sábado, 27 de março de 2021

'Ou Mato ou Morro'

Quando a doença mental Alzheimer ainda não tinha consumido a sua memória, o meu tio Paulino, combatente na Guerra Colonial, sendo ainda vivo, felizmente, contou-me uma anedota (talvez quando eu teria 13 ou 14 anos de idade), cuja explicação eu tive de lhe solicitar, após ela ter sido narrada - devido à minha compreensão da Língua Portuguesa na época ainda estar em desenvolvimento -, curta anedota essa que versava, mais ou menos, da seguinte forma: «Na guerra, quando o inimigo se aproximava, o nosso grito bélico era, "Ou mato, ou morro"». Para leitores que não tenham compreendido a anedota (que devo assinalar que seria relativamente mais engraçada se fosse ele a narrá-la), eu não procederei à sua explicação. Apenas deixo o aviso que o sentido das palavras "mato" e "morro", neste contexto, não provém do verbo matar.


E porque optaria eu por iniciar este texto, cujo tema abordado é sério, com uma anedota, sabendo eu, perfeitamente, que, enquanto narrador, se há domínio onde eu nada pesco é no das anedotas? Confesso que me pareceu uma estratégia retórica adequada e desanuviadora... ainda que, muito possivelmente, não tenha resultado.


Foi já há uns bons dias que, alegadamente, o orgulho nacional dessa massa de patrióticos portugueses, e todos eles vorazes e entendidos leitores, se indignou e se encheu e saturou de pranto, qual cascata a cair, ante uma tese de doutoramento da autoria da investigadora Vanusa Vera-Cruz Lima (Professora de Português na Universidade de Massachussets), cujo objecto de estudo são as imagens literárias racistas na obra Os Maias, de Eça de Queiroz. Foi também há uns bons dias (há mais de um mês, na verdade) que o mais condecorado oficial na História do Exército Português, Marcelino da Mata, padeceu à maleita do Coronavírus. Antes de mais, o que ambos os eventos têm em comum é que a questão do Racismo, portanto, vem sempre bater-nos à porta.


A razão de eu querer levar ao Pensatório a polémica em torno da tese da investigadora em questão não se prende, necessariamente, com o seu conteúdo. Ainda que eu estivesse, de certa forma, alheado das conclusões a que autora chegou, de forma nenhuma eu fiquei surpreendido ou estupefacto com as mesmas. Eu tomo esta oportunidade para afirmar que ainda nunca li Os Maias na sua totalidade. Um dia, talvez. A minha mãe, por exemplo, só começou a adorar este romance quando o leu vários anos depois da sua juventude, e de o ter estudado na escola tal como a minha geração. É uma obra que requer um elevadíssimo nível de maturidade etária, que transporta um estilo literário e estético, pelo menos para mim, muito pouco acessível, e as suas largas centenas de páginas, acumulando a isto, são intimidadoras. De qualquer das formas, eu estou zangado com os realistas portugueses devido à forma como eles trataram o Romantismo no seu todo... e mais zangado estou com eles porque durante algum tempo pensei que eles tinham razão. Voltando ao assunto deste texto, o que me impeliu a escrever sobre isto foi a reacção algo previsível de parte da sociedade portuguesa. De repente parecia que a investigadora tinha crucificado a obra, apelado à sua retirada do Programa Nacional de Leitura, e por último à sua irrevogável abolição... nada mais longe que isto, na verdade. Vanusa Lima manteve bem claro que reconhece o enorme mérito e significado da obra na Literatura Lusófona, e tudo o que ela recomenda é que, aquando do seu leccionamento no Ensino Secundário, estejam presentes notas pedagógicas, muito sensatas, para as tiradas de índole racista que de facto lá estão presentes, quer seja pela voz de personagens (maior parte das vezes) ou pela voz do próprio narrador (a minoria das vezes).


Também houve quem, no alto da sua bancada política abstracta, tenha acusado a autora de vilipendiar o autor, Eça de Queiroz. Segundo estes supostos amantes da Literatura, Lima afirmou que Queiroz era racista... Também não afirmou isso. Vanusa Lima absteve-se de quaisquer comentários à pessoa de Eça de Queiroz porque, para tal, seria necessário fazer um estudo sociológico e biográfico sobre o autor, até porque a questão do Racismo nem sequer é uma questão primeira na obra.


Também li a opinião, até de pessoas com uma voz mais neutra nesta polémica, que não será muito sensato fazer considerações dessa ordem sobre a obra ou sobre o autor, dado o tempo histórico em que o autor viveu. Essa argumentação também não é plausível sendo que estamos a falar do Século XIX e, na altura em que a obra foi escrita, 1888, já uma miríade de movimentos sociais e culturais existiam, assim como organizações políticas, que eram anti-racistas, anti-imperialistas, feministas, defensoras do direito à homossexualidade, e por aí fora. Na verdade, a estrutura organizacional e política destas ideias - que para nossa desgraça ainda hoje são contestadas - é tão velha quanto o Século XVIII. Se Eça não tinha aderido a tal ideário, tal não se devia, com certeza, nem à sua ignorância não ao facto de tal ideário ainda não existir naquele tempo histórico. Até o primeiro partido socialista, em Portugal (não tem nadinha a ver com o PS dos nossos dias), já tinha sido fundado, em 1876!


Também devo confessar admiração ante a realidade de muitos confessos e acérrimos patriotas e nacionalistas - a designação difere de cabeça para cabeça - ante o suposto mal trato da obra de Eça de Queiroz (e já verificámos que não houve mal trato nenhum). Não saberão eles que Os Maias são um ensaio contra a tradição social e cultural portuguesa? Não saberão que a voz de Eça, na obra, é altamente crítica ao Reino de Portugal oitocentista e à mentalidade das suas pessoas? 


Não, Os Lusíadas, de Camões, não são chamados para o assunto, como muitos deram a entender. Ninguém quer abolir Os Lusíadas (que a ninguém passe tal crime pela cabeça). Século XVI e XIX não são sinónimos. São 300 anos de diferença e dois paradigmas civilizacionais distintos (atendendo às convenções da Historiografia internacional, o Século XIX já é História Contemporânea). Isso sim seria julgar a História... para não falar que Os Lusíadas é universalmente considerado uma das maiores obras literárias da História da Humanidade.

Entretanto também um combatente da Guerra Colonial, de nome Marcelino da Mata, guineense de origem e português por preferida identidade do próprio, faleceu, e sobre essa morte uns chamaram-lhe patife e outros aclamaram-no como herói nacional. Nenhum soldado português que tenha combatido em África, às ordens do seu governo ditatorial, deve ser responsabilizado pela Guerra Colonial. Um soldado faz aquilo que o seu Estado lhe manda, muitas vezes em total ignorância das circunstâncias. Marcelino da Mata não era um soldado como estes. Não é como o meu tio - tio meu este que não mais quis ter algo a ver com a guerra e pouco depois ainda se juntou àqueles que vieram a derrubar o Estado Novo, o PCP. Marcelino da Mata virou as costas à sua fraternidade africana - nunca mais entrou na Guiné, por decisão da nação recentemente independente - e protagonizou autênticos crimes de guerra cujo relato é de perder a fome por completo. Tudo em plena consciência porque, nos seus esquadrões, era ele que mandava. Desde execuções sumárias de tropas desarmadas, sem razão de ser, a torturas e execuções brutais (ao que parece ele tinha uma predileção por cortar testículos quando o soldado inimigo ainda estava vivo, peço desculpa pelo grafismo) e todo o tipo de acções sanguinárias que nem em tempo de guerra se justificam. Por isso, e pela sua coragem física - que não nego, obviamente -, e pelas operações variadas que conduziu, o Estado Novo condecorou-o com um enormíssimo número de medalhas. É esta a sua história.


Qual o orgulho que um português pode ter nas motivações coloniais daquela guerra insana? Qual o orgulho que a Humanidade pode ter num doido varrido como Marcelino da Mata? Este homem só não foi julgado pelo Tribunal Internacional dos Direitos Humanos porque prestou auxílio aos golpistas do 25 de Novembro... talvez também o considerem herói por isso. 


Para ironia suprema da vida, aquando do clamor das vozes indignadas ante o prestar de condolências do Estado Português ao defunto e respectiva família, sob as figuras do Ministro da Defesa e do Presidente da República, os defensores da memória heróica de Marcelino da Mata saltaram a terreiro acusando os seus contrários de serem racistas. "Só atacam o Marcelino da Mata porque ele é negro", foi sinteticamente o que muitos disseram. Qual é a ironia disto? É que muitos desses defensores do Tenente-Coronel Marcelino, são, a julgar pela sua estrutura de pensamento e pelos meios políticos onde circulam, os mesmos que desvalorizam os fenómenos de racismo neste país e noutros, e são os mesmos que atacaram a investigadora Vanusa Lima a propósito da sua tese sobre Os Maias. Qual é o nome disto? Oportunismo retórico. Hipocrisia inclusive, nos casos mais gritantes. Ela alastra como água espalhada no chão. É, francamente, aquilo que me vem à mente. Das duas, uma: isto é comédia ou tragédia. Cómico é, certamente, ter visto essa massa saudosista dos feitos virtuosos (segundo eles) da Guerra Colonial a chorar ainda mais rios e rios devido ao facto de não ter havido honras militares cerimoniosas para o oficial defunto. Ao menos assim poupou-se dinheiro...


Não devemos ter vergonha dos soldados portugueses que combateram na Guerra Colonial. Devemos ter tristeza, sim, que aquela guerra tenha sido combatida por vontade única de um regime decadente e que já foi derrubado. E não devemos enaltecer criminosos de guerra, independentemente da sua cor ou da nação a que dizem pertencer.


Há quem possa usar o argumento de que não devemos ter medo da nossa História e que devemos estar em paz com a mesma. A verdade é que o princípio, de que devemos fazer as pazes com a História, não serve de resposta para tudo o que se apresente a criticar a mentalidade de um tempo histórico ou determinada personalidade histórica. Os judeus, por exemplo, nunca irão reconciliar-se com a Alemanha Nazi, nem isso, aliás, lhes será pedido. Nem hoje, nem daqui a 200 anos - e sei perfeitamente que o Holocausto está numa dimensão absolutamente diferente de gravidade. 


O problema de tudo isto é a escassez de auto-crítica que impera no coração fulminado de muita gente.

terça-feira, 23 de março de 2021

Correntes Quebradas (Poema)

Ontem as correntes quebraram
E deram uma nova oportunidade
A um futuro sem uma fatalidade.
Sem correntes os pássaros voaram
E um novo dia nasceu.

Foi ontem que a injustiça cedeu
E um novo Sol raiou.
Não mais a alma escureceu
E a Fénix finalmente voou.
Fez-se ouvir um clamor de liberdade.

Foi ontem que deixou de ter validade
A corrente que tardou a derreter,
E a incinerar os contratos da banalidade.
Foi hora da opressão ceder
A desígnios maiores que a Tradição.

Ontem deu-se uma resolução
Sobre o que foi e o que há-de ser.
Não há máxima com maior dimensão
Que aquela que liberta o amanhecer.
Vento Apolíneo auxilia Rebeldes Asas.

Hoje as horas não são mais escassas.
A aurora do amanhã alumiou, finalmente.
As mentes já não estão lassas
E o sentido de viver já se sente.
Liberdade - convém não perdê-la
Surgiu a Matinal Estrela.

Que se olhe para trás
Para contemplar o passado.
Que se colha o que o vento traz
Para refrear o premeditado fado.


Évora, 23 de Março de 2021

segunda-feira, 15 de março de 2021

A minha tardia Mensagem para o Centenário

Foi há nove dias que o mais antigo partido em existência, em Portugal, comemorou o seu centenário. Um século foi encerrado, a vida avança. A bandeira vermelha, embora velha e por vezes cansada e embrulhada no seu próprio mastro, abana ao vento turbulento da mudança, e as massas inconformadas, ansiosas pela marcha contínua do Progresso, aguardam que o próximo centenário seja celebrado diferentemente, num tempo histórico em que as máximas da Liberdade, Democracia e Socialismo já estão cumpridas.


Nos últimos dias, tenho reflectido, para comigo, o que significa, para alguém que não se considera comunista, o centenário de um partido comunista. Para mim que, devido a um pessimismo realista, intrínseco à minha consciência, não consigo crer na concretização de civilizações utópicas - porque seria isso que Comunismo de facto seria, num imaginário coerente: uma civilização mundial e não um sistema num país ou conjunto de países, daí a imperatividade do princípio internacionalista na ideologia -, e também devido às características específicas da minha filosofia materialista e hedonística, não me consigo subscrever num movimento comunista ou anarco-socialista, a celebração dos 100 anos do Partido Comunista Português significa, todavia, uma vitória per se. Após as inúmeras mortes anunciadas do PCP, quer nos períodos de grande crise, na primeira metade do século passado, ou após a desagregação da União Soviética, ou até mesmo nos dias presentes, em que o PCP perde autarquias e deputados nacionais num ritmo progressivo, o partido, contudo, não arreda pé, continua a fazer o seu dia-a-dia político como sempre, e no dia 6 de Março comemorou 100 anos para salvas de muitos e raivas de outros tantos.


É, todavia, menos evidente para muitos dos apoiantes e inimigos do PCP, que esta efeméride, muito mais do que um evento político no qual pode ser colocado o quotidiano muitas vezes superficial da vida política da sociedade portuguesa, é, acima de tudo, um evento histórico. Isto é História a acontecer perante os nossos olhos. Quantos partidos, por esse mundo fora, podem afirmar que durante um século têm aguentado a sua existência, e volvidos todos esses anos se mantenham relevantes na cena política? São poucos, e o PCP é um desses raros partidos. Os contrários à Esquerda política afirmam que tal facto é auto-evidente da deficiência política em que Portugal está emergido. Os demais afirmam que tal facto histórico é prova de que, no povo português, há qualquer veia revolucionária muito particular, que não é encontrada noutras sociedades. 

Eu confesso que, quando este centenário chegasse, apesar de não estar filiado ao partido - embora já ter feito actividade política associada ao PCP - julguei que me sentiria politicamente entusiasmado, e festivo até. Infelizmente, ainda que não tenha sido inundado subitamente por uma depressão política, não foi propriamente felicidade que senti, mas antes um profundo sentimento de nostalgia e alguma melancolia. Hoje, quando um histórico partido português representante do Socialismo Marxista comemora um século de vida, o horizonte é nublado, encoberto, duvidoso, evocador de tempos retornados quando odiar e desconfiar era requerido por Estado e Sociedade. E para remate de tanta melancolia, é triste aperceber-me que, para evitar definitivamente que tais tempos retornem, o PCP, atendendo às suas presentes configurações políticas e ideológicas, não faz parte da solução.

O/A convicto/a aderente do PCP poderia abandonar este texto, neste preciso instante, mas convido-o/a a continuar, porque mudar e transformar não é uma incongruência, e é disso que o PCP precisa. Se o PCP pretende que a evocação deste centenário seja mais que isso, então precisa de corrigir-se, integrar o Século XXI como tantos outros partidos comunistas fizeram (já agora, o Partido Comunista Japonês é um excelente exemplo disso), precisa de regressar às origens filosóficas oitocentistas do Socialismo e do Marxismo, abandonar o princípio bem intencionado mas fundamentalmente tóxico do Centralismo Democrático, apostar na cultivação ideológica e intelectual dos seus militantes e das suas vanguardas, retratar-se quanto às suas relações com a URSS no Século XX, abandonar as suas relações com a Igreja Católica e grandes corporações desportivas, reinventar a sua estratégia política (nunca esquecer que as crianças e os jovens são o futuro do mundo) e aceitar e admitir que, quando há uma derrota política, é preciso abordá-la e chegar ao núcleo da sua razão de ser. Enquanto socialista, eram estas reflexões que eu gostava que tivessem sido feitas pelos alegados e alegadas comunistas desta nação. Não deixem que a tão proclamada ortodoxia ideológica turve o vosso juízo: para dogmas já nos chegam as religiões, e se houvesse ortodoxia comunista, essa teria de ser exactamente aquela que era apresentada pelos marxistas originais, no Século XIX.


O texto é muito pouco festivo, é verdade. Talvez muitos poderão assumir, contrariados, que se trata de um sermão. Mas se um centenário não jutifica uma profunda reflexão sobre o passado e o futuro, então o que a justifica? Eu não ponho em causa que o PCP foi o mais fundamental partido político no combate ao Fascismo do Estado Novo (e aquele que mais sofreu). Tampouco ponho em causa que este histórico partido é icónico na cena política portuguesa. Mas se quereis que o PCP regresse às épocas em que mais de 40 deputados comunistas se sentavam na Assembleia da República (quando Álvaro Cunhal carregava, na vanguarda das fileiras, a bandeira vermelha), ou se quereis que tais feitos sejam superados, então o partido precisa de se transformar, porque só não muda e progride aquilo que é teimosamente conservador, e fica no mínimo muito mal a um partido comunista conservar um considerável conservadorismo (o pleonasmo é propositado).

A minha ânsia por um PCP renascido é muito mais profunda do que muitos poderão assumir. Se quisermos fazer frente à grande ameaça que se aproxima, ganhando espaço e terreno, cérebro a cérebro, bairro a bairro, cidade a cidade, precisamos de um movimento político que não só tem a experiência a lidar com tão dissuasoras e perigosas forças políticas, como também tem a estrutura organizacional da qual o PCP dispõe. Precisamos do fogo estrelar e revolucionário que o PCP já provou ter, há 45 anos, se queremos extinguir o obscurantismo de tiranos que se fazem passar por enviados divinos da salvação. 

Resta-me deixar as minhas congratulações e os meus agradecimentos.

Nota: Até para quem estiver somente interessado na História centenária do PCP, irá encontrar na mais recente edição da revista Visão História óptimas e interessantes leituras.