemporânea, evapora activamente a água que corre nos nossos corpos e que tanta falta nos faz, por mais que não seja pelo facto de 70% da constituição humana ser água. Para remate da primeira parte deste texto - as minhas negativas considerações relativas ao Verão - enumero mais umas quantas particularidades que todos os dias me fazem desejar que este clima acabe: o lixo que mais facilmente entra em decomposição (devido às altas temperaturas) e que devido ao processo químico emana mais cheiros bafientos do que em outra qualquer altura do ano; as terríveis incidências de raios ultravioleta (e cada vez mais incidentes devido aos ataques da Indústria à Camada de Ozono); as queimaduras solares que se podem tornar cancerígenas; a comida que, se não estiver guardada no frigorífico, rapidamente é corrompida pela labareda que são os quentes dias de Verão; as noites abafadas em que mal dá para pregar olho ou permitir que dois corpos adormeçam abraçados. E ainda nem se fez menção aos incêndios…

Chegando, então, à segunda parte deste meu texto, decidi abordar um assunto sobre o qual muito raramente manifesto opiniões. Esse assunto é uma das mais endémicas e problemáticas crises que historicamente afectam Portugal: os incêndios. 

Quase ninguém gosta de incêndios. Quem estiver a ler este texto poderá ficar em choque ante a minha escolha em empregar o vocábulo "quase" antes de "ninguém". Decerto seria óbvio e consensual que absolutamente ninguém gostaria de ver arder uns quantos hectares de floresta enquanto habitações e, tragicamente, alguns animais e até pessoas, morrem por consequência das chamas ou dos fumos sufocantes. Contudo, para mim será o "absolutamente ninguém" que se me afigura como uma avaliação excessivamente totalitária. Há sempre quem ganhe com catástrofes, sejam elas naturais ou humanamente provocadas. Acontece que os incêndios, como assumo que seja do conhecimento geral, podem ser catástrofes de índole natural ou artificial. Relativamente a catástrofes naturais, no âmbito daquilo que está ao alcance da governação e administração de um estado, pouco mais se pode fazer do que medidas preventivas que visem a salvaguarda de bens materiais, infraestruturas e vidas, sejam animais ou humanas. No caso específico dos incêndios, todavia, mais uma principal política pode ser empregue para fazer frente a este fenómeno indesejado: desenvolver meios tecnológicos e logísticos de combate ao fogo e garantir a existência de uma força humana suficientemente numerosa para levar a bom porto o combate, garantindo bom e seguro equipamento a essa força humana. Quanto a sismos, tsunami, furacões, chuvas ácidas, dilúvios e tempestades de neve, não há mangueira nem braço de força que valha para parar a natureza, sendo a prevenção tudo o que se pode administrar.

Vários são os locais deste mundo fustigados anualmente por incêndios, e receio que mais graves serão os eventos, assim como mais zonas serão palco deste fenómeno, quanto mais nos enfiamos Século XXI adentro. O Aquecimento Global tornará isto inevitável. No Estado da Califórnia têm ardido, nos últimos anos, zonas inteiras que equivalem a um terço ou mais do território total de Portugal continental. Embora não havendo, nesta língua de terra plantada à beira-mar, fogos selvagens como aqueles que se registam no Verão, noutras zonas - apesar de muita gente julgar que em Portugal é onde acontece o pior -, os incêndios são um problema incontornável que todos os anos provoca prejuízos de muitos milhões (apesar de haver alguns que enchem os bolsos), ceifa vidas, destrói habitações, põe em perigo ecossistemas locais e elimina florestas inteiras, traduzindo-se num problema ecológico de grande ordem. O Pinhal de Leiria, ordenada a sua plantação há mais de 700 anos, quando Dinis I era Rei de Portugal, foi consumido no mesmo Verão em que sucedeu o infame incêndio de Pedrógão Grande que implicou elevada mortandade e da mais horrível. Foi o Verão de 2017.  Do incêndio do Pinhal de Leiria temos a certeza que foi artificial, ou seja humanamente provocado… crime, isto é. Fogo posto. Um delito cuja pena devia ser bem mais severa do que aquilo que amiúde é, sendo um acto criminoso que em si encerra vários crimes, desde a ordem assassina até à ordem ambiental. E casos como este houve outros tantos, e continuará a haver porque a espécie humana está enredada numa maldade e numa ganância que não assistem nenhuma outra espécie conhecida. Verão de 2003, outro Verão de recordes de temperaturas altas e incêndios por todo o território nacional. 423 mil hectares arderam, 18 pessoas perderam a vida e 85 ficaram sem tecto. Eu próprio, passando férias na Cidade de Faro, apesar de então ter 4 anos de idade, me recordo do constante burburinho nos noticiários sobre o país a arder, e em especial o Algarve. Já um quarto do Pinhal de Leiria tinha sido incinerado neste Verão infernal. Foi neste ano que se registou o recorde histórico nacional de temperatura máxima (dentro dos limites do estabelecimento da meteorologia registada em Portugal): 47.4 graus celsius na Freguesia da Amareleja, Baixo Alentejo. Dentro dos registos, o Verão de 2017 é o rival do Verão anteriormente referido em termos de área ardida, contudo, no que concerne a vítimas mortais, estritamente falando dentro dos registos, não há memória de outro Verão como este. Para cima de uma centena de vítimas mortais, e a parte mais curiosa deste relato lúgubre é que, nesse ano, o grosso dos incêndios calamitosos não se cingiu ao Verão. No início do Outono não só se registaram imensos fogos como o número de vítimas mortais chegou às dezenas.


Portanto, já sabemos que incêndios há muitos, e já sabemos que tanto são catástrofes naturais como é fogo posto. Pondo de lado os eventos de fogo posto - que representarão uma amostra considerável dos incêndios em Portugal -, devendo estes serem bem prevenidos por uma guarda florestal activa e severamente punidos quando acontecem, irei, a partir daqui, focar-me sobretudo na faceta natural e não deliberada dos incêndios.

É do meu entendimento, de acordo com as análises de especialistas e outros intervenientes que analisam o fenómeno, que uma das principais causas para a constante sucessão de incêndios em Portugal, Verão após Verão (e noutras estações, inclusive, como já houve hipótese de constatar), é o ineficaz ordenamento do território florestal. Por um lado temos excesso de eucaliptos nas nossas florestas - árvore de grande rendimento, quanto aos recursos que fornece, mas também de facílima combustão. O eucalipto representa cerca de 25% de toda a floresta portuguesa e, em época de incêndios, costuma ter sempre a maior representatividade entre as espécies de árvores ardidas. A sua plantação tem vindo a crescer exponencialmente durante o último quartel do século passado e início do Século XXI. Está aí o resultado da monocultura intensiva, em nome de altos rendimentos, de uma árvore-combustível. Aliada desta realidade fumegante é a poluição dos solos da floresta portuguesa. Tantos são os terrenos saturados de lixo ou de vegetação de fácil combustão, sejam estes de responsabilidade privada ou do Estado, que a sua probabilidade de incineração se multiplica. São os sucessivos governos que não querem empreender dinheiros públicos bastantes na limpeza e vigilância das florestas, assim como são os grandes proprietários que não têm pachorra para limpar os seus terrenos, comprometendo a República. É nesta realidade de ordenamento do território que os criminosos incineradores têm a sua vida facilitada. É também nesta realidade que o Aquecimento Global - que implicará graves consequências a esta nação mediterrânica no futuro próximo - representa a derradeira acha na fogueira para que o território arda todos os anos, havendo anos melhores que outros, apesar de tudo. 

No momento em que publico este texto, atendendo aos dados disponíveis em fogos.pt, há 4 fogos activos e um total de 500 veículos rodoviários, 15 veículos aéreos e 1667 bombeiros e outros operacionais a combater as chamas em todo o país. Nos últimos dias, os distritos mais fustigados têm sido Guarda (com um trágico incêndio no Parque Natural da Serra da Estrela), Vila Real, Braga, Porto, Viseu e Lisboa. De acordo com o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), a entidade que administra o site que mencionei há pouco, este ano já arderam 50 mil hectares de terreno, batendo já os números do ano anterior mas continuando aquém de outros anos. Há dados da Associação Portuguesa de Dados para o Bem Social que avançam que, no conjunto  entre 1980 e este ano, já ardeu o equivalente a cerca de metade do território nacional continental. Recuar antes dos anos 80 torna-se difícil, em termos de dados precisos e concretos, porque a compilação e organização de dados relativamente ao fenómeno dos incêndios, infelizmente, é uma realidade bastante recente e não era uma dor de cabeça à qual a Ditadura se queria entregar, e tampouco era um tema que a Ditadura queria ver discutido nas bocas do povo e de eventuais especialistas. Para todos os efeitos, no regime fascista, ainda que não estivesse, tudo tinha de parecer que estava bem. Ainda que estas coisas não sejam do conhecimento público, os anos 60 em Portugal ficaram repletos de incêndios. Em 1966 a Serra de Sintra ardeu como nunca mais voltou a arder, e 25 militares perderam a vida a combater as chamas. Nessa época, nem meios aéreos havia para o combate de incêndios. Salazar tinha outras frentes em que empregar meios, nomeadamente, em por soldados e munições em África para combater uma guerra absurda. Infelizmente, graças àquilo que era a desgraçada política do regime fascista, há uma escassez de dados para se compreender a dinâmica do fenômeno incendiário em Portugal, durante boa parte do Século XX, quando o Aquecimento Global já estava a provocar consequências notórias no clima. Onde quero eu chegar com este pequeno desvio historiográfico sobre os incêndios portugueses? Sobretudo, é meu interesse salientar que os incêndios não são uma novidade dos últimos anos, nem são uma realidade exclusiva dos últimos 7 anos do Governo PS. Obviamente, da mesma forma que eu retiro a responsabilidade total, dos incêndios portugueses, das costas do actual Governo, reconheço que o executivo não está isento de culpa. A tragédia do incêndio de Pedrógão Grande em 2017, quando António Costa cumpria dois anos de chefia do executivo, é um clássico exemplo de culpa na administração. Nada justificou a morte de 66 pessoas, maior parte das quais na estrada nacional, enquanto tentavam fugir ao fogo. Já sabemos que o SIRESP falhou e que toda a comunicação entre as várias entidades ficou comprometida. Não podia ter falhado. A Autoridade Nacional de Protecção Civil não pode voltar a falhar daquela forma. Na eventualidade de incêndios, uma das primeiras prioridades é o corte das estradas em risco. Ainda assim, este ano, já nos têm chegado imagens de carros a circular em estradas com fogo à direita e à esquerda. Não é impossível que semelhante tragédia se repita.

O fenómeno incendiário não é uma culpazinha deste ou daquele Governo. É uma consequência do nosso sistema de organização do território e das florestas, do caminho das medidas de prevenção que começou a ser feito demasiado tarde, no tempo histórico desta nação, e é uma consequência do Aquecimento Global. Outras zonas, como a Califórnia, onde os meios são mais e melhores e onde o número de bombeiros a combater um fogo (fogos gigantescos nesta zona do globo!), se for preciso, chega aos 50 mil, têm um problema endémico relativamente semelhante ao caso português, e, com todos os defeitos que os EUA têm, no Estado da Califórnia, há uma elevada profissionalização dos imensos quadros de bombeiros, há uma logística e um poder de combate e prevenção muito maior do que na República Portuguesa… e apesar disso, todos os anos, os incêndios fustigam as florestas californianas. Portanto, reforço a ideia: o porquê é muito maior que governo a, b ou c, e de nada adianta pedir ao Primeiro-Ministro que abandone o seu período de férias e vá para o terreno apagar o fogo, ou exigir ao Presidente da República que vá tirar selfies com os bombeiros e as chamas. Para mal de nós, o que se passa presentemente é a mais pura das rotinas do Verão português.

Apesar de esta ser a normalidade desta estação, não implica que não se possa criar uma nova e melhor normalidade. Algumas das linhas, na minha estimativa, por onde a resolução passa para que tal seja possível têm sido referidas ao longo deste texto: reorganizar o ordenamento do território; reformar a protecção civil; empreender mais fundos e meios tecnológicos nos sectores que combatem e previnem os incêndios; limpar as florestas; punir severamente o fogo posto; supervisionar terrenos privados quanto ao cumprimento das suas obrigações ecológicas e obrigar o Estado a cumpri-las igualmente, e criar condições para a expropriação de terreno quando o bem estar ecológico da República se encontra comprometido; criar condições para uma maior integração das Forças Armadas no combate aos fogos (convenhamos que no plano da logística os militares são especialistas).

De acordo com o Calendário Republicano, estamos no mês quente: Termidor. Se nos valer a sapiência deste calendário, quando terminar este mês, seremos aliviados deste calor.

Quem leu isto até ao fim terá conseguido aferir que eu passo muito bem sem Verão.

Vernes, 24 de Termidor CCXXX