quinta-feira, 25 de junho de 2020

Estátuas

Agora que a poeira já acalmou, saio eu a terreiro. Estátuas. Inerentemente, são blocos de pedra, ou de um qualquer metal como o bronze, trabalhados, para representarem uma qualquer figura humanoide. Os objectivos das suas construções são muitos: memória, prevalência do património cultural, assinalar um marco histórico, enaltecimento dum culto de personalidade, etc. As estátuas não têm vida. As figuras representadas estão sujeitas à arte (ou falta dela) de quem as esculpe, e também estão sujeitas aos caprichos de quem as representa. As estátuas, por vezes, durante o seu tempo de existência - pois nada dura para sempre - recebem mais atenção que a pessoa que pretendem representar durante o seu tempo de vida. Eis a estátua de Fernando Pessoa na esplanada d'A Brasileira. Nunca Pessoa sonhou, a dormir ou acordado, que alguma vez receberia tanta atenção como a sua famosa estátua que ele nunca chegou a contemplar. Outras tantas estátuas permanecem na sua morada sem alguma vez terem recebido a mínima atenção de quem passa. Há ainda habilidosas estátuas que lutam contra o tempo, jazendo no seu local, muitos anos passados do regime que justificava a sua existência. Outras, para desgraça de poucos e salvas de muitos, não resistem a mudanças de regime e acabam por cair ante o poder inafrontável do tempo histórico. É, portanto, racional mas arbitrária a importância, ou carinho, que todos nós nutrimos pela multitude de estátuas que foram erguidas por esse mundo fora. Há estátuas totalmente consensuais. Há estátuas adoradas. Há estátuas detestadas. Há estátuas de que ninguém quer saber, salvo o escultor ou escultora que a ergueu, isso é no caso de ainda viver. Dentro daquilo que é a normalidade do quotidiano, as estátuas são invisíveis. Mas nos últimos tempos, para pasmo meu, que tanto gosto de estátuas e esculturas, foram estátuas que estiveram na ordem do dia.

A minha relação com estátuas é bastante interessante... digo eu, na minha descarada presunção. Vou enumerar porquê. Uma das minhas peças de arte favoritas (e que, ironicamente, nunca a contemplei presencialmente, mas se o fizesse demorar-me-ia, sem exagero, uns bons trinta minutos) é uma estátua (ou uma escultura, se preferirem) que neste momento se encontra em exposição na Galeria da Academia de Florença, o seu título é David (por representar a personagem bíblica homónima) e o seu autor foi um grande humanista e artista do Renascimento chamado Michelangelo. Uma peça de uma estética imbatível. De uma perfeição técnica lendária. De uma irreverência cultural que fez tremer com muitas tradições. De uma beleza assombradora. De uma percepção inspiradora da beleza enaltecida do corpo humano masculino (esse, que muitas aves raras afirmam que, por natureza, é feio e rude). Se, um dia, alguma tragédia lhe acontecesse, eu era bem capaz de verter umas quantas lágrimas. Outra estória, relacionada comigo, sobre estátuas. Um dos momentos definitivos que me acordou para a política foi precisamente o derrube e espancamento de uma estátua. Quando eu tinha 14 anos, e já me interessava sobremaneira por História e pelo porquê do Mundo ser aquilo que é, enquanto jantava, assisti nas notícias, no contexto do conflito russo-ucraniano pela região da Crimeia, ao ataque, por parte de cidadãos ucranianos, a uma estátua de Vladimir Lenin que repousava (salvo erro) em Donetsk ou em Kiev. Eu na altura não consegui discernir totalmente porquê, mas por alguns motivos, que para o assunto não são chamados, achei errada aquela atitude iconoclasta... até porque Lenin, historicamente, nada tinha a ver com o conflito que decorria e ainda decorre. Terceira e última enumeração. Há uma estátua bem próxima de mim, e de que não gosto nada. Ela ergue-se teimosa, quase toldando o Monte da Penha no horizonte se o observador estiver e certas perspectivas, ao nível do edifício da Câmara Municipal de Portalegre, e para ela sou quasi forçado a olhar, como se dum acidente de automóvel se tratasse. É a imponente estátua de João III, Rei de Portugal, o mesmo que tinha tanto ou mais interesse que o próprio Vaticano em trazer a Inquisição para Portugal, para perseguir os judeus e toda a sorte de heresias imagináveis, com todas as consequências socioeconómicas que tal acto importou no Reino de Portugal. A única razão para a estátua ali repousar é o facto de ter sido no reinado de João III que Portalegre se tornou cidade mediante uma Carta de Foral. É só essa a razão para ali estar aquela triste e descomunal figura. Por mim saía hoje. Gentil e educadamente claro, não era necessário recorrer à iconoclastia, mas saia e naquele pedestal que pusessem outra pessoa. Portanto, como vêem, apesar do respeitável trabalho de quem as projectou, esculpiu ou construiu, há estátuas incomodativas, e outras que se tornam mesmo insultuosas. Mas apesar de tudo, devo dizer que, opções estéticas de parte, adoro estátuas em geral.

O movimento social de danificar ou destruir estátuas não nasceu ontem, era aliás muito comum acontecer no Egipto quando o então Faraó se aborrecia com a memória de algum antecessor seu. Já no Iraque, quando o regime totalitário de Saddam Hussein foi derrubado, os cidadãos de Bagdad apressaram-se, epicamente, a mandar abaixo uma enorme estátua que o tirano tinha na cidade. Quem achou aquilo errado ou inapropriado que atire a primeira pedra. E da mesma forma como esse legítimo acto de iconoclastia não recebeu uma cascata de críticas e impropérios, também os não receberam os cidadãos ucranianos que violentaram à martelada (irónico) a estátua de Lenin que mencionei anteriormente. Aliás, muitos por cá e do outro lado do Atlântico aplaudiram entusiasticamente e não fizeram, ao contrário das suas posições nos tempos presentes, nenhum apelo à preservação da cultura e da História. E assim desconstruí o argumento daqueles que, vendo aquela miríade de estátuas atacadas por todo mundo, fizeram um apelo à cultura e ao património histórico, porque, para eles também, há umas estátuas que são mais que outras. A verdade é esta: há estátuas que são puramente políticas, e essas tendem, como já afirmei, a sucumbir com a mudança dos tempos políticos. O que diríamos todos nós se nos cruzássemos com uma estátua de Hitler ou Stalin na rua? Certamente não viríamos, primeiramente, aquelas estátuas como património que deve ser conservado mas sim como culto de personalidade que deve ser derrubado. O apelo à cultura e ao património é legítimo, sim, quando estamos perante peças cuja motivação era plenamente artística ou quando as figuras representadas, políticas ou não, fazem parte ao cânone cultural de um povo, e um exemplo desse tipo de estátuas é a de Afonso Henriques que está em Guimarães. Desta feita, julgo também apropriado clarificar que foi um disparate danificar a estátua de António Vieira, uma vez que ele tinha um pensamento bem avançado para o seu tempo e, sobretudo, é um intemporal escritor lusófono. E dou eu de barato que foram anti-racistas que atacaram a estátua de António Vieira, porque, na realidade, pode nem ter sido isso que aconteceu... em todo caso, esta estátua particular é um grão de areia no Deserto.

A falta de sensibilidade que muitas franjas da sociedade nacional e internacional revelaram perante os esforços de afirmação de muitas pessoas, que se debatem com o racismo, é igualmente gritante. Aqueles que indignados se manifestaram face àquilo que se fez à estátua de Vieira, se acharem decente, adequado ou ponderado reagirem de semelhante forma aos ataques de estátuas como a de Leopold II, Rei da Bélgica, ou a de Jefferson Davis, Presidente da Confederação durante a Guerra Civil Americana, então retirem essa máscara de moralismos e compreendam que, neste preciso momento, se combate uma luta social e cultural que já há algum tempo não tinha tanta pujança como tem agora. Se me pedirem para pensar nas várias estátuas erguidas em memória de Leopold II - dono a título pessoal do território que hoje é a República Democrática (nada democrática, deva-se dizer) do Congo entre 1885 e 1908, território esse explorado por ele com tanta falta de humanidade e liberdade que até indignou e revoltou os colonialistas impérios europeus da época -, e me pedirem para ficar ultrajado com a destruição delas, pois bem, não me peçam isso. O enaltecimento público de um déspota absoluto não é algo que deva ser encarado com leviandade, especialmente tendo em conta de que é uma figura histórica que ainda está muito presente nos nossos dias. Não sabemos ao certo a fasquia de mortandade causada pela ditadura colonial imposta sobre o Congo, naquela época, mas crê-se que tenha ultrapassado o milhão de mortos. Já Jefferson Davis foi só o homem que presidiu à nação separatista da Guerra Civil Americana - os Estados Confederados da América -, combatendo uma guerra fratricida com o principal objectivo de poder continuar a escravizar negros. Felizmente para muitos norte-americanos que a Confederação perdeu a guerra, mas esse passado obscuro ainda hoje está a ser combatido nos EUA, e ainda combate-se em cada estátua pública que queira enaltecer esse desgraçado passado racista e esclavagista. E quem, com alguma razão, afirmar que não devemos fazer julgamentos sobre a História, eu recordo que o século XIX não é uma época assim tão longínqua e que a memória da Confederação, por razões múltiplas, ainda está muito presente, nomeadamente em norte-americanos de pele negra. Em Berlim, por exemplo, chegaram à conclusão de que a estátua que tinham erguido ao fundador dos escuteiros iria ser removida devido às inclinações nazis do indivíduo, e na Universidade de Oxford a estátua erguida em homenagem a Cecil Rhodes irá ter o mesmo destino. Isto prova que estas acções de remoção de estátuas que muitas pessoas hoje consideram ofensivas, devido ao significado e motivação política e cultural intrínsecas ao monumento, pode também ter lugar num plano ordeiro e meramente reformista. Poderá ser colocada esta pergunta: então é legítimo remover estátuas de pessoas que, nos séculos XIX ou XX, tinham opiniões pessoais que hoje consideramos repreensíveis? Tal dá legitimidade a agarrarmos em martelos para abatermos qualquer estátua do Johannes Brahms ou do Richard Wagner - por sabermos hoje que eram indivíduos racistas e anti-semitas (especialmente Wagner) - que se cruze no nosso caminho? Não. Essas são estátuas erguidas em homenagem dos músicos Wagner e Brahms. É um importantíssimo legado musical, e portanto cultural, que está a ser celebrado, e tal coisa, independentemente da pessoa, deve ser celebrado - é principalmente por essa razão que eu resolvi defender a estátua de Vieira, em primeiro lugar.

Devo, como é habitual, pedir perdão pelo longo texto, mas a minha impressão foi que a ideia, apesar de tudo, era discutir sobre estátuas, das quais tanto gosto. Fico contente que tenham aparecido alguns historiadores na colunas do jornais, como o Professor Pedro Cardim ou a Professora Ângela Barreto Xavier, comentando, num plano mais historiográfico, o fenómeno do abate de selectas estátuas, mas fico triste, logo a seguir, devido ao conteúdo da maioria dos textos que foram escritos por esses historiadores. Sinto que se canalizou demasiada atenção para a estátua de António Vieira - que, já sabemos, merece o nosso respeito por ter, na época, um pensamento um pouco avançado e sobretudo por ser um autor imortal das letras portuguesas - e muito pouca para um outro fenómeno que merecia reflexão por parte daqueles que sabem o significado da palavra historiografia: que tipo enfermo e patológico de nostalgia faz com que ainda se honrem e ergam estátuas em memória de gente que tantas feridos abriu nos dois últimos séculos? É que, caso ainda não tenham reparado, há gente, com outro life background, que ao ver Leopold II, Jefferson Davis, Stalin ou Hitler celebrados, em praça pública, em pedra no topo dum pedestal, é ver a mesma coisa!

Ainda, face aos meus argumentos, há quem possa responder, indagando-me se isso também dá legitimidade a que se atire com estátuas de Luís XIV, de Júlio César ou de Alexandre Magno, para o desterro mais longínquo, por terem sido, segundo as nossas lentes da sociedade contemporânea, aquilo que hoje classificaríamos como imperialistas. Bem, todos sabemos que, isso sim, seria julgar a História. (E ficaria muito ofendido, obviamente, se atirassem com César ou Alexandre para um desterro!)

Comecei por escrever que uma estátua é, fundamentalmente, uma estátua, mas, se a estátua for sortuda, uma estátua torna-se sempre mais que uma estátua, quer seja por bons motivos, como a indelével beleza de David, ou por maus motivos, como a estátua de Jefferson Davis que, volvidos mais de 150 anos sobre a Guerra Civil, ainda tem um vergonhoso destaque de honra no Capitólio de Washington D.C... e, convivendo com tal facto, ainda houve gente que ficou admirada por um pedaço de pedra ter sido atirado a um rio.

domingo, 7 de junho de 2020

Blackout

O medo, receio, asco à diferença é, depois do dinheiro, a maior fonte de segregação na sociedade em que vivemos. Assim sempre foi ao longo da História e por vezes temo que assim continue a ser ad aeternum. O assunto que me traz hoje - que, em sinceridade, não é um que eu seleccione abordar com tanta regularidade como outros - tem que ver com segregação humana: neste caso, aquela que é baseada em algo positivamente tão trivial como a cor de pele que todos nós envergamos. O ser humano é um mamífero que, ao ser bem sucedido em espalhar o seu ecossistema por todos os cantos da Terra, pôs em causa tantos outros ecossistemas. Esse ecossistema é uma civilização a que hoje chamamos Humanidade. Mas antes desta grande civilização já houve tantas outras, muitas delas coexistindo em total ignorância mútua de suas existências. As diferentes cores de pele sempre lá estiveram... excepto no início da vida humana, ainda antes de estarmos organizados em civilizações, há duas centenas de milhar de anos. Os antropólogos e biólogos crêem que a vida humana - o homo sapiens - começou por florescer, num lento processo evolutivo, na África subsariana, onde hoje é a República da Etiópia. Como tal também crêem que o ser humano começou por ter uma pele escura - o que faz todo o sentido, dada a localização geográfica de enorme exposição solar -, sendo a evolução para pigmentações mais claras um fenómeno posterior, quando vastos grupos humanos migraram para outras localizações do globo terrestre, em regiões onde a exposição solar é muito mais reduzida - como é exemplo a Europa - e, por conseguinte, os níveis de melanina desses humanos reduziram, começando então a surgir nesses mamíferos humanos uma progressiva clarificação da pele. E algures, ao longo deste longo caminho - da mesma forma que nasceu uma miríade de mistificações e intolerâncias segregacionistas -, algo tão trivial como a cor de pele tornou-se motivo de discriminação e hierarquização. Não deixa então de ser irónico que a primeira grande sociedade civilizada da História tenha sido o Egipto Faraónico (ou Antigo, se preferirem). Os egípcios que adoravam Amón-Rá, Hórus e Anúbis, que estenderam os domínios do Faraó, que compreenderam os cíclos do Nilo, que desenvolveram a escrita hieroglífica e a economia agrícola, que construíram - com muito labor escravo, sei disso perfeitamente - magníficas estruturas que, 3000 e 4000 anos depois, ainda perduram, como o Templo de Abu Simbel, o Templo de Karnak ou a Grande Pirâmide de Giza, eram africanos de pele morena e escura. Mas a supremacia da cor de pele haveria de surgir, mas invocar a sua origem é uma pesquisa genealógica impossível. How did we come to this?, como inquiria o Rei Théoden...

É certo que o racismo assume muitas formas. Ele existe entre negros, ele existe entre e contra a cultura hindu, ele existe contra asiáticos e entre asiáticos, ele existe contra ciganos, ele existe contra judeus, ele existe contra árabes e entre os próprios, ele existe contra latino-americanos e entre eles e, inclusive, ele existe entre europeus e (que ninguém se deixe equivocar) contra europeus. Sim, a eurofobia também é uma realidade, e eu não fecho os olhos a nenhuma forma de racismo. Mas de entre todas as caras que o racismo pode assumir - e não mencionei a maior parte, evidentemente - nenhuma tem sido tão endémica e sistemática como o racismo praticado contra o ser humano de pele negra. Não há como negá-lo. Começou algures numa qualquer época virtualmente ilocalizável da História (talvez durante as épocas pré-expansionistas da Europa onde o racismo seria praticado por sociedades muçulmanas contra sociedades e tribos africanas.) Depois tornou-se mainstream com o mercado internacional esclavagista na época da Expansão Marítima Europeia. Nos séculos XIX e XX ganhou uma dimensão ideológica, pseudo-científica e filosófica, passando a compor o cânone daquilo que seriam pensamentos fascistizantes, e por fim chegou aos nossos dias. Luther King já marchou sobre Washington, e de Selma a Montgomery. Rosa Parks já se opôs à Segregação Legal do Alabama. O Apartheid já foi derrubado e Mandela já foi Presidente. Gandhi já liderou a libertação da Índia. Malcolm X, assim como Gandhi e Dr. King, já foram assassinados. Por sua vez, os impérios coloniais da Europa já foram destroçados (ainda que subsista um outro tipo de Imperialismo). Jesse Owens já ganhou as quatro medalhas de ouro olímpicas na Alemanha Nazi. Morgan Freeman já é uma lenda em Hollywood. Louis Armstrong, Robert Johnson, Aretha Franklin e Whitney Houston já deixaram para a posteridade os seus legados na arte musical. Inclusive, Jimi Hendrix já foi consagrado um génio da música universal. Até Barack Obama já foi eleito Presidente dos EUA. Mas de alguma forma a psicose mantém-se como um cancro incurável. É tão difícil de compreender a Humanidade. Eu, francamente, não a compreendo... mas não é uma incompreensão que faça perder a esperança, por enquanto. Em Minneapolis eles não cruzaram os braços. 

Entretanto, é importante que não nos tornemos em hipocondríacos políticos. A realidade dos EUA, em boa parte, não passa da realidade dos EUA. É certo que na Europa continuamos a experienciar situações localizadas de racismo, quer a nível urbano ou a nível institucional, e Portugal continua a ter os seus fenómenos racistas, especialmente patentes nas desigualdades financeiras que se traduzem em indesejáveis resultados escolares e em habitações indignas, ou na atitude de agentes de autoridade face selectas comunidades, todavia, não nos comparemos a uma sociedade, como são os EUA, em que, em largos quadrantes políticos e sociais, o racismo ainda é um pensamento requisitado, e onde a violência policial vê muitos poucos obstáculos para impor, à lei do bastão e da bala, a sua presumida supremacia. Os EUA, apesar de ter sido uma das nações onde a resistência ao racismo teve uma dimensão maior e mais organizada, é também uma nação onde, historicamente, a ideia de supremacia branca importa maior impacto. Para termos evidência disto basta pensarmos na Confederação do século XIX, que tentou preservar o trabalho escravo nos Estados do Sul, combatendo uma Guerra Civil fratricida contra os Estados Unidos, ou pensarmos em como esse legado supremacista - que ainda não desapareceu de muitos estados sulistas - deu vida a coisas abomináveis como o Ku Klux Klan ou às leis segregacionistas (como exemplo, lugares divididos para negros e brancos nos transportes públicos, estabelecimentos exclusivos para brancos ou negação do direito de voto à população negra) que imperaram em estados como Alabama, Georgia, Texas, Virginia, Mississipi, Missouri, Louisiana ou Kentucky, até à Contracultura e o Movimento dos Direitos Civis dos anos 60. Portanto, o ponto fundamental a que eu quero convocar o leitor deste texto é o seguinte: não negando que nos EUA o racismo é endémico e de certa forma institucional, a realidade de hoje na Europa não tem essa dimensão horrorosa. Nós, que nos revoltamos e indignamos e manifestamos contra aquilo que aconteceu a George Floyd, temos de compreender que a escala racista, nos EUA, é muito maior do que deste lado do Atlântico devido aos factores históricos já mencionados. Não será sensato, portanto, enveredarmos pela hipocondria política e 'trazermos' os problemas de outras paragens para dentro de casa. Está feita a ressalva.

O clamor colectivo e tonitruante contra o racismo e a brutalidade policial - no triste caso de Floyd estamos a falar de ambas as coisas - não pode emergir só quando algo grave acontece nos EUA ou quando é trazido até nós um caso mediático. Esse clamor tem de ser constante e ininterrupto. Noam Chomsky escreveu o seguinte no seu ensaio What You Can Do: "If you go to one demonstration and then go home, that's something, but the people in power can live with that. What they can't live with is sustained pressure that keeps building, organisations that keep doing things, people that keep learning lessons from the last time and doing it better the next time." É disto que eu estou a falar. Não podemos alinhar em movimentos de insurgência como se adere a uma moda. Essa não é uma boa praxis. É preciso que a participação seja constante e informada. É necessário que a preocupação seja constante e vigilante. Quanto maior for o conhecimento de quem se insurge mais munições existem para serem disparadas contra a parede de ódio e intolerância (e peço desculpa pela linguagem bélica, mas ela é meramente figurativa). Quanto à retórica, há um aspecto que é crucial ser observado: quem se manifesta não pode partir do princípio de que quem não se manifesta é um racista. Não podemos partir do princípio que ao virar de qualquer esquina há-de surgir um racista, ou assumir que todos os polícias nos EUA ou em Portugal são pessoas odiosas e racistas. Entrar por estas linhas de raciocínio é entrar por um caminho maniqueísta, injusto, ingrato e contra-produtivo.

Em todo caso, apesar das precauções retóricas e práticas que devem ser observadas por quem vigorosamente se insurge, indigna ou manifesta contra a brutalidade policial que constatámos, julgo importante clarificar que, no problema que enfrentamos, o seu aspecto mais crucial é a compreensão da natureza do racismo e como erradicá-lo. Ele erradica-se através da promoção de uma equidade económica, através da total promoção de, e igual acesso à, instrução escolar para todas as crianças e jovens, através da promoção de valores cívicos e da premente relevância da Declaração Universal dos Direitos Humanos em todas as escolas, e erradica-se, também, através de uma meditação individual e profunda sobre algumas das nossas concepções estereotipadas que eventualmente tenhamos. Mas ele nunca se poderá erradicar por decreto. A linguagem que usamos para nos referirmos a pessoas de uma certa etnia diz também muito, nem que seja só a um nível subliminar ou subconsciente, daquilo que são as percepções que temos de quem é diferente de nós a nível étnico. O mesmo serve para a linguagem segregadora que é usada para descrever a homossexualidade, ou serve para a presumida heteronormatividade que foi legada às sociedades contemporâneas pelo pensamento das três religiões abraâmicas... mas, apesar de relacionado a muitos níveis, isso é outro assunto na longa História da Discriminação.

Se o leitor deste texto estiver suficientemente familiarizado com o meu pensamento político, saberá que - para além de eu considerar que em lugar nenhum do mundo foi atingida uma democracia pura, e que só uma mão cheia de nações é que está lá (mais ou menos) perto - eu considero os EUA um estado autoritário e anti-democrático. O problema não é da Constituição Americana (que tem o defeito de ser pequena e quiçá abstracta). O problema é da natureza autoritária e nacionalista que assolou os EUA, especialmente a partir da Guerra Fria. A paranóia da ameaça esquerdista impeliu os EUA a criar mecanismos de repressão, como é exemplo o FBI - uma obra de Edgar Hoover - e de total vigilância estatal dos seus cidadãos, como é bom exemplo a NSA, e a forjar de raiz guerras cujo interesse era económico e imperial e não humanitário. A própria comunicação social de grande envergadura é abertamente partidário e parcial e as opções sufragistas estão diminuídas a dois partidos que fazem parte de um interesse corporativo comum. Nem o princípio constitucional do Estado Laico aquela república consegue respeitar minimamente. A educação pública vê-se amplamente ameaçada e um sistema nacional de saúde ainda está por ser fundado. O racismo, embora grande, é só mais um dos imensos problemas daquela nação. E que não se julgue que estes problemas foram uma construção da Administração Trump. Eles fazem parte do próprio molde do país, e só assim é que haveria condições para um indivíduo como Donald Trump ser eleito Presidente. É o reflexo daquela América, receio. Quem de facto tem controlo sobre os destinos daquele país são os banqueiros, a Reserva Federal, a indústria do armamento e o Pentágono. E estes não têm a mais remota inclinação para placar o racismo institucional dos EUA. Só acção radical e revolucionária o pode fazer, e creio que nem sempre essa acção pode ter uma índole pacifista, apesar dos ensinamentos de Luther King e Gandhi.

Esta é uma altura pertinente, julgo, para escutar atentamente o Man in Black do Johnny Cash.

Falar em raças, para além de não ter a mínima coerência intelectual ou científica, pode ser per se um substancial resíduo de racismo, ainda que inconsciente, uma vez que tudo o que há são incontáveis etnias aglomeradas numa única raça - numa única espécie humana.