terça-feira, 7 de novembro de 2023

Crimes de Guerra no Conflito dos Séculos


Como são, tantas vezes, as tragédias e as desgraças do mundo o alento para a proliferação de textos, ensaios, panfletos e manifestos, também a actual e antiga tragédia não podia deixar de voltar a ser abordada no Pensatório. Logo nesse fatídico dia em que o Hamas iniciou a sua ofensiva, pensei em começar logo a escrever, o mais rápido que pudesse, e depois publicar no tempo mais célere possível, um texto sobre o conflito entre Israel e Palestina. Mas elegi não o fazer porque os corpos de tantos jovens, que apenas queriam estar num festival de música, ainda não tinham arrefecido, e também porque decidi esperar para ver como se desenrolaria a situação em vez de mergulhar em suposições e vaticínios. E não se desenrola, claro está, a favor da Humanidade. Para quem estiver a ler este texto e ainda não tiver lido aquele que eu escrevi há dois anos, e porventura queira ler a minha sintética interpretação histórica deste conflito e a ligação com a milenar centralidade cultural de Jerusalém naquela região do mundo, pode consultar no Pensatório da Divisão o texto de Maio de 2021 intitulado Israel & Palestina e além: Conflito dos séculos. Para este texto ofereço uma abordagem mais directa e, provavelmente, mais emocional.


Desde o início que esta nova etapa da guerra entre o Estado de Israel e as forças fundamentalistas da Palestina se tem pautado pela coerência em cometer crimes de guerra. Antes que se façam quaisquer balanços de culpa, sejam históricos ou presentes, há que reconhecer que esses crimes de guerra são praticados tanto pelo Hamas como pelo Governo e lideranças das Forças Armadas do Estado de Israel. São estas duas facções que estão em guerra e são ambas as facções prevaricadoras exímias de crimes de guerra: da pior criminalidade que pode existir que torna malévolo algo que já per se - a guerra - é horrível.


Faz hoje um mês que o Festival Supernova - um evento musical de género transe de espírito liberal - foi atacado por uma horda de bárbaros do Hamas, que tinham invadido território na jurisdição de Israel a partir da Faixa de Gaza. 260 corpos foram encontrados no recinto, jovens muitos deles, da minha geração, massacrados à lei da bala e da lâmina. Outros tantos, de tantas origens e nacionalidades, foram raptados e feitos reféns por aqueles bárbaros. Reféns permanecem em parte incerta. O Hamas tinha feito uma manobra para reacender a guerra. Alguém que não me conheça minimamente e que leia isto, e que seja solidário com a causa palestiniana (que não tem de ser a causa do Hamas), poderá pensar que eu sou ligeiramente parcial perante o conflito a favor do Estado de Israel. Pois bem, não sou, e também não temos de ir à pressa escolher lados e levantar bandeiras, como foi feito com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. O conflito é tão antigo e tão complexo que nos perdemos no número de lados que há, porque não são apenas dois lados. Há mais lados para além das vontades do sistema sionista de Israel (a ironia de hoje haver judeus que se comportam como fascistas) e das ambições de destruição total dos bárbaros do Hamas. Há israelitas e palestinianos, dentro e fora da política, velhos e jovens, religiosos ou agnósticos, que querem a paz e querem coexistir em harmonia. Há organizações políticas israelitas e palestinianas que querem soluções e querem o fim da guerra. Temos a Fatah na Palestina (partido no governo da Autoridade Palestiniana), que infelizmente não consegue exercer controlo sobre a Faixa de Gaza, e temos no Knesset de Israel deputados eleitos pelo Partido Trabalhista e pelo partido marxista Hadash-Ta'al. Todavia, os focos mediáticos não incidem sobre os grupos nas sociedades israelita e palestiniana que defendem o fim da guerra e a secularização dos respectivos países mas incidem antes sobre o Hamas e sobre Netanyahu e o complexo militar-industrial que ele lidera.


Algumas pessoas poderão relativizar o facto de acontecerem crimes de guerra - porque a guerra em si já é violenta e assassina - mas a verdade é que, perante o Direito Internacional e a ONU (Organização das Nações Unidas), até a guerra tem regras. Algumas dessas regras são: não usar como alvo civis indefesos; não atacar escolas e hospitais; não violar sexualmente; não fazer reféns civis; não torturar. Israel já atacou campos de refugiados, escolas e hospitais, os seus soldados já violaram e torturaram, e Israel já bombardeou civis indefesos. O Hamas, por seu turno, já fez reféns civis, já torturou e violou e já tentou bombardear civis, sem dó nem piedade, não fosse o sistema de defesa anti-aérea de Israel denominado Iron Dome. Ambas as partes fazem dos crimes de guerra procedimento casual nas suas operações militares, tendo o Hamas, na minha estimativa, ainda menos escrúpulos que as lideranças do Estado de Israel. O ataque ao Festival Supernova - escolha deste evento feita devido ao ódio que o fundamentalismo islâmico tem à música e à liberdade - e as matanças e atrocidades bestiais, que o Hamas tem levado a cabo, em várias localidades vulneráveis, por onde os bárbaros passaram para derradeira desgraça dessas comunidades, quase que fazem da guerra entre a Rússia e a Ucrânia um duelo de cavalheiros.


Há décadas que a Assembleia-Geral das Nações Unidas aprova resoluções no sentido de encontrar o caminho para a paz nesta guerra interminável, quer seja no sentido de tornar possível a construção de dois estados soberanos, quer seja no sentido de neutralizar o extremismo religioso, quer seja no sentido de encontrar uma solução duradoura para Jerusalém. Os comunicados e pareceres que nos chegam da ONU, da Amnistia Internacional, e de tantas outras organizações, governamentais ou não, que têm observado o último mês de mortes e chacinas, que têm prestado auxílio humanitário, e que têm socorrido o melhor possível, relatam-nos cenários de atrocidades e manobras militares torpes, cobardes e infanticidas completamente vazias de ética e ignorantes perante as leis da guerra. A Amnistia Internacional dá-nos notícia, numa nota publicada no site oficial da organização, datada de 15 de Outubro, que a rapidez da escalada do conflito entre israelitas e palestinianos não tem precedentes e que milhares de pessoas, de ambas nacionalidades, já perderam a vida devido à guerra. A Amnistia Internacional tem insistido, com propriedade, no facto de que o sofrimento de civis em contexto de guerra é chocante, e aqui sublinhando sobretudo os civis que residem na Faixa de Gaza - o território palestiniano controlado pelo Hamas e onde Israel iniciou musculosas operações militares. Do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, chegaram apelos de cessar-fogo imediato, salvaguarda de vidas inocentes e apelos desesperados ao fim do infanticídio que está acontecendo na Faixa de Gaza. Perante os apelos e exigências do Secretário-Geral da ONU, o embaixador de Israel na Assembleia-Geral da Nações Unidas proclamou que este devia de ter vergonha e que já não reunia condições para ocupar o dito cargo. Diz Eli Cohen, o referido diplomata, que o problema não é o exército de Israel mas sim o Hamas que detém refém a população de Gaza e a impede de se refugiar em território mais seguro. Ainda que seja verdade o facto de o Hamas usar populações inteiras como escudo humano - a táctica mais cobarde e repugnante que pode haver em cenário de guerra -, Eli Cohen quer omitir-nos de que tal não justifica o bombardeamento de hospitais e bairros inteiros onde vivem pessoas indefesas e onde certamente crianças serão um alvo condenado à morte.


Enquanto for o Hamas a mais poderosa facção política que se apresenta como a força pela libertação da Palestina - ainda que os ditadores do Hamas nada mais queiram do que libertarem-se a eles próprios e escravizar ainda mais pessoas -, e enquanto o status quo do Estado de Israel se conservar, o conflito nunca terá solução. O Hamas quer aniquilar todos os judeus no planeta e impor a religião islâmica sobre todo o pedaço de terra que conseguir ocupar. A única coisa que verdadeiramente diferencia o Hamas do exército nazi é que estes últimos, ainda que movidos pelo ódio e pelas mais degradantes motivações, tinham nas suas fileiras autênticos guerreiros munidos de coragem prontos a enfrentar o adversário em campo aberto, nos mares e no ar. Fora a cobardia do Hamas, é tudo farinha do mesmo saco. Quanto aos governantes de Israel, a única motivação destes é a expansão do território e a multiplicação das suas riquezas. Para atingirem esse fim estes estão preparados para cometer genocídio. Com duas partes tão sedentas de poder e sangue, tão cegas, tão decididas em obliterar o outro, é difícil encontrar a paz e a conciliação antes que um autêntico cancro de mortandade se espalhe na Ásia Ocidental. Seria necessário que o povo judaico de Israel acordasse e percebesse que o regime que os governa os leva num caminho medonho de crimes de guerra e de hipotéticas guerras futuras com entidades mais perigosas e poderosas que o Hamas, e seria necessário que o povo palestiniano conseguisse unir-se e cilindrar os seus opressores de dentro. O povo palestiniano não é o Hamas e a prova disso é a quantidade de palestinianos que reconhecem os dirigentes da Fatah como seus líderes e representantes.


Como é a diplomacia portuguesa perante esta deprimente desgraça? Nem magnânima, nem terrível… tirando a mais recente patinagem desastrosa do Presidente da República. Foi na semana passada que, perante as câmaras do mundo, Marcelo Rebelo de Sousa achou apropriado começar uma ligeira discussão com o embaixador da Autoridade Palestiniana sobre quem tinha começado e quem tinha acabado. Lamentável! Triste figura que a República Portuguesa fez aos olhos dos estados do mundo, sob representação do seu Chefe de Estado. Mas também é verdade que o ‘desabafo’ do Professor Marcelo perante as câmaras, dizendo ao diplomata palestiniano que os palestinianos é que iniciaram esta nova etapa de guerra, deverá ter agradado ao complexo militar-industrial dos Estados Unidos que com cobiça na alma espreita do outro lado do Atlântico. Se fosse tão fácil dizer quem é que começou, distribuir a panóplia das culpas e encerrar os diferendos, não teríamos chegado até onde chegámos. Se por um lado se pode argumentar que o Hamas é que reacendeu os fogos da guerra com o ataque terrorista ao Festival Supernova, Israel já tinha lá deixado as achas e as acendalhas com a sua política de colonização e despejo de tantas comunidades palestinianas que ao longo dos anos têm acumulado tantas amarguras e tantos ódios. É com a marginalização, segregação e desprezo que as comunidades se radicalizam e se deixam cegar pelas promessas de glória eterna oferecidas por abutres que nada mais querem desses civis tornados guerrilheiros que sejam carne para canhão. O ciclo de ódio já é tão antigo e complexo nos meandros que já ninguém sabe quem é o quê, e chegará o dia em que já ninguém recorda, enquanto dispara mais um roquete, porque é que foi disparada a primeira bala. 


O conflito só terá um fim quando as organizações terroristas islâmicas desaparecerem do mapa (e se esse dia chegar será um grande dia para a liberdade dos palestinianos e do mundo) e quando haja um governo israelita que ponha termo aos colonatos e permita o pleno estabelecimento do Estado da Palestina. No que concerne a dificílima, complexa e fulcral questão da Cidade de Jerusalém - a questão que tantas vezes tem sido salientada como um problema-chave no conflito -, creio cada vez menos que a resolução passa pela solução de dois estados. E não. Obviamente também não passa por se ceder Jerusalém em exclusividade, a uma nação ou à outra. Mas deixarei uma nova abordagem a este assunto particular para outro dia.


Foi há um mês que, enquanto tantos jovens, no apogeu da sua felicidade, viviam a vida num festival musical, um batalhão de homens enlouquecidos e mentalmente degradados entrou pelo recinto dentro e disparou sobre tudo o que movia. Estes bárbaros do Hamas - também colocando, em simultâneo, um grande alvo nas costas das populações palestinianas -, munidos de metralhadoras e granadas, acharam que seria a vontade de deus abater e destruir pessoas que ainda tinham uma vida pela frente, todos eles desarmados, todos eles sem condições para se defenderem. Uns foram mortos, vivendo os últimos minutos de vida em terror, outros foram sequestrados e ainda são reféns da barbárie. Este texto é também a minha forma de fazer uma homenagem às jovens vítimas da teocracia islâmica.


A guerra tem de terminar. Uma solução tem de ser encontrada para Jerusalém. A Palestina tem de ser libertada e providenciada com território. O fundamentalismo islâmico tem de ser eliminado.


Martes, 15 de Brumário CCXXXII

domingo, 6 de agosto de 2023

A Igreja Católica e o seu Festival de Verão

O que escrevi há cinco meses:

Durante uma semana, no Verão do presente ano, terá lugar na República Portuguesa um evento com uma estrondosa potencialidade de ridículo. Um evento que expõe na luz do dia a elementar megalomania que assombra as consciências das lideranças da Igreja Católica. É também um evento que vem confirmar que as religiões ainda têm muita força, que o Cristianismo ainda tem muita força, e que o Catolicismo em particular ainda tem uma capacidade de influência surpreendente. Pela parte que me toca, nada disto são boas notícias, evidentemente. O nome da efeméride é Jornada Mundial da Juventude (World Youth Day, em inglês, Dies Iuvenum Totius Orbis, em latim), uma aglomeração de milhões de jovens fiéis católicos (também lhes chamam peregrinos, ainda que muitos destes sejam peregrinos voadores, pois viajarão para cá de avião) numa única cidade com o único intuito de se juntarem, escutarem homilias enfadonhas e rezarem. Lisboa será a cidade vitimada este ano, todavia, segundo consta, haverá peregrinações a outros pontos do país, nomeadamente Fátima (obviamente). 


O que me levou a dedicar um texto a esta Jornada Mundial da Juventude - à parte, claro, das polémicas que têm surgido em torno dos dinheiros à volta do evento - foi a própria natureza demográfica da coisa e o facto de ter lugar na minha nação republicana. A grandes e pequenos eventos religiosos (concentremo-nos na Igreja Católica) estou habituado: romarias, procissões, missas, peregrinações. O Santuário de Fátima, por exemplo, é um gerador contínuo e ininterrupto de religiosidade… e receitas financeiras. Mas nesta multitude de eventos religiosos, grosso modo, a demografia presente está nas faixas etárias mais envelhecidas, e com isso eu consigo lidar. Todavia, a JMJ distingue-se da regularidade dos eventos católicos na medida em que, neste evento específico, é a gente nova que detém protagonismo, e gente nova, portanto, que se afirma católica. Quanto aos gastos envolvidos, que chegarão também à bolsa do Estado, uns tantos enervam-se com o facto de haver pessoas a demonstrarem preocupação com isso. Afirma Joana Petiz, no Diário de Notícias, num texto assinado no dia 5 de Fevereiro: «E, no entanto, em vez de nos alegrarmos e puxarmos por um momento que pode verdadeiramente empurrar Portugal para a frente e para cima, concentramo-nos na mesquinhez das contas de mercearia, debatemo-nos na espuma da cada vez mais vazia e suja luta política. (...) O orgulho nacional foi substituído pelo desprezo nacional, o autoelogio pela automaledicência. É triste. E impede-nos de lutar pelo país que devíamos estar a construir e a anunciar ao mundo. O que queremos deixar aos nossos filhos.» Orgulho nacional e contas de mercearia. Para quem tenha ficado atordoado com a citação, passo a clarificar: quando Joana Petiz escreve sobre orgulho nacional, refere-se ao orgulho que é Portugal acolher um evento internacional católico, omitindo, claro, a escassez de orgulho que a Igreja Católica inspirou no passado e no presente (a pedofilia clerical está na ordem do dia) e esquecendo que o orgulho é um dos sete pecados capitais da fé cristã, mas sobre isso ela saberá muito pouco ou nada; quando Joana Petiz escreve sobre hipotéticos milhões de euros a serem queimados neste festival, refere-se a tal como contas de mercearia. A Joana Petiz deve estar cheia de dinheiro para milhões lhe equivalerem a «contas de mercearia». Na cúpula de tudo isto, Joana Petiz demonstra não compreender aquilo que discute - um evento internacional católico, no âmago da sua razão de ser e dentro daquilo que são as lógicas da universalidade da Igreja Católica (afinal, católico é um termo sinónimo de universal), não serve para engrandecer o estatuto daquele país ou daqueloutra cidade. Enquanto Igreja que é transnacional e pluricontinental, os eventos internacionais da fé cristã católica são fenómenos que servem somente para engrandecer a Igreja, Jesus Cristo e o deus que veneram. Isto sei eu que não sou católico nem cristão, ao contrário da Joana Petiz. Para quem achou excessivo o estilo da contra-argumentação que eu lancei à postura desta cronista, eu peço a devida licença e sublinho que já há bastante tempo que a tinha atravessada.


Cinco meses volvidos:


Os dois primeiros parágrafos deste texto foram escritos há cinco meses. Nos últimos cinco meses esperei para ver o que acontecia e de que forma a concretização da realidade coincidia com a mensagem que eu procurava transmitir. Procurava ir digerindo a sucessão de acontecimentos e apalpar a ambiência societal que nos circunda. Agora escrevo durante a realização da JMJ e a realidade aí se afigura tão irónica mas também tão desgraçada. Temos aí o ridículo e temos aí a hipocrisia. Peguem no comando da televisão e metam na transmissão de um qualquer noticiário, e verifiquem se observam o mesmo que eu. Tentem ver muito para lá do Papa Francisco e da sua recta postura institucional e humanitária. Um aspecto em que me equivoquei, quando escrevi os dois primeiros parágrafos há cinco meses, foi que os jovens católicos vinham no «intuito de se juntarem, escutarem homilias enfadonhas e rezarem.» Afinal o intuito não era só esse. Aliás, em retrospectiva, as rezas e as missas são uma parte menor de todo o festival. Em paralelo com os espectáculos de 'música' electrónica, produzidos pelos DJ (pelo menos um deles é padre), onde jovens e magotes de freiras pulam e dançam, em paralelo, também, com as participações e depoimentos de bispos e políticos em uníssono, a JMJ está a ser um evento catalisador de desordem pública e comportamentos ridículos. Que seja vista a forma como quadrilhas inteiras de juventude católica se tem comportado não só dentro dos comboios metropolitanos de Lisboa - fazendo barulho sem fim e executando números que tiram a paz e o sossego a quem quer ter uma simples viagem de metro (no Japão, por exemplo, aquelas macacadas não seriam toleradas) - e também aquando da transposição das barreiras do metro, como nos têm mostrado vídeos que foram gravados a documentar estes comportamentos para registo histórico. Como nos mostra um vídeo, filas paralelas destas pessoas furam pelas barreiras, sem passarem cartão, desrespeitando o serviço público de transportes e causando estorvo ao transeunte comum. Em Lisboa isto chama-se passar à pica. Mas neste caso não são um nem dois, são dezenas deles, católicos de confissão e cristãos de acção (dizem… )


Antes de voltar às vicissitudes de hipocrisia e contradição que dominam a mentalidade da JMJ, gostaria de falar da parte política e económica que assiste toda esta problemática. Em primeiro lugar, à semelhança da cronista Joana Petiz, Carlos Moedas, autarca do Município de Lisboa, também não tem a mínima noção dos fundamentos universalistas que assistem o Cristianismo e que assistiram a instituição das Jornadas Mundiais da Juventude, em 1985, com a assinatura do Papa João Paulo II. Mais nada fala o indivíduo que não seja a projecção de Lisboa para o mundo e a instituição de Lisboa como capital mundial da juventude. É banalidade atrás de banalidade e politiquice atrás de politiquice. Se elegermos levar a sério os fundamentos que são a raiz da instituição das JMJ, estes não têm que ver com a elevação da urbe para onde a peregrinação irá confluir mas sim com o alcançar de uma experiência espiritual colectiva e multicultural e a colocação da juventude no centro da reflexão religiosa do Catolicismo. Ainda que se diga católico, Moedas percebe muito pouco daquilo que se passa com a sua cegueira na sua preciosa cidade (cidade essa que é o nosso eucalipto nacional, pois seca tudo à volta) e comete o pecado de meter o nacional e provinciano à frente dos alegados propósitos universalistas, religiosos e espirituais, desta enorme peregrinação.


Quanto ao Presidente da República e ao Governo, e a todos os deputados complacentes, para eles a Constituição só deve ser respeitada quando é conveniente. A JMJ acontece em plena circunstância de inconstitucionalidade, e tal não se deve, obviamente, à realização da própria peregrinação em território nacional - o artigo 41 da Constituição da República assegura a liberdade de culto e a liberdade religiosa, estando tal evidente nas alíneas 1, 2 e 4 - mas deve-se sim ao oficial envolvimento do Estado e dos Órgãos de Soberania no desenrolar da efeméride. Isso sim é inconstitucional. O artigo 41 assegura a legalidade da liberdade religiosa dentro da República Portuguesa, mas a alínea 4 deste artigo contém uma passagem fundamental para aquilo que eu aqui discuto: "As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado (...)". Em nenhum ponto da Constituição surge reconhecido o divino e o transcendente. Em nenhum ponto da Constituição o Catolicismo é afirmado como a religião oficial do Estado. O Estado é laico, isto é, não tem religião, isto é, o Estado e os Órgãos de Soberania tem de ter total imparcialidade perante todas as religiões e formas de espiritualidade, não só porque o Estado é laico mas também porque é assegurada a liberdade a todas as formas de culto religioso. Todas as religiões, perante a Constituição, estão no mesmo plano de igualdade perante o Estado e a Lei e perante elas o Estado não apresenta qualquer religião, nem a Lei apresenta quaisquer directrizes religiosas. Tudo o que sucede contrário a isto encontra-se em situação ilegal e inconstitucional. O Governo, o Presidente da República e a Câmara Municipal de Lisboa estão a agir contra a Constituição e contra a legalidade democrática. Um leitor mais desinformado ou um leitor de postura mais cínica poderia perguntar "então e de que forma é que os Órgãos de Soberania estão em tão severa situação inconstitucional?"


Se o Estado é laico e imparcial perante todas as religiões, então o Estado não pode participar com dinheiros públicos na contribuição para a realização de eventos religiosos - a JMJ, por exemplo. Mas a verdade é que só a Câmara Municipal de Lisboa já empreendeu cerca de 40 milhões de euros a respeito da JMJ. Dinheiros camarários são dinheiros públicos, e portanto dinheiro do Estado, e portanto dinheiro dos contribuintes. Se já é gritante ver o Presidente da República a comportar-se como um mero devoto perante o papa e a efeméride católica, quebrando absolutamente o princípio de neutralidade religiosa do Estado enquanto seu representante máximo, não se comportando como o Chefe de Estado que devia ser, ainda mais gritante é ver dinheiros públicos canalizados em festins religiosos. Mas quase ninguém quer saber disto. Faz parte da trilogia da ditadura que ainda tanto molda as mentalidades portuguesas: Fado, Football e Fátima. A Constituição é violada, os cães (como eu) ladram, mas a caravana passa.


Voltando à vergonha alheia, ao ridículo e à hipocrisia, há tanto mais para pegar. É um autêntico laboratório de dissecação das contradições de uma pretensa religião da paz e do amor. Podemos pegar, como já dissertei, na desordem pública e na eventual excessiva criação de lixo. Podemos pegar no cartaz que foi exposto no Município de Oeiras, baluarte do antigo presidiário Isaltino Morais, no qual aparecia o número 4800. Era um cartaz escrito em inglês que chamava a atenção do público internacional para os achados da comissão independente que foi incumbida de investigar o histórico das últimas décadas de abuso sexual de crianças e jovens por clérigos da Igreja Católica. O número a que essa comissão chegou foi a cerca de 4800 crianças nas últimas décadas, e sabemos que estes números ficam sempre aquém da realidade. Este achado fez manchete nos jornais internacionais. Mas o executivo camarário de Isaltino Morais achou por bem - deverão ser estes os tais portugueses de bem de que fala o outro - 'limpar' a paisagem urbana, pois factualidade tão grosseira só poderia afligir as sensibilidades dos jovens católicos e do seu Clero, e assim se praticou um exercício de censura em Portugal do Século XXI. Por caminhos apertados e à margem do Estado de Direito o cartaz foi retirado do outdoor. Podemos também pegar no incidente que há poucos dias sucedeu, no Parque Eduardo VII, em plena luz do dia e no meio de uma multidão católica, no qual um jovem português, empunhando uma bandeira arco-íris - símbolo da Comunidade LGBTQ a nível mundial - foi abordado por um conjunto de outros jovens estrangeiros que pretendiam barrar-lhe a circulação e retirar-lhe a bandeira, gerando-se no local uma discussão conduzida no idioma inglês. Também um destes dias se celebrava uma eucaristia dirigida a pessoas LGBTQ, no pretenso âmbito inclusivo da JMJ, quando a cerimónia presidida por um padre católico foi invadida por um grupo de católicos fanáticos (também estes peregrinos da JMJ) que afirmavam ir expiar pecados mortais. A PSP foi inclusive chamada ao local. E por mais que o Papa Francisco fale sobre inclusão e superação do ódio, é perceptível que muitas ovelhas do rebanho estão furiosas com esta nova tentativa de inclusão no seio da Igreja, e este descontentamento é encontrado nos fiéis comuns mas também em bispos, arcebispos e cardeais. E se a Igreja Católica é composta pelo todo dos seus crentes e clérigos, então não será um Sumo Pontífice bem intencionado que vai alterar permanentemente as mentalidades. As mentalidades poderão progredir, mas o caminho ainda será custoso.


Será legítimo para qualquer leitor deste texto presumir que a minha posição filosófica de análise assenta numa mentalidade asceta. Afinal, eu já ironizei a propósito de festins de DJ com a participação de fiéis e membros do clero. Também podia ironizar a propósito das noites boémias dos jovens peregrinos, quer seja noites repletas de copos ou noites floreados por sexo heterossexual ou homossexual (não tenham dúvidas que as noites boémias da JMJ também tem disto). No final de contas eu podia ser aqui visto como um asceta conservador que com maus olhos vê as incursões hedonistas da juventude. O problema com essa hipotética análise é que eu próprio sou um hedonista (ainda que bastante moderado nos dias que correm) e portanto nunca poderia criticar o hedonismo dos outros. Onde eu quero chegar é precisamente à hipocrisia da massa católica. Tanta coisa com o pecado, a moderação, a espiritualidade, a introspecção, as orações, o modo de vida asceta para se ascender ao Reino Celeste, tanta coisa com tanto dogma católico e no final de contas, em larga medida, a JMJ é nada mais que o Festival de Verão da Igreja Católica onde a malta de junta para a diversão.


As questões que faltam colocar são as seguintes: em que dimensão é que esta peregrinação mundial à capital portuguesa contribuiu para a reflexão sobre o significado e o sentido da religiosidade? Para que serve rezar? Para que serve ter fé na existência de deus? Em que dimensão é que esta peregrinação contribuiu para a reflexão sobre os erros passados e presentes da Igreja Católica? Que oportunidades de reflexão é que este evento gerou sobre a forma como os agnósticos e os ateus críticos das religiões (como eu) podem interpretar e compreender este fenómeno histórico que é a Igreja Católica? Será que a elevada participação da juventude nesta peregrinação católica significa que a Cristandade tem um grande futuro? Ou será que um dia estes jovens despertarão da ilusão e se aperceberão que não há deus que nos valha e que a concretização de um futuro próspero e feliz depende do ser humano? Quantos destes jovens acreditam se quer em deus e na vida celeste (ou infernal) depois da vida terrena? Tudo isto são interrogações muito válidas. Interrogações que estão ausentes do repertório de perguntas e pedidos de esclarecimento que estes dias têm assistido a comunicação social.


Para os Media têm sido dias luminosos e esplendorosos. Foram dias de pureza e sensatez para a maioria dos jornalistas de televisão que têm acompanhado a JMJ. Fossem jovens activistas marxistas ou ambientalistas a protagonizar certos comportamentos e atitudes primários e desordeiros, estava a comunicação social em bloco a chamar a atenção das massas para a decadência e a falta de civismo da juventude radical. Aliás, nem precisariam de ser jovens politizados. Durante a época da pandemia e do confinamento, qualquer foco de propagação do vírus ou qualquer incidente de desordem era logo interpretado pela classe jornalística como mais um episódio de ignóbil e irresponsável anarquia juvenil. Mas nestes dias não tem sido assim. Como se trata de juventude de igreja está tudo bem. É tudo boa gente que nem se quer parte um prato.


Bem sei que qualquer pessoa razoável poderá classificar este texto como excessivo, agreste, negativista, arrogante, ácido nas palavras e injusto nas considerações. Estaria eu disposto a diminuir o volume destes elementos não fossem a opinião pública e as posições da imprensa nacional tão monolíticas. Quase que nos temos de contentar à força com a JMJ e a participação financeira do Estado no festival, não podendo haver dissidência perante uma invisível linha oficial conjunta da República e da Santa Sé. Como se explica que da noite para o dia o histórico e actual fenómeno criminoso de abuso sexual de crianças por parte de clérigos da Igreja Católica tenha sido empurrado para o desterro da amnésia colectiva? E ai de quem respingue e faça disso assunto público enquanto o Papa e demais altas sumidades se encontram em território nacional! Como vimos acontecer, quem isso tentar é tratado como um dissidente e é mandado calar. E no meio de tanta conversa sobre universalidade, multiculturalismo, inclusão, amor, a Igreja Católica continua como sendo uma força reaccionária que se propõe a condicionar a liberdade social e a atordoar o ímpeto da Luta de Classes. Os exemplos são muitos: a Igreja está contra a interrupção voluntária da gravidez; está contra a eutanásia; está contra a emancipação feminina dentro (e fora, por vezes) da Igreja; tem múltiplos discursos em simultâneo relativamente à homossoxualidade, sendo que se por um lado afirma querer acolher e incluir por outro lado mantém a narrativa do pecado e do vício decadente, que tudo o que faz é criar estigmas e situações de discriminação, e recusando reconher teologicamente casamentos entre pessoas do mesmo sexo; a Igreja ainda hoje olha com elevada desconfiança para a luta sindical e ao fortalecimento da Segurança Social por parte do Estado, em oposição à caridade e à esmola da Igreja. Se houve entidade na História de Portugal que mais semeou esta eterna paciência resignada e passiva do povo português, a Igreja Católica está na primeira linha, e sempre que essa paciência se converteu em revolta e acção revolucionária lá estava a Igreja para abafar a transformação e o progresso. Foi a Igreja que esteve ao lado de Castela durante a crise dinástica de 1383-85, em oposição às massas populares e ao Mestre de Avis. Foi a Igreja que apoiou a tomada do trono português pelo Rei de Espanha Filipe II em 1581. Foi a Igreja que se colocou no caminho do Marquês de Pombal quando este se apresentou para modernizar Portugal no terceiro quartel do Século XVIII. Foi a Igreja que se colocou na vanguarda do terror miguelista que deu origem a uma sangrenta Guerra Civil (1832-34), opondo-se portanto ao regime constitucional e à construção de uma nação livre. Foi a Igreja que se apresentou para derrubar a I República (1910-26) e foi a Igreja que prestou apoio social e político de primeira importância à ditadura criada pelos militares e Oliveira Salazar. Só com o Concílio do Vaticano II dos anos 60 é que a Igreja Católica começou de facto a mudar muitas das suas mentalidades e modos de operação. Foi só nesse concílio ecuménico que a Igreja Católica levantou o anátema contra o povo judaico, que até então se encontrava sob acusação colectiva de deicídio. Mais vale tarde do que nunca…  


É por isto e muito mais que eu não confio na Igreja Católica e olho com grande desconfiança para a JMJ, especialmente se tivermos em conta as circunstâncias em que esta jornada sucede. Nada tenho contra o mais comum dos jovens que tenha optado por participar nesta peregrinação. Como já escrevi e afirmei tantas vezes, nada tenho contra os católicos praticantes: a minha mãe, a minha avó materna e a minha tia Ana, pessoas que eu amo com todo o meu coração, são mulheres católicas, muito ligadas à Igreja, sem por isso serem, todavia, mulheres com consciência de classe. Foram várias as pessoas na minha vida que sendo católicas são pessoas muito importantes. Na minha demanda não é contra os religiosos que me apresento mas sim contra a estrutura e altas hierarquias que passam sentenças sobre aquilo que é correcto e aquilo que é errado, e passam-nas não com base em filosofia ética mas sim tendo por base pústulas de épocas obscurantistas quando ainda não conseguíamos definir o relâmpago. Apresento-me contra a mentalidade e a ideologia, e não contra as pessoas, com excepção daquelas que activamente propagam o ódio e a discriminação. E o que dizer de deus? O que dizer da Santíssima Trindade, que é o divino em três planos de existência: o pai, o filho e o espírito santo? O que dizer a esta juventude que foi convencida que procurando o divino encontrará a paz interior e a força para tornar este mundo um lugar melhor? É começar por dizer que deus não existe nem nunca existiu. É dizer que o transcendente e o numinoso são ficções (de grande peso cultural, sublinho) criadas há milénios para arregimentar as massas ingovernáveis. Basta dizer-lhes que quando se juntam e rezam numa missa nada os ouve porque nada há para além disto que temos enquanto estamos com os olhos abertos.



18 de Termidor CCXXXI

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Um regulamento a favor do fogo

Aproxima-se o Verão, e com o Verão virá uma das endémicas pragas que assolam Portugal: o fenómeno incendiário [para mais referências minhas sobre esta questão, ver o texto Verão em chamas, publicado neste blog no ano anterior]. É na sequência deste facto que eu partilho o seguinte texto, com o mesmo título desta minha publicação. Um regulamento a favor do fogo foi um texto publicado anonimamente por José Saramago, na edição do Diário de Lisboa de 12 de Junho de 1972, no qual está patente uma preocupação grave que já na época havia com os incêndios portugueses. A razão principal de eu partilhar este texto é para chamar a atenção para um facto no qual eu insisto sempre que, por qualquer motivo, se discute a questão dos incêndios: não é só de hoje ou de há 10 anos que a governação e a sociedade gerem de forma errónea este conflito entre o fogo e os humanos, em Portugal, e não é só de hoje ou de há 10 anos que os incêndios de Verão, em Portugal, levam o território a eito, destruindo, queimando, matando. Já nos [para alguns] saudosos tempos da Ditadura os incêndios eram uma calamidade tão devastadora como é hoje, havendo, contudo, algumas diferenças de um tempo para outro. Naquela época, por exemplo, o regime não estava interessado em fazer registos, levantar dados e elaborar estatísticas, e tampouco estava para se maçar com canalização de fundos para apoiar logística e tecnologicamente as corporações de bombeiros. Não havendo recolha de dados e elaboração de estatísticas, o desenvolvimento de estudos era impossível, tornando, portanto, impossível uma melhor compreensão sobre a natureza deste fenómeno e como o combater, e não havendo apoios - à semelhança de hoje, provavelmente - os bombeiros estavam mais ou menos entregues à sua sorte. Também não havia o menor esforço para coordenar a actividade dos bombeiros com as demais instâncias da sociedade portuguesa cuja tarefa também passaria pela prevenção e combate dos incêndios. É com o objectivo de relembrar o fenómeno que se aproxima com o passar dos dias, e é com o objectivo de recordar que este triste fenómeno já é muito antigo no tempo histórico [não sendo, portanto, uma solitária culpa do actual (des)Governo], que eu partilho este texto de uma lucidez brilhante, como é costume em Saramago.


Quanto à natureza do texto em si, eu retirei-o directamente do livro Os apontamentos [Saramago, José (2014). Os apontamentos (5ª Ed.). Lisboa: Porto Editora, p. 54-55.] - uma compilação de artigos, sendo que a primeira parte diz respeito aos artigos que foram publicados anonimamente no Diário de Lisboa entre 1972 e 1973, e que só depois se soube que o autor desses textos fora José Saramago, e a segunda parte concerne os artigos que José Saramago assinou no Diário de Notícias durante o PREC, em 1975, na qualidade de sub-director do jornal. Em nome da defesa da identidade da Língua Portuguesa, tomei a liberdade de aqui citar o texto consoante a ortografia do Português de lei, isto é, a anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 e que desde há alguns anos é o que vigora oficialmente. O abuso de alteração da ortografia do texto editado pela Porto Editora, está, todavia, em consonância com a ortografia que José Saramago usava em 1972, à semelhança de todo o povo português alfabetizado, e que o escritor sempre haveria de usar até à sua morte no ano 2010, de acordo com o Calendário Gregoriano. Segue então o magistral texto que retrata uma realidade tão ridícula e tão aflitiva:


"Com a chegada do Verão, destes grandes calores que tornaram as matas e os pinhais inflamáveis como estopa, é certo e sabido que começam por esse país fora os incêndios. Devoram as encostas das serras, deixam-nas negras, despidas, terras de desolação onde, por muitos anos, se erguerão apenas os troncos queimados. Neste tempo se levantam inúmeras vozes a pedir protecção para o nosso património florestal, já de si tão escasso. A vulnerabilidade das nossas matas, se bem pensamos nela, é, a toda a hora, um convite à ruína total. Depois o tempo refresca, vem a chuva, adia-se a catástrofe para o ano.


Na falta de um sistema de defesa eficiente, conta-se sempre com a dedicação e a ousadia das populações que, mal se ouve o sinal de fogo, correm montes e vales, gritando, ofegando, para irem atacar o incêndio, sem curarem de saber a quem pertencem as árvores que as chamas vão furiosamente destruindo. Acudir ao fogo é obrigação cívica a que ninguém foge, e não têm sido poucos os actos de grande coragem praticados nessas ocasiões, com total desinteresse, pois ninguém pensa em apresentar depois a factura dos serviços prestados. Também não há veneras nem condecorações: estes episódios passam-se em serranias anónimas, longe das vistas da grande publicidade.


Já os incêndios começaram a sua tarefa e, lá para diante, não se passará um dia sem que o inferno lavre num ponto qualquer do País. E tudo será como de costume, e repetir-se-ão casos como este de que hoje falamos, acontecido numa povoação chamada Bogas de Baixo, próxima do Fundão. Ali, os sinos da igreja chamaram os habitantes ao combate. E foram todos, os novos e os velhos, as mulheres e as crianças. Fazia vento, e, como sempre acontece nessas circunstâncias, o fogo saltava de árvore em árvore, propagando-se pelas ramadas superiores, inutilizando os trabalhos no chão. Diante da ameaça cada vez maior, telefonou-se para as povoações em redor e mais pessoas acorreram ao fogo, animando-se umas às outras, usando uma experiência já antiga, vinda de gerações. Por fim conseguiu-se travar o alastramento do incêndio. O desastre não foi total.


E os bombeiros? Após algumas dificuldades de comunicação, e graças à intervenção de terceiras pessoas, foi possível chamar os da vila próxima. Também se recorreu aos serviços dos bombeiros de outra vila, a de Oleiros, mas o comandante destes disse que «não podia mandar deslocar os seus homens para concelho diferente, sem que o comandante dos bombeiros do concelho onde havia o sinistro os requisitasse». Segundo a fonte onde colhemos estas informações, o comandante de Oleiros mostrou-se «muito compreensivo», chegando a oferecer-se para um entendimento com o Fundão. Ficaram os combatentes voluntários e paisanos à espera do que viesse, mas nada se conseguiu. Enquanto os pinheiros de Bogas de Cima ardiam, enquanto as gentes da terra se afadigavam a lutar por bens que só a poucos pertenciam, um artigo de regulamento impedia o auxílio que deveria poder ser dado por uma corporação de bombeiros, mas que não foi porque o concelho era outro…


Estranhos casos se passam em Portugal! Muito mais estranhos ainda quando nos lembramos de que, durante a recente visita do presidente do Conselho a Castelo Branco, um dos mais brilhantes números dos festejos foi um longuíssimo desfile de bombeiros, com dezenas de viaturas. Vindos de muitos quilómetros e concelhos em redor… E não havia fogo."



Lues, 16 de Prairial CCXXXI