quarta-feira, 13 de maio de 2020

Sacrilégios: como o Coronavírus também conseguiu infectar a alma dos crentes

Por entre as brumas de confusão com as quais estes tempos patológicos nos brindaram - tempos esses que nos trazem aquele assunto, o qual é virtualmente impossível contornar, e ele materializa-se, desde os televisores, de manhã à noite, no reflexo brilhante duma casca de maçã e até na própria sopa - não tivemos (pelo menos esperava eu que toda a gente já tivesse chegado a esta conclusão) só a confirmação de que um Estado grande e interventivo e um Sistema Nacional de Saúde vigorosamente reforçado - e, já agora, com todos os seus trabalhadores (entenda-se profissionais, em linguagem mais mediática, que é o que os médicos e os enfermeiros de facto são) a serem altamente remunerados -  são condições sine qua non (a par com altos índices positivos no domínio do Ensino, assunto que não é para aqui chamado) para vivermos numa sociedade próspera, segura e livre. Uma outra confirmação - não tão imediatamente relevante, talvez, mas, ainda assim, digna de atenção -, pelo menos na minha cabeça, foi trazida por estas brumas de confusão. Falo da confirmação de que deus já não vive. Friedrich Nietzsche, essa controvérsia em pessoa, já nos havia chamado a atenção para esse facto no seu livro Assim Falou Zaratustra, embora o verdadeiro significado da sua, para muitos pavorosa, afirmação esteja, ainda hoje, envolto em debate: referia-se ao facto que o Iluminismo do Século XVIII tinha descartado, definitivamente, a existência de um deus, ou afirmava que o Deus Abraâmico já tinha existido e que, a dada altura, deixou de existir porque a Humanidade (de alguma forma paradoxal) cometeu deicídio? Independentemente das motivações da afirmação "Gott ist tot" de Nietzsche, ele estava, de certa maneira, certo no fundamental, especialmente, se considerarmos os cem anos que seguiram o findar do Século XIX: deus morreu.

De entre as arbitrárias - sim senhor, arbitrárias!, porque, cientificamente, não são comprovadas nem consensuais entre a comunidade científica - decisões tomadas nos Estados, e no nosso em específico, durante o Estado de Emergência, para travar a COVID-19, desde a proibição de circulação no território, passando pelo encerramento de tudo e mais alguma coisa e pela proibição enfática do direito à greve (e outros direitos laborais fundamentais), indo até à proibição do consumo de bebidas alcoólicas na via pública (e se via pública significar "espaço exterior às nossas habitações" então, a dada altura, durante o Estado de Excepção, eu, qual vilão, desobedeci à lei), também as igrejas foram encerradas para férias e, portanto, o sacramento da Eucaristia foi suspenso. Não foi esse, curiosamente, o único dos sete sacramentos a ter sido suspenso na Igreja Católica. Na verdade, tanto quanto sei, desde que começou o período da quarentena (e que, ainda que ele, legalmente, já tenha terminado, ainda há muito cidadão moralista que o tenta enfiar goela abaixo dos demais cidadãos), nenhum sacramento foi celebrado... salvo as missas celebradas, clandestinamente, ainda com muito fervor religioso, em lugares como Trás-os-Montes. Nem a Extrema-Unção, o sacramento final, foi poupado, imagine-se! Em cima de toda esta anulação de religiosidade que, convenhamos, assim como a anulação de muitas liberdades, foi, na generalidade, admitida de forma passiva pela massa crente, também o Santuário de Fátima repousou de movimentações peregrinas. Dividido entre dois registos retóricos, um bastante compreensivo e, quiçá, solidário para com a espiritualidade/religiosidade das pessoas, outro, confesso, bastante cínico face ao próprio fenómeno da Religião, há três comentários que devo fazer, conectados entre si, relativamente à relação entre o fenómeno religioso e o surto do Coronavírus. Um diz respeito à peregrinação a Fátima, outro às missas e um terceiro diz respeito aos sacramentos da Cristandade, com especial incidência sobre a Extrema-Unção (e, a seu tempo, também explicarei o porquê da incidência sobre este particular sacramento). Antes de prosseguir devo fazer uma salvaguarda. Apesar da relevância de que outras religiões possam gozar, o meu comentário aplica-se concretamente à realidade católica - em parte por ser muito pitoresca - não esquecendo que, num patamar mais geral, as vicissitudes de maior parte das religiões (excepção para o Budismo, Taoismo, etc.) repetem-se da mesma forma.

Fátima, como sabemos, é o maior fenómeno religioso - com grande peso social - em Portugal, e também é um grande negócio. Um belo negócio para as empresas hoteleiras que inflaccionam o custo de alojamentos na zona, e um mirabolante negócio para as cobiçosas criaturas que vendem, a preços descontrolados, simples tendas, água de Fátima que alegam ser sacra e até terra de Fátima. Terra do chão, literalmente. Já faltou mais para anunciarem a venda do Santo Graal, da Arca da Aliança, do Santo Sudário e da Pedra Filosofal em hasta pública, espectáculo esse que pagaria, não para poder comprar, mas poder assistir na primeira fila. A Igreja Católica, disfarçando a indignação, apela à moralidade na vida comerciante de Fátima, mas ri dentro de portas, fascinada com o poder mental que, em certos espaços, ainda detém. Todos os anos, peregrinos portugueses e estrangeiros dirigem-se, muitos andando outros de carro, ao Santuário celebratório das supostas aparições, da virgem progenitora de Jesus Cristo e de um certo Sol dançante, que lá tiveram lugar há 103 anos. As Aparições de Fátima, como foram traduzidas pela imprensa crente e pela Igreja, moveram milhões de crentes cristãos até ao sagrado local em território português, alentados também pelos famosos Mistérios de Fátima, divulgados por uma certa irmã Lúcia dos Santos, e ao longo destes anos tem sido um autêntico evento de dinamismo religioso, tendo também servido, em selectos tempos, com especial incidência para o Estado Novo de Oliveira Salazar, largos propósitos de ultra-conservadorismo político. Negar, portanto, a relevância social e política de Fátima seria um exercício tolo. As imagens, ano após ano, de muitos milhares de peregrinos a encherem a Praça do Santuário, com velas acesas apontadas ao firmamento, devo confessar que me impressionam, e também me impressiona (neste ponto pela negativa) ver humanos, deliberadamente, em nome de uma qualquer promessa, a arrastarem-se de joelhos pelo chão do Santuário, pedindo clemência a um deus que não compreendem tratar-se dum tirano (ainda que efectivamente não exista). Relativamente a esses peregrinos em particular fico com um sentimento misto de incompreensão e comoção... mas cada um faz aquilo que entender a si próprio. Pondo este fenómeno em pratos limpos, é de espantar como a Igreja Católica e os seus seguidores abriram mão, tão facilmente, deste evento, sem celebrarem as aparições em que acreditam a pés juntos, sem procissões, sem nada. É como se o próprio vírus lhes tivesse dissipado a inabalável fé. Não seria agora o momento de clamar por mais um milagre aos Céus? Não terão fé de que Nossa Senhora faria a folha ao COVID-19 num instantinho? Enfim, poderá-se argumentar dizendo, Fátima é uma celebração, a fé pode ser professada de outras formas mais simples, ao que eu pergunto, Formas essas como as missas, cujo sacramento da Eucaristia é central na fé? Mas também não há missas...

A celebração da missa e da Eucaristia - isto é, dito de forma simples, a recriação da Última Ceia, como pedida por Jesus Cristo aos seus apóstolos, segundo aquilo que está escrito no Novo Testamento da Bíblia - é nuclear na fé cristã, e Cristo foi bem explícito que essa cerimónia devia ser sempre repetida. Eventualmente as missas, para esse efeito, foram inventadas. O que vemos hoje é um fenómeno incrível (na verdadeira acepção da palavra) em que até isto os crentes e a Igreja Católica acederam de forma mais ou menos silenciosa a cancelar. Não levantaria tal coisa um gigantesco problema do foro teológico? Não põe, tal suspensão de celebração religiosa, tão importante - quase como se fosse o tempo de antena formal que os crentes leigos têm com o altíssimo todo-poderoso -, os próprios terráqueos mortais em grande dívida para com deus, também conhecido como Jeová? Não será tudo isto contraditório? Se deus existe e é omnipotente, omnisciente e omnipresente, e ainda por cima bom para as suas sementes, porque haveria ele de congeminar tal evento patológico que cancelaria as próprias celebrações sagradas em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo (o trio, de uma entidade só, imagine-se tal coisa, conhecido como Santíssima Trindade)? Será sinistramente cínico, e portanto, com certeza, não será bom? Será o Diabo/Satanás, ou Lúcifer como eu gosto que ele seja referido, o mafarrico por detrás de tudo isto, emperrando a engrenagem da "máquina do mundo [referência a'Os Lusíadas]"? Na Idade Média era assim: algo corria mal e punha-se as culpas em Lúcifer. Logicamente, apesar de, como Deus, não passar de uma personagem fictícia e bíblica, Lúcifer é, precisamente, a minha personagem favorita na Bíblia - uma espécie de Prometeu anti-heróico e revolucionário - e custa-me muito ver a sua figura angelical a ser constantemente vilipendiada. Ou melhor que tudo isto, não será, toda esta História da Religião, uma estória muito mal contada, saturada de plot holes e incongruências indescortináveis, como se tivesse sido redigida por um escritor de baixa categoria? Façam o que quiserem disto, cada um acredita na sobrenaturalidade que entender, mas levar isto como dogmas não é diferente de crer no monstro do esparguete voador ou que todos nós vivemos dentro do globo ocular dum gigante.

Por último a Extrema-Unção. É aqui que sinto uma maior solidariedade para com as barreiras montadas contra as livres práticas da espiritualidade, porque, é preciso afirmar, apesar do meu antiteísmo, eu sou um defensor da liberdade religiosa, desde que essa liberdade religiosa não implique, por exemplo, a incineração pública de livros e pessoas, o que, felizmente, já não se assiste tanto com há 500 anos. O meu choque pela abolição temporária da Extrema-Unção - o sacramento concedido ao crente no seu leito de morte - tem que ver, precisamente, com a sensibilidade do assunto, uma vez que, parecendo que não, eu também me consigo colocar no lugar do outro, neste caso dum sólido religioso. A paz do crente no leito de morte - com fé de que a sua alma viaje até às portas do Céu - creio que não será um assunto que os religiosos, neste caso cristãos católicos, encarem de forma leviana. Nem percebo como é que a Igreja Católica se deu ao trabalho de fazer tanto barulho contra coisas como a legalização da Eutanásia, e para tudo isto que já descrevi - que basicamente significa a suspensão de todas as bases fundamentais do credo - não se maçam nem com o mínimo ruído. É quase como se a fé se tivesse esfumado nas brumas da virose. Não deixa de ser irónico que uma das instituições mais inflexíveis da História tenha concedido suspender quase toda a celebração da fé, de forma tão serena. Face a isto, eu só posso perguntar: onde está a fé? E onde está deus? Não está...

Nada disto tem por base ferir a integridade dos que se afirmam religiosos, ou fazer uso desta pandemia como trampolim para atacar a lógica da fé e da Religião. Todavia, é um fenómeno ao qual é difícil de fechar os olhos. Pergunto-me: será que, com este vazio, as pessoas não se começam a aperceber do absurdo e da incongruência que é ter fé - colocando de lado o primado da razão - no sobrenatural quando este não dá provas de si mesmo? Será que a diferença entre haver ou não haver Eucaristia não é nenhuma? Não é o sobrenatural que atende os doentes no Hospital, são pessoas que trabalham... e no meio disto tudo, já Saramago inquiriu, ironicamente como era seu magistral estilo, "Onde está deus"? Saramago disse, também, que a ideia de deus morre - não é que deus morra porque, para morrer, precisava de existir - quando deixar de haver um único crente. Quando tal acontecer, o proverbial deicídio aconteceu.