terça-feira, 31 de agosto de 2021

Até Amanhã, Comandante Otelo (Poema)

Mais de um mês após o falecimento de Otelo, e ao findar do dia em que teria sido o seu 85º aniversário, é este o meu pessoal tributo em forma de texto poético

Navega agora, grande exaltado
Por essas terras do conhecimento
Onde o estádio está consolidado
Enquanto a bandeira voa no vento

A Nação não é aquilo que era outrora,
Tampouco é aquilo que seria expectante.
Seria aquela a gloriosa hora
Para romper com o grito latejante?

O mundo continua a rolar
E a transformação é perpétua.
Soprai A Portuguesa ao ar
E esperai a intelectual troca mútua.

Tragam as ganas e as bandeiras,
O grande comandante está morto.
Ressuscitará pois no enorme porto
E as ondas serão sentidas nas Beiras.

Houve uma visão milenar
Que trovejou no céu nocturno
E a bomba do canhão refreou o ar
E fez tremer os anéis de Saturno.

O som da liberdade contaminou tudo
E melodiou a voz inflamada do povo.
Povo que jamais se fará de mudo
E que viu tudo eclodir do revolucionário ovo.

Tragam-me para casa, meus irmãos
Vem aí a gélida chuva e o cataclismo.
Perante a Estrela Vermelha levantai mãos
Jamais cairemos no totalitário abismo.

Tragam as ganas e as bandeiras
O grande comandante irá ressuscitar.
No posto revolucionário há cadeiras
Que irão para sempre prosperar.

Onde está a voz tonitruante?
Onde está a destruição do Fascismo?
Onde está a eterna estrela flamejante
E onde está o renascimento do Socialismo?

Venha a falsa realeza clamar
Por uma coroa de pó saturada.
Venham os saudosistas do Reino reclamar
Porque não há nenhuma cabeça coroada.

Ah! A Mátria não será coroada
A Nação é uma livre República
Por Otelo também foi libertada
Em salvação da segurança pública.

Disparai tudo o que for preciso,
A República é férrea e grave
Num Estado antigo e indeciso
Que combate a quimera alarve.

Tragam as ganas e as bandeiras
O grande comandante está vivo
As suas vontades foram verdadeiras
É por causa do seu legado que sobrevivo.

Navega sempre, filho de Prometeu
A História ainda não acabou
Nada de ti de facto morreu
A Revolução ainda não soçobrou.

Tragam as ganas e as bandeiras
Levantemo-nos de novo sem demora
Tragam as ganas e as bandeiras
Olhai a Estrela Vermelha... é a hora.


Escrito entre 27 e 31 de Agosto, 2021

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Dignidade Actorial de Terroristas: O Caso Talibã

O Afeganistão - nome este, crê-se, derivado do nome sanscrito de ancestrais habitantes daquela região, os aspásios ou ashvakan - é uma zona do globo terrestre habitada há várias dezenas de milhares de anos pelo ser humano. No decurso da sua História esta região viu o florescer do Zoroastrismo, que durante muito tempo foi a religião dominante da Antiga Pérsia e que exerceu grande influência social e cultural na Ásia Ocidental e Central (religião esta que ainda hoje é praticada por alguns povos), experienciou o domínio helénico através das campanhas expansionistas de Alexandre Magno, e eventualmente, no século VII, foi albergada pela religião islâmica durante a expansão do Primeiro Califado Muçulmano, tendo aí chegado o Islão uns poucos anos após a morte de Muhammad, líder político e militar e por muitos considerado Profeta.


Após a religião islâmica ter tomado controlo do imaginário e da cultura dos povos afegãos, já no ano 1219, as descomunais hordes mongoles lideradas por Gengis Khan varreram a zona e estabeleceram aí o seu domínio imperial, tendo sido quebrado esse domínio muito tempo após a morte de Gengis Khan. Após o Império da Mongólia, o poder político islâmico recuperou o controlo do Afeganistão e aí se tem perpetuado até aos dias presentes com as devidas mutações e transformações ao longo do tempo histórico.


Durante o meu tempo de vida - nascido eu em 1999 - o Afeganistão tem sido sinónimo de guerra, terror, perseguição, exploração por terceiros e um deserto de civismo quase-anárquico. Aliás, quando eu nasci o nome oficial do estado afegão era Emirado Islâmico do Afeganistão: eram, portanto, os talibãs quem exerciam controlo sobre o país. Os talibãs tomaram poder aproveitando-se do estádio de anarquia plena gerado pela guerra civil que explodiu após o derrube da república soviética que vigorava no Afeganistão desde 1978 (quando teve lugar a Revolução de Saur), derrube esse trazido, claro, pela ingerência interna perpetuada pelos Estados Unidos da América aquando da dissolução da União Soviética. 


Sendo pacífico afirmarmos que o fenómeno político que se seguiu à Revolução de Saur foi um de controlo do Afeganistão por parte da União Soviética - o que, obviamente, também é uma forma de ingerência - e, portanto, ausência de Democracia e várias liberdades sociais e políticas, também será pacífico afirmar que a República que vigorou durante essa época se esforçou para refrear o analfabetismo, a ignorância científica e o fundamentalismo religioso. Esta república soviética, à semelhança da sua nave-mãe, a URSS, era um estado ateu, não sendo, portanto, de espantar que grupos terroristas e fundamentalistas islâmicos fossem hostis a esta república soviética afegã, o que viria a dar imenso jeito aos EUA no decurso da Guerra Fria. Outros aspectos mais positivos trazidos pela Revolução de Saur: desenvolvimento de infraestruturas nacionais, estabelecimento dum Estado de Providência, erradicação da servidão financeira de camponeses, fundação de direitos das mulheres, et cetera. Não obstante a ditadura política que vigorou (e que, em todo caso, não se pode comparar a uma ditadura promovida pelo Totalitarismo Islâmico), todos os desenvolvimentos socioeconómicos foram para o lixo nos anos 90, com a eclosão da guerra civil e, em 1996, com a chegada dos talibãs ao poder.


Entretanto, no meio de todas estas contendas, quem são os talibãs? Uma mescla entre movimentos fundamentalistas islâmicos locais que combateram a União Soviética, e que foram financiados pelos EUA (a ironia das coisas), e larga influência da República Islâmica do Paquistão. O término da Guerra Fria significaria também o corte de relações amistosas entre o Complexo Militar-Industrial dos EUA e os fundadores dos talibãs, estabelecidos como milícia armada em 1994. Os talibãs viraram costas aos seus antigos financiadores porque já não precisavam da mão deles, os EUA zangaram-se porque o monstrinho que tinham ajudado a criar lhes tinha mordido a mão. Isto aliás, em tantos casos, foi o que aconteceu após a dissolução da URSS entre os norte-americanos e os seus outrora amigos agora inimigos.


O Emirado Islâmico do Afeganistão que pela segunda vez foi proclamado, este mês, após a tomada de Cabul (cidade multi-milenar fundada, talvez, ainda antes de Zaratustra), governado a título despótico pelo status quo talibã, procura não só fazer justiça às suas antigas contendas contra a Revolução de Saur e as transformações políticas, culturais e sociais por esta revolução trazidas, como também procura expulsar a ocupação política, cultural e militar dos EUA e de nações europeis, enquanto, novamente, como fez no final do último século, espalha o obscurantismo e a barbárie física e mental no estado afegão. Até agora estão a ter sucesso nos seus esforços.


O Afeganistão dos talibãs é um estado que: não reconhece o primado do Estado de Direito; não encontra benefícios no fortalecimento de um Estado de Providência; detesta a Democracia e a Declaração Universal dos Direitos Humanos; não reconhece legitimidade de movimentos sindicais e de direitos da Classe Trabalhadora; abomina a emancipação feminina; odeia a homossexualidade, que é novamente, de acordo com a Lei Sharia, condenada a pena de morte; repudia pessoas transgénero; e é um estado que quer espalhar o Totalitarismo Islâmico pela terra, nem que para isso seja necessária a eliminação de todos os infieis ao Islão. Também o património cultural e histórico que viole as concepções do Islão são um imperativo alvo a abater, desde estátuas budistas a monumentos zoroastrianos. Quanto à música, se a ementa for a mesma que a do primeiro emirado talibã, está proibida à população se envolver instrumentos musicais. É este estado talibã que agora reclama dignidade actorial, junto das instâncias internacionais e dos Estados do Mundo, sob forma do reconhecimento do Emirado Islâmico do Afeganistão.


Fenómenos deste género, no nosso tempo, não são uma novidade, não obstante o facto de serem aberrantes. A Arábia Saudita é o exemplo mais semelhante deste estilo de Fascismo Islâmico e a República Islâmica do Irão segue-se-lhe atrás. E tantas outras formas de opressão e ditadura há por esta Terra fora. O primeiro período de governação talibã do Afeganistão foi marcado, precisamente, pelo catálogo de ruindade que descrevi no parágrafo anterior, a diferença, segundo o que os talibãs querem fazer crer à sociedade internacional, é que estes talibãs de 2021 são talibãs mais civilizados, mais moderados, mais simpáticos, que inclusive concedem entrevistas à imprensa internacional, e que estão dispostos a conceder direitos civis às mulheres... tudo dentro dos parâmetros da Lei Sharia, claro, e quando assim é já se sabe o que eles querem dizer com isso.


Antes de regressar à questão da dignidade actorial do emirado talibã, será crucial abordar o papel dos EUA nos teatro político que está em andamento. Pois bem, foram os EUA que invadiram o Afeganistão no início deste século e que depuseram o emirado talibã anterior. O que se seguiu foi um conflito interno em que, por um lado, os EUA procuraram estabelecer uma república satélite (o que, enfim, conseguiram) e, por outro lado, os talibãs encabeçaram um esforço contínuo de insurgência contra a nova república. Este ano, os EUA e demais vigilantes decidiram retirar as suas tropas. O Presidente norte-americano, Joe Biden, assegurou aos afegãos aflitos, e à comunidade internacional, que as Forças Armadas do Afeganistão estavam preparadas, bem equipadas, bem treinadas e tinham soldados suficientes para refrear a ameaça talibã. Não foi isso que se verificou, como podemos ver. Foi uma questão de dias enquanto Cabul foi tomada, e agora pensamos nós, como foi possível que aquilo que a armada norte-americana preconizava tenha saído completamente ao contrário? Falta de tacto? Será que os serviços de inteligência dos EUA estão a ficar decadentes? Será que a superpotência (ou hiperpotência, como dizia Hitchens) está a dar sinais de que já não é aquilo que era? Será a Administração Biden incrivelmente azelha? Será isto parte maior de um plano norte-americano para terem pretexto para invadir o Afeganistão e deixar tudo em cinza? Os perímetros temáticos deste texto e o meu conhecimento sobre tal assunto que, neste preciso momento, se desenrola perante os nossos olhos não me permitem dar respostas concretas sobre o que de facto se está a passar. Todavia, não devemos permitir que esta ausência de respostas nos desvie a atenção dos seguintes factos: o Paquistão e a Arábia Saudita (querida aliada dos EUA, até ao dia...) estão rejubilantes com este golpe de estado afegão, e a China, que se tem visto em apuros com os muçulmanos uigur, tem agora vizinhos muito suspeitos às portas do Deserto do Gobi.


Quanto à dignidade actorial dos talibãs, no caso do Emirado se conseguir consolidar e perpetuar, a comunidade internacional e a ONU não têm outro remédio que não seja, do ponto de vista prático, reconhecer que o Afeganistão é governado pelos talibãs, uma organização terrorista. Devem os terroristas ser convidados a ocupar lugar na ONU em representação do Afeganistão ou deve esse lugar ser reservado aos oficiais exilados que estavam no governo no anterior regime? Essa é uma excelente pergunta para a qual ainda não encontrei uma resposta definitiva. Todavia, sei exactamente como haveria a Europa, e a República Portuguesa em específico, responder perante o dilema da dignidade actorial talibã. Nem as nações europeias, nem a República Portuguesa, devem reconhecer a legitimidade do Emirado Islâmico do Afeganistão nem, em caso algum, encetar conversações diplomáticas com os governantes talibãs. Perante a República Portuguesa, o Afeganistão deve ser, somente, um estado sitiado por terroristas e a nenhum emissário do emirado talibã deve ser concedida uma oportunidade de diplomacia com o Estado Português. Para mim, a linha está traçada quando se trata de fascistas teocráticos.


Quanto às intervenções pretéritas e às intervenções futuras, reitero que é essencial para a República Portuguesa a cessação de todas as intervenções militares, seja de que estirpe for - como é exemplo as operações actuais levadas a cabo na República Centro-Africana - e é crucial que a República Portuguesa abandone a NATO o quanto antes. Cada dia que passa em que Portugal é um estado-membro da NATO é mais um dia que a República subscreve uma política externa belicista, incendiária, absurda e imperialista, a mando do Complexo Militar-Industrial norte-americano. A República Portuguesa tem culpas no cartório, quanto ao que se passou no Afeganistão, porque também para lá foram enviados soldados portugueses, e à conta desse seguidismo dos desígnios de ocupação mundial dos EUA duas vidas portuguesas foram perdidas (para não falar das outras milhares de vidas perdidas) naquele deserto afegão que outrora foi um berço de cultura e civilização tão resplandecente. Portugal não precisa de sacrificar vidas jovens em missões militares sem nexo. Fazê-lo é um acto absurdo e pouco digno da nossa República. Que se esvazie a NATO e que os jovens militares portugueses sejam trazidos para casa!


O que se passa no Afeganistão está fora do nosso alcance. Tudo o que se pode fazer é não reconhecer a idoneidade política do emirado talibã e prestar auxílio humanitário aos milhares de exilados afegãos que desertaram o seu país. Sob pretexto algum - a menos que seja colocado em marcha um genocídio - deve haver uma intervenção militar no Afeganistão. Sob pretexto algum deve a Europa voltar a envolver-se nestas contendas. Ao fazê-lo, são os próprios estados europeus que ficam em perigo e é a Ásia Central que volta a conhecer o fogo da guerra. Todos os esforços devem ser feitos para impedir o escalar de conflitos militares no mundo, caso contrário a Humanidade joga aos dados com a sua própria sobrevivência. Os horrores da guerra jamais devem ser subestimados.


De momento, mais nada se pode fazer. Quanto ao governo talibã, a sua arrogância é tão grande quanto a arrogância dos imperialistas norte-americanos. Eles julgam-se no direito de impor um credo violento sobre a população afegã sob pretexto de mandato divino. Que evidência tem eles dessa vontade divina? Nenhuma. Que tipo de indivíduos são eles para seguirem vontades de um deus tão violento e feroz? Desgraçados. É a histeria religiosa a dar o seu pior. Muita História já tinha acontecido antes da fundação da religião islâmica, mas eles julgam, no alto da sua arrogância belicista, que a providência desenhou a História para que o Afeganistão fosse uma Monaquia Absoluta islâmica. Quanto ao Emir em funções, é apenas mais um tirano, chefe de uma Classe Dominante, que sob mandato divino colocou a sua pata sobre o povo afegão. Mais do que o Islão e o povo afegão, o Emir procura poder e domínio como tantos outros monarcas absolutos. Resta esperar que o povo afegão reúna forças para resistir.

"Dictators free themselves but they enslave the people"