sexta-feira, 17 de junho de 2022

Três anos deste trilho em Portalegre

Saía de casa e deparava-me com um composto prédio vermelho e branco. Muitas vezes o céu estava azul, decorado com as típicas nuvens brancas. Eu tinha especial afecto à ambiência envolvente quando o azul do firmamento não era observável - era o nevoeiro que mais me convidava à energia e ao optimismo, e ainda assim é. Os meus passos prosseguiam pelo alcatrão escuro, rachado nas zonas próximas aos caixotes do lixo, não sei bem porquê. Não sei se foi um tremor de terra ou se é o simples desgaste do tempo quando as coisas estão nas proximidades de elementos já em si degradados. Caixotes de lixo verdes, identificados com o símbolo municipal portalegrense, defronte de caixotes mais modernos, escuros, próprios para a reciclagem das matérias descontinuadas. E eu caminhava, passando os caixotes, com o prédio vermelho e branco à minha direita, e as vivendas - tão iguais à minha no exterior, salvo cómicas excepções - à minha esquerda. No solo próximo, onde os meus pés pisavam o chão, havia pequenos trechos de relvado que de quando em vez, sob orientação municipal imagino eu, durante a noite, tinham direito a um pouco de água automática. Defronte dos meus olhos, à medida que prosseguia o meu caminho, havia um outro prédio meio desligado do Bairro das Carvalhinhas, habitado por pessoas que nunca cheguei propriamente a conhecer. Chegando ao fim das paredes do prédio vermelho e branco, olhando brevemente para uma oliveira que se encontrava solitária no mini-jardim do outro lado da estrada, eu virava à direita, continuando a locomover-me pelo passeio onde os carros felizmente não passam, com a estrada escura à minha esquerda.


Pelo trilho onde caminhava havia árvores, estrategicamente plantadas e brotando do passeio cinzento claro, cujas folhas me davam uma sensação de pertença inexplicável. À direita avistava-se as traseiras do prédio vermelho e branco que, embora confortavelmente familiar, se configurava no seu mais desinteressante perfil. Este prédio assenta numa formação de terra, pedra e vegetação. Vegetação essa que se alastrava por toda a vista à minha direita e que, julgando pelo ritmo a que as coisas vão no bairro, em breve desaparecerá por completo, como tanta outra vegetação icónica naquele bairro que nos dias presentes só vive na memória daqueles que a contemplaram. Ainda me recordo da imponente árvore, ruidosa nos dias ventosos, com as suas folhas verdes escuras, que se encontrava num dos pontos mais altos do bairro e cujas raízes hoje estão sepultadas por baixo de mais uma vivenda. 


Enquanto caminhava, passava pelo campo de futsal (e outros tantos desportos), à minha direita, que na época se localizava defronte de uma majestosamente decrépita casa abandonada e que nos dias presentes já se encontra plenamente renovada e habitada, erguida sobre memórias e recordações de épocas cuja única hipótese de imortalidade será nas páginas de uma qualquer biografia. Assim fica prometido. Anteriormente, as balizas não tinham rede e as zonas limítrofes do campo tinham grades verdes em falta. Hoje há de tudo. Até torneios oficialmente organizados. Ou muito me engano ou quem vive na casa velha reerguida tem meios e contactos. Passando pelo campo no qual antes jogávamos duas horas de bola e acabávamos com uma tonelada de areia dentro dos sapatos, havia uma rotunda, tão aborrecida como a maioria das rotundas neste país de rotundas. À esquerda seguia-se para os Assentos, à direita seguia-se para a Praça da República, e é por aí que vamos. Prosseguindo pelo mesmo passeio cinzento claro havia à minha direita um grande muro claro, decorado de vários buracos de canos, e que hoje se encontra vandalizado por uma qualquer vazia mensagem de Teresa de Calcutá, uma fanática glorificada. Pelos vistos não são somente as necessidades habitacionais legítimas que me tentam roubar memórias juvenis. Antes uma parede despida que uma parede oficiosamente vandalizada. Em breve haveria uma passadeira de fácil passagem (não estivéssemos nós em Portalegre, Cidade do Alto Alentejo), e atravessava a passadeira em direcção ao outro passeio positivamente semelhante, cruzando-me com uma paragem de autocarros drasticamente miserável no seu estado - estes vândalos em questão não foram oficiosos mas antes abertamente parvalhões -, em direcção a uma rota que tanta gente ainda hoje gosta de evitar, seja por má fama (coitados dos moradores por tal desconsideração), seja pela escuridão do local uma vez chegada a noite. 


Nesta rota, a partir dos meus 17 anos, eu gostava sempre de acender um cigarro, caminhando calmamente, inspirando a ambiência de hortas à direita e à esquerda. Claro que havia a estrada principal logo acima, mas quem quer essa estrada, andando a pé, quando tem este rústico, místico e sereno trilho para disfrutar. Claro que já ouvi estórias pretéritas de esfaqueamentos e agressões neste trilho. Nunca tive a menor evidência dos mesmos. Em todo caso, por hábito questionável de ser alentejano, e necessidade de defesa de hipotética gente odiosa, uma vez que sou um cidadão gay, costumo andar com um canivete no bolso, e portanto, misturando à minha desfaçatez de nascença, nunca tive medo destes caminhos. O mais grave que alguma vez me aconteceu neste trilho foi o Filipe (portanto nem se quer foi comigo, directamente) ter sido arranhado na mão direita por um gato branco e preto da vizinhança. Francamente, ninguém lhe mandou fazer uma festinha no felino. O felino não gostou e o felino agiu consoante sua justiça. O caminho aqui era uma subida assinalada, com a antiga Serra-Leite à minha esquerda e uma fábrica de vinhos à minha direita. Caminho barulhento este, cheio de máquinas e mecanismos que eclipsam a voz de quem fala. Sem exagero, quando se chega ao fim desta subida, durante alguns segundos enquanto se caminha, qualquer hipótese de comunicação em tom normal é escusada, tal é a industrial barulheira daquelas máquinas.


Já fora da estrada velha e regressando à via ‘normal’, prosseguia eu pelo passeio da esquerda, com o edifício da Fundação Robinson do outro lado da estrada, anexo ao Convento de São Francisco, inobservável deste ângulo de visão. Em frente já se via muito bem a Praça da República, e no horizonte, lá ao longe, avistava-se o Monte da Penha, distantemente erguendo-se no firmamento sobre a Praça. Em algumas manhãs de nevoeiro só a base do Monte da Penha se podia contemplar, e noutras manhãs nada da Penha se via. Julgo até, numa determinada manhã, há largos anos, que do Monte da Penha só se via o pico e a Cruz de Cristo. Imagem mística e surreal, esta. Era como se um leviatã estivesse planando no céu! Em breve o passeio virava à esquerda e, como eu faço geralmente questão de passar nas passadeiras, lá seguia eu o passeio, passando um pequeno outlet que tem sempre um cartaz de campanha do PCP ou um cartaz de promoção da Festa do Avante (uma e outra coisa são o mesmo, no pun intended). Passando a passadeira estava no outro lado da estrada. Ia no sentido da direita, rumo à entrada na Praça da República, com o edifício do CAEP (Centro de Artes e Espectáculos de Portalegre) colado ao meu ombro esquerdo, com a Estrada da Serra defronte da minha vista, e desviado à minha direita a Igreja do Convento de São Francisco e, por detrás desta, erguiam-se as históricas torres fumosas da Fábrica da Robinson que outrora tinham expelido fumo vermelho nas noites em que trabalhavam. Caminhando pelo passeio e atingindo os limites do CAEP, virava à esquerda e entrava por fim na Praça da República, o meu segundo lugar favorito em toda a cidade. Os meus pés pisavam a calçada clara e confortável enquanto eu espreitava as esplanadas ligeiramente distantes à minha direita - as dos Gémeos e do Lounge, sobretudo. No lado esquerdo do caminho que percorria encontravam-se a Escola Superior de Educação do IPP (Instituto Politécnico de Portalegre) e a esquadra da PSP (Polícia de Segurança Pública), que tão regulares vezes tem falhado no cumprimento dos seus deveres civis e profissionais - esta esquadra, especificamente. Passando a esquadra da PSP, à minha direita pousava um busto do Dr. Augusto Amorim Afonso, médico de profissão já lá vão tantos anos, e que até aos dias presente continua a receber flores aos pés do pedestal.


Saindo da área da Praça da República não seguia em direcção à medieval Porta de Alegrete, mas seguia antes para a Rua Garrett, ligeiramente à minha direita. Linda esta antiga rua nos dias de chuva - já parte do centro histórico da cidade - com a sua calçada molhada, fazendo recordar-me de outras geografias europeias. Subia a rua, passando por um restaurante cujo edifício antes tinha sido a casa do Restaurante Jardim China, passava pelo Álamo, e começava a descer a rua. Finalmente uma descida! Nessa descida passava pelo restaurante da Dona Aline, à minha direita, - antro de alguns dos mais agradáveis (e boémios) jantares da minha vida - e, chegando ao fim desta rua, Tenente Valadim de nome, deparava-me perante uma autêntica encruzilhada… encruzilhada esta que tanto quanto eu consigo averiguar não tem nome. Seguia pela segunda rua à direita, a Rua da Infantaria 22, podendo disfrutar do primeiro piso plano desde a Praça da República. Esta rua, em particular, poderia por vezes ser algo desagradável pelo odor que emanava, mas afinal o que seria do espaço urbano sem os seus cheiros dispensáveis? Outra razão pela qual a Rua da Infantaria 22 foi sempre a secção menos favorita deste trilho - ainda que seja um espaço plano - é o facto dos seus passeios serem ridiculamente curtos e os carros circularem mais rápido do que eu gostaria. Passando um bar, à direita, que entretanto fechou na época do Confinamento e cujo nome não me recordo (e que passava óptima música), tinha chegado ao fim desta rua e tinha entrado na elegante Avenida George Robinson, paralela ao agradável e sereno Jardim da Corredoura. 


Entrando nesta avenida, seguindo pelo passeio do lado direito da estrada (passeios largos como eu gosto), passando aquilo que antes foi a Discoteca Crisfal e antes disso tinha sido a localização do antigo cinema de Portalegre - e que presentemente se encontra num triste estado de abandono - eu seguia a direito por essa avenida arejada, com carros passando por mim, com as árvores do Jardim da Corredoura do outro lado da estrada, para lá dos carros na secção de estacionamento. Passando pela pastelaria onde comprei os meus primeiros maços de cigarros, com o recinto do Centro de Formação da GNR ao fundo da avenida, tinha chegado por fim aos portões da instituição que tanto me ensinou sobre a vida, que me formou intelectualmente em grande qualidade e onde eu fui muito feliz: a ESSL (Escola Secundária de São Lourenço), a minha Escola e o meu berço como cidadão.


Visto do exterior, o edifício mais se assemelha a um hospital do que outra coisa. Apesar de tudo, tal semelhança não é descabida, no que me concerne, uma vez que foi nesta instituição onde corrigi tanto no que diz respeito à minha personalidade e à minha capacidade intelectual. Se chegasse cerca de 5 minutos antes da entrada para a primeira aula, a das 8:30h, seria provável encontrar o meu grande amigo Cristian Crasnai e fumar um cigarro com ele, caso eu já estivesse no meu 12º ano e se no percurso ainda não tivesse fumado o primeiro cigarro do dia. Após isto, só restava subir as escadas e entrar para me sentir em casa… casa esta onde tantas foram as aventuras, os dissabores, as aprendizagens, os confrontos estruturais e as amizades. Guardo saudades da ESSL. Guardo saudades das aulas de História do Professor Fernando Martinho, onde caminhei os meus fulcrais primeiros passos na compreensão da Historiografia e na História das Ideologias. Guardo saudades, apesar de muita coisa, das aulas da Professora Maria Luísa Moreira, onde tantas ferramentas conquistei para trabalhar e apreciar a Língua Portuguesa. Sinto saudades de cruzar os portões da ESSL.


Este foi o meu trilho diário de Setembro de 2014 a Junho de 2017. 20 minutos de caminho, nem mais nem menos. Um caminho cujo impacto na minha pessoa ainda hoje se sente e para sempre deixará marca, felizmente. Algumas coisas teria feito de diferente forma, se soubesse o que sei hoje, mas muita coisa teria feito de forma igual. Lembro-me, de forma indelével, do primeiro dia em que trilhei este percurso e também do último dia. Jamais esquecerei este meu pessoal trilho.



Vernes, 28 de Prairial CCXXX