segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Autárquicas 2021 Revistas

Na perspectiva de um jovem socialista do Século XXI, são estes os prós e contras dos resultados eleitorais das Autárquicas 2021. E como gosto de deixar o melhor para depois, primeiro os contras.


Contras:

- A CDU não definha somente no plano parlamentar, pois também a nível autárquico a derrocada é uma auto-evidência.

  • A nível nacional, com mais 400 mil votos, perdeu 23 mandatos autárquicos (em vereadores e autarcas) relativamente a 2017, tendo agora apenas 148. Em deputados municipais a CDU perdeu mais de uma centena.

  • No Município de Évora, sede do Alentejo, apesar de Carlos Pinto de Sá ter mantido a presidência da Câmara, a CDU perdeu a maioria absoluta no executivo camarário tendo agora o mesmo número de vereadores que o PS: 2.

  • No Município de Portalegre, a CDU ficou sem o vereador que tinha no executivo camarário, e na Assembleia Municipal, tendo eleito 4 deputados em 2017, agora o Professor Amândio Valente ficará politicamente sozinho, sendo o único deputado eleito em 2021.

  • No executivo camarário do Município de Lisboa e na sua Assembleia Municipal, a CDU, apesar de não ter perdido mandatos, também não os conseguiu aumentar.

  • O mesmo que afirmei para o Município de Lisboa serve para o Município do Porto.


- O Bloco de Esquerda continua incapaz de aumentar a sua expressão autárquica nacional, condição sine qua non para que o BE se consiga cimentar em todos os territórios portugueses, criar bases de apoio fiéis nas zonas rurais e maximizar a sua capacidade política para impulsionar transformações socioeconómicas fundamentais para a República Portuguesa.

  • Nos Municípios de Lisboa e Porto, o número de vereadores e deputados municipais eleitos manteve-se o mesmo relativamente a 2017 - 1 vereador nas Câmaras de Lisboa (vereadora neste caso) e Porto, 3 deputados no Porto e 4 deputados em Lisboa.

  • O BE perdeu 8 vereadores e 32 deputados municipais a nível nacional. Agora, os únicos vereadores eleitos estão nos Concelhos de Lisboa e Porto, contando apenas com 93 deputados municipais em todo o território.

  • No Município de Portalegre, onde o BE tinha conseguido pouco mais de 100 votos para Câmara e Assembleia, em 2017, este ano o número desceu para metade.


- O Partido de André Ventura - o egomaníaco homem multiplicado por todos os cartazes de campanha do seu gangue - conseguiu eleger 19 vereadores e 172 deputados municipais em toda a República, tendo conquistado mais de 200 mil votos. Ainda que não tenha havido nenhuma Câmara ou Junta de Freguesia ganha, estas já são circunstâncias de que o Chega precisava para aumentar a sua influência política e para fortalecer as bases de apoio que, desgraçadamente para nós, já tem. Eu não exagero quando digo que cada mandato autárquico conseguido por este partido fascizante é um tiro disparado contra a República e a Democracia.


Prós:

- Nem o PS nem o PSD conseguiram fazer um raide de domínio no território nacional. Nenhum dos dois partidos do status quo conseguiu alcançar uma supremacia indiscutível na vida autárquica da República Portuguesa e isso significa que outros partidos poderão participar em soluções de governação local. 


- No Município de Portalegre, Adelaide Teixeira foi destronada e isso já é alguma coisa, ainda que, vendo a coisa de outra perspectiva, a CLIP tem manobra para participar na governação autárquica em acordo camarário com os vitoriosos do PSD.


- O Chega não conquistou uma única Câmara ou Junta de Freguesia e André Ventura passou pela humilhação eleitoral de ser derrotado em Moura na sua candidatura à presidência da Assembleia Municipal onde nem conseguiu ser eleito deputado.


- O CDS não está apenas em vias de desaparição de relevância política parlamentar, também a cena autárquica está cada vez mais fúnebre.

  • Em candidaturas solitárias o CDS baixou de 41 para 30 mandatos autárquicos.

  • Quanto às Assembleias Municipais, o CDS perdeu 67 deputados.


Verdades incontornáveis:

- O domínio bipartidário do PS e do PSD mantém-se e perpetua-se. É esta circunstância um dos primeiros aspectos que alguma vez consegui identificar na política nacional, ainda tinha eu 14 anos - o facto de ao longo de mais de quatro décadas a massa dos eleitores insistir com os mesmos dois partidos que desde 1976 têm governado Portugal, quer estejamos a falar do Governo da República ou do poder autárquico. É uma vicissitude quase hipnótica. Os eleitores afirmam votar nas pessoas e não nos partidos quando se trata de Eleições Autárquicas, todavia, não é isso que vejo. O que vejo é mais do mesmo, e uma insistência descontrolada em votarem no Bloco Central. E quando não fazem isso fazem ainda pior: ou não votam ou então votam no retrocesso histórico.


- A mudança de mãos da Câmara Municipal de Lisboa não vai aquecer ou arrefecer nada. Sai Medina, do PS, entre o Moedas, do PSD, e cumpre-se mais uma vez o ciclo vicioso tão querido da Capital da Nação.


- O Município de Portalegre não será salvo por esta via.


- Se o Partido Comunista não admitir que algo grave se passa com as suas perspectivas futuras de existência política, aquilo que muita gente como eu teme irá acontecer - o fim. Mude-se o Comité Central! Acabe-se com o Centralismo Democrático! Que se regresse às origens clássicas do Marxismo! Soltem a veia revolucionária e vão para cima do Chega como se não houvesse amanhã, como se tratasse do próprio Salazar!


- Se o Bloco de Esquerda não voltar a ser um partido plenamente radical, se não abandonar algumas tendências americanizantes no núcleo do partido, e não vier ao encontro das pessoas, nas cidades e nas vilas, em busca de sangue novo, então não mais haverá crescimento no movimento, e também no BE começará o definhamento.


- Será insensato pegar nos resultados eleitorais deste sufrágio e daí fazer uma previsão do que acontecerá nas Eleições Legislativas de 2023. O futuro poderá ser melhor ou pior que os resultados das Eleições Autárquicas 2021.


- A taxa de abstenção, ainda que não tenha superado os 50% de eleitores, é, todavia, preocupante para a saúde da República. Um dos desafios maiores dos nossos dias é chamar Portugal para a intervenção política. A classe política falha consecutiva e tragicamente neste domínio.



Lues, 5 de Vendemiário CCXXX


quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Manifesto para um novo calendário

Porque utilizamos o actual sistema temporal?


O Calendário Gregoriano, instituído na cristandade católica em 1582 pelo Papa Gregório XIII, é o cronograma do tempo que assiste a nossa sociedade há mais de quatro séculos. À semelhança de Espanha, dos estados italianos de então, do Reino Unido de Polónia-Lituânia e do Reino de França, o Reino de Portugal (que nesta época estava anexado à coroa espanhola de Filipe II) adoptou o Calendário Gregoriano logo no ano em que foi decretado canonicamente pelo Sumo Pontífice mediante a bula papal Inter Gravissimas. Desde então que contamos os dias, os meses e os anos exactamente da forma como os contamos presentemente. Todavia, os calendários dominantes anteriores, no passado histórico, já tinham deixado o legado cultural e o sistema matemático/astronómico que iria ditar a estrutura do Calendário Gregoriano.


Para compreendermos o presente calendário - o mais utilizado em todo o mundo - precisamos de compreender os dois calendários que foram usados em Roma na era da Antiguidade Clássica. O Calendário Romano tinha os anos divididos em 10 meses, sendo que havia um ciclo quadrienal de dois anos comuns e dois anos bissextos: 1º ano do ciclo, ano comum, com 355 dias; 2º ano do ciclo, ano bissexto, com 377 dias; 3º ano do ciclo, ano comum; 4º ano do ciclo, ano bissexto, com 378 dias; e assim se repetia o ciclo. Os nomes dos actuais meses Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro significam, respectivamente, sétimo mês, oitavo mês, nono mês e décimo mês - eram estes os quatro últimos meses do Calendário Romano. Assim como o número de dias por ano era irregular, também o número de dias por mês era irregular, balançando entre os 28 e os 31 dias - outra fórmula que iria definir o actual calendário. Quanto à contagem dos anos, esses eram feitos deste a fundação de Roma, de acordo com a tradição. Atendendo a isto, se hoje estivesse esse calendário em vigor, sendo a contagem dos anos desde o nascimento de Roma, estaríamos em 2774. 


No ano 46 a.C (709, de acordo com o Calendário Romano que então vigorava), o Dictator da República Romana, Júlio César, com auxílio de matemáticos e astrónomos helenos, propôs um novo calendário. Este calendário iria entrar em vigor em todos os territórios e províncias imperiais de Roma, após a consolidação da era imperial com a ascensão de Octávio César Augustus. Este passou a ser denominado como Calendário Juliano, em homenagem ao precursor do Império Romano, Júlio César, e foi uma grande reforma no sistema da contagem do tempo. Os meses por ano passaram a ser 12, com um ciclo de 3 anos comuns de 365 dias e um ano bissexto de 366 dias. Também os meses Janeiro e Fevereiro foram inventados - em homenagem ao deus Janus e ao Festival da Purificação, respectivamente -, sendo que os quatro últimos meses do ano mantiveram o seu nome (e assim se mantêm ainda hoje, como já referi) e os sétimo e oitavo meses passaram a ser denominados em homenagem a Júlio César e ao Imperador de Roma (que teria sempre o título de Augustus, significando Venerável), daí hoje se chamarem Julho (de Júlio/Iulius o nome latim) e Agosto (de Augustus). O mesmo se repete em todas as demais línguas de origem latina ou germânica/nórdica. Quanto à contagem dos anos, essa manter-se-ia intacta por mais de mil anos volvidos, sendo o tradicional nascimento da Cidade de Roma o evento fundacional da identidade romana. 


No Século IV d.C, durante o mandato imperial do Imperador Constantino, foram promulgados os Éditos de Milão e da Tolerância, e a perseguição imperial ao Cristianismo foi terminada, sendo ainda na época uma religião minoritária. No seu leito de morte, inclusive, o Imperador Constantino terá sido baptizado, fazendo dele o primeiro imperador romano cristão. Com isto e com a estabilização teológica da fé cristã após o Concílio de Niceia I, convocado por Constantino, o Cristianismo encontrou solo seguro para se solidificar e expandir enquanto cultura e religião, indo ao longo prazo, também, alterar o sistema de contagem do tempo. No final deste século, o Imperador Teodósio, o mesmo que dividiu a governação do Império Romano em Ocidente e Oriente, decretou o Édito de Tessalônica instituindo o Cristianismo como a religião oficial do Império Romano, condenando à violência persecutória todos os demais credos e religiões (incluindo a mitologia romana) e todas as vertentes cristãs que se desviassem das convenções estipuladas pelo Concílio de Niceia I. Estava então fundada a Igreja Católica Apostólica e Romana.  


Eventualmente, o sistema de contagem do tempo não ficaria intacto e o Calendário Juliano conheceria o seu relativo ocaso, ainda que demorado. Durante a Alta Idade Média começaram a fazer-se os primeiros projectos para reformar o calendário, para que os anos deixassem de ser contados desde a fundação de Roma e sim desde o nascimento de Jesus Cristo, de acordo com a fé cristã. De acordo com a convenção, Cristo nasceu em 754 AUC (anno urbis conditae, do Calendário Romano), e ficou assim convencionado que esse passaria a ser o ano 1 AD (anno domini), ou d.C, como é mais frequente aparecer na língua portuguesa. Todos os anos antes de 1 d.C, passariam a ser contados em reverso, não existindo ano 0, obviamente. O último estado católico a adoptar este sistema de contagem dos anos foi, precisamente, o Reino de Portugal em 1422 d.C. 


Quando o Calendário Gregoriano foi por fim instituído, 160 anos após Portugal ter adoptado o sistema a.C e d.C, pouco houve a alterar porque o Calendário Juliano já havia perdido maior parte da sua lógica cultural, especialmente com a reforma da contagem dos anos. Basicamente, a reforma gregoriana resumiu-se ao ajuste dos dias da Páscoa, ou qualquer coisa do género (confesso não ter ido ao fundo desta questão em particular). Todavia, o Calendário Gregoriano só foi adoptado pelos estados cristãos católicos e suas possessões coloniais. Os estados cristãos protestantes e os cristãos ortodoxos mantiveram o Calendário Juliano (com as reformas já referidas) durante muitos mais anos, e durante muitos mais anos estiveram 13 dias 'atrasados' relativamente à Europa católica. Em 1752 o Reino Unido adoptou o Calendário Gregoriano e em 1918 foi a vez da Rússia, e demais estados protestantes ou ortodoxos foram aderindo à reforma entre os Séculos XVI e XX. O último estado ortodoxo a ter aderido à reforma gregoriana foi a Hélade, em 1923. Hoje, para assuntos civis, apenas cinco estados não adoptaram o Calendário Gregoriano: o Irão e o Afeganistão, que seguem o Calendário Persa; a Etiópia e a Eritreia, que seguem o Calendário Etiope; e o Nepal, que segue o Calendário Hindu. 


Uma curiosidade relativamente aos dias da semana é que Portugal, e demais estados lusófonos, são os únicos que denominam os dias da semana da forma 'portuguesa' como a conhecemos. Tal deveu-se a uma alteração arbitrária por um arcebispo qualquer da época (Século VI), do Reino Visigodo de então, em que os dias da semana deixaram de ser Lues, Martes, Mércores, Joves e Vernes - um legado da cultura romana predominante nas nações das línguas românicas - e, a título de cristianização, alterou os nomes para Segunda-feira, Terça-feira, et cetera. Sábado e Domingo são os únicos dois dias comuns a todas as nações de idioma românico.


Tendo escrito tudo isto, e tendo esmiuçado sinteticamente o fio condutor do processo histórico que nos levou a esta época, em que o sistema da contagem temporal pertence ao Calendário Gregoriano e à simbologia e mitologia da fé cristã, pergunto eu agora se não seria melhor baralhar as cartas e dar de novo. A esmagadora maioria da população que tem de gramar com o Calendário Gregoriano no aparelho civil não é cristã. Muitos de nós, inclusive, somos agnósticos, ateus ou antiteístas. O que eu proponho, portanto, à semelhança do que muitos já propuseram no passado, é a laicização do calendário. Uma laicização que não só serviria o primado da razão, mas também uma laicização que serviria todas as nações em cujas sociedades a entediante cristianização do tempo foi imposta. E qual seria o instrumento de laicização que serviria esta reforma da contagem temporal?


Calendário Republicano Francês


É costume este calendário ser designado como "Calendário Revolucionário", contudo, essa é uma designação errônea porque o evento histórico fundacional do calendário não é a Revolução Francesa (que começa em 1789) mas sim a implantação da República Francesa (1792). Sendo verdade, evidentemente, que o Calendário Republicano celebra os valores e as conquistas revolucionárias, o seu principal objecto de legitimação e orientação é a República.


O Calendário Republicano Francês teve como inspiração o Almanaque das Pessoas Honestas publicado pelo iluminista radical e ateu Sylvain Maréchal em 1788. O Calendário Republicano foi concebido por uma comissão dirigida por Charles-Gilbert Romme (político e matemático), já durante o período de governação jacobina, em 1793, e nesse mesmo ano foi apresentado à Convenção Nacional, da qual Maximilien de Robespierre era membro, e adoptado como o calendário oficial da República Francesa no dia 5 de Outubro. Robespierre, que nesta altura já se tornava o mais proeminente membro do Comité de Salvação Pública, foi um grande adepto deste calendário. Eram três as principais razões para a República Francesa ter adoptado o Calendário Republicano e ter abandonado o Calendário Gregoriano: laicização da sociedade republicana e quebra com a influência cristã na cultura revolucionária francesa; quebra com o passado aristocrático e com o Antigo Regime protagonizado pela Monarquia Absoluta; instituição de um calendário mais estável, inteligível e que aderisse à decimalização do sistema de contagem do tempo, e por inerência ao sistema métrico, pretendidos pelos revolucionários franceses. Substituindo as imagens e simbologias religiosas e monárquicas que preenchem o Calendário Gregoriano, os criadores deste calendário tiveram a natureza, a razão e o republicanismo como principais fontes de inspiração e criação de uma nova simbologia. A suplantação do Calendário Gregoriano pelo Republicano foi, portanto, uma atitude simbólica e de transformação cultural, mas também uma medida que visava objectivos práticos.


Estrutura do Calendário Republicano


Assim como o Juliano e o Gregoriano, o Calendário Republicano é constituído por 12 meses, todavia, ao contrário desses calendários, este tem um número igual de dias para cada mês: 30 dias. Também à semelhança desses dois calendários antigos, o Republicano tem 365 dias por cada ano comum, e 366 dias em ano bissexto - ciclo contínuo de três anos comuns e um ano bissexto, também. Como é possível então haver 365/366 dias por ano quando há apenas 30 dias por cada 12 meses? Porque no final de cada ano há 5 dias complementares, na eventualidade de ser ano comum, ou 6 dias complementares se for ano bissexto. 


Abordando primeiro os dias, estes estão agrupados em três semanas, ou décades, em cada mês. Cada uma dessas semanas tem 10 dias, sendo o nome dos dias da décade: Primidi, Duodi, Tridi, Quartidi, Quintidi, Sextidi, Septidi, Octidi, Nonidi e Décadi. Estes são meramente os nomes dos dias da semana, da mesma forma como nós chamamos Segunda-feira e Terça-feira aos dias da semana. No panorama geral de dias do mês, os dias continuam a ser designados pelo seu próprio número, tal como acontece no Calendário Gregoriano. Quanto aos dias complementares, estas são datas celebratórias da República e do ideário revolucionário. O primeiro dia complementar é o Dia da Virtude, o segundo é o Dia do Talento, o terceiro é o Dia do Trabalho, o quarto é o Dia das Convicções, o quinto é o Dia das Recompensas. Em caso de ano bissexto, o sexto dia complementar é o Dia da Revolução. Adaptando ao ano 2021 do Calendário Gregoriano (ano comum) os dias complementares ocorreram entre 18 de Setembro e 22 de Setembro. 


Quanto aos 12 meses do Calendário Republicano, 30 dias para cada um, estes foram concebidos em harmonia com as quatro estações do ano e tendo a natureza própria de cada mês como motivo simbólico e identitário, em vez de referências religiosas. É nos nomes dos meses, e suas simbologias, que está patente o ideário romântico e naturalista do Calendário Repúblicano - afinal, a Revolução Francesa foi também um dos eventos fundacionais do Romantismo. Neste calendário, o ano começa com o Outono, e os seus três meses são Vendemiário (mês das vindimas), Brumário (mês da névoa) e Frimário (mês frio). Segue-se o Inverno e mais três meses, sendo eles Nivoso (mês da neve), Pluvioso (mês da chuva) e Ventoso (mês do vento). Na Primavera há mais três meses, sendo eles Germinal (mês da germinação), Floreal (mês das flores) e Prairial (mês dos prados). Chega por fim o Verão e os três últimos meses do ano - Messidor (mês das colheitas), Termidor (mês quente) e Frutidor (mês das frutas).


No que concerne ao sistema de contagem dos anos, como já referi anteriormente, a referência deste calendário é a implantação da República Francesa, sendo portanto no dia de fundação da República (21 de Setembro de 1792) que começa o ano 1. 


Decimalização do tempo


O aspecto menos bem concebido deste calendário (e que eu nunca pretenderia adoptar) foi a decimalização do tempo, no contexto do projecto de instituição do sistema métrico que hoje domina grande parte do mundo. Segundo este princípio, cada dia do ano no Calendário Republicano teria 10 horas, cada hora teria 100 minutos e cada minuto 100 segundos. Muitos foram os relógios produzidos para este fim, todavia, esta foi uma reforma demasiado abrupta, inconveniente e nada popular. Em 1795, ainda o Calendário Repúblicano estava em vigor, o relógio decimal foi abandonado pelo Directório de França e os dias voltaram a ter 24 horas na República Francesa, ainda que certas cidades tenham permanecido com o relógio decimal, por deliberada vontade e vá-se lá saber porquê, até 1801.


O que aconteceu ao Calendário Republicano?


O Calendário Republicano manteve-se em vigor em França, e em todos os territórios ocupados pela República Francesa, incluindo colónias imperiais e conquistas continentais, desde 5 de Outubro de 1793 (já estava a decorrer o ano 2) até 1805 (ano 14), quando o Imperador de França Napoleão Bonaparte, na senda da concordata com a Santa Sé, para restabelecer relações pacíficas com o Vaticano e a Igreja Católica, aboliu o Calendário Republicano e restabeleceu o Calendário Gregoriano. Só mais uma vez na História o Calendário Republicano foi o cronograma oficial de um estado/sociedade: durante os últimos 18 dias da Comuna de Paris (1871), o primeiro governo radicalmente socialista da História, até esta ter sido violentamente esmagada pelas tropas imperiais a mando de Adolphe Thiers. 


A pertinência do Calendário Republicano

A sociedade contemporânea é um produto da Revolução Francesa em todas as dimensões imagináveis: estruturas políticas e civis, ideologias, movimentos culturais, instrução pública, ideais de liberdade e igualdade, primazia do Estado de Direito, princípio da separação entre o Estado e a Igreja, liberdade de expressão, isocracia, isegoria, isonomia, direitos laborais, republicanismo, Democracia. A era da civilização humana que vivemos hoje começou com a Revolução Francesa e com a implantação da República em França. O mundo de outrora - de despotismo monárquico e religioso -, refreado pelos múltiplos fenómenos internacionais que se desenrolaram como impacto directo deste evento revolucionário, terminou quando estalou a Revolução em 1789 e quando a Monarquia Absoluta em França - o mais emblemático de todos os Absolutismos - foi estilhaçada. É por vivermos numa nova era que se exige um calendário novo, que seja universal e que possa abraçar toda a Humanidade num ideal comum de conquista da felicidade, da liberdade, da igualdade, da fraternidade, e um calendário que se possa libertar duma cultura religiosa, supersticiosa e arcaica e que possa fazer a contagem do seu tempo, não em função do nascimento de uma figura religiosa sobre a qual ninguém tem certezas sobre quando nasceu, nem se de facto alguma vez chegou a nascer, e sim fazer a contagem do seu tempo desde a fundação da República que rematou a era actual. Por convenção historiográfica mundial, a sociedade contemporânea começa com o Século XIX, e foi o historiador Eric Hobsbawm quem cunhou o termo Longo Século XIX, começando, do ponto de vista simbólico e societal (não do ponto de vista matemático), em 1789, com a Revolução Francesa.


Face àquilo que escrevi, há duas críticas sólidas que podem ser dirigidas à pertinência do Calendário Republicano. Muitos poderão afirmar que o nome dos meses foi atribuído consoante as dinâmicas climáticas do Hemisfério Norte, e que, portanto, a natureza climática do Hemisfério Sul está desarmonizada das nomenclaturas dos 12 meses do Calendário Republicano. A outra crítica é que os Estados Unidos da América foram na verdade a primeira República (fundada em 1776) a defender e a praticar os ideais iluministas que inspiraram a Revolução Francesa sendo que, desta forma, a República Francesa não pode ser constituída como o fenómeno fundacional da nossa era.


Quanto à primeira crítica - que, aliás, também podia ser colocada por estados situados em desertos, por exemplo -, devo dizer que o meu manifesto por um novo calendário visa, sobretudo, a Europa e não os demais sítios da Terra. Todavia, para todos os estados do Mundo, seria preferível estes seguirem um calendário concebido, em muita da sua estrutura, há muitos séculos e cheio de simbologia antiga, celebrando o nascimento de alguém que não é venerado pela maioria da população, ou seguirem um calendário que celebra a natureza e a libertação de toda a Humanidade?


Quanto à segunda crítica basta afirmar o seguinte: ainda que os EUA tenham precedido a República Francesa, é, acima de tudo, o Iluminismo Francês que dá vida aos princípios fundacionais da República dos Estados Unidos, e é, após isso, a República Francesa que vai maximalizar as potencialidades dos ideais intrínsecos à Constituição Americana de 1776.


Considerações últimas

A importância de um calendário para qualquer sociedade organizada é auto-evidente. É também auto-evidente a necessidade que esse calendário reflicta a era em que vigora e que respeite os valores e ideais da respectiva sociedade. O sistema a.C e d.C fazia sentido na Idade Média. Os nomes dos meses do presente calendário faziam sentido no tempo do Império Romano. No Século XXI carregamos o Calendário Gregoriano connosco por puro tributo ao conformismo endémico da Civilização, esquecendo que a reforma e o progresso, até no domínio cultural, são imprescindíveis para salvaguardar a saúde mental das sociedade.


Não pretendo manifestar a minha vontade de que o Calendário Republicano deva vigorar em todo o planeta. O meu manifesto é, sobretudo, dirigido à República Portuguesa e às demais nações europeias. Acho mirabolante como algo tão fundamental como o calendário não esteja definido pela lei constitucional, como tanta outra coisa. Na prática, o Calendário Gregoriano vigora nas nações segundo o princípio de Direito Consuetudinário sem que alguma vez as populações tenham sido consultadas a esse respeito.


Quero assegurar a todas as pessoas leitoras, à luz deste texto, que a minha sanidade mental está intacta e que me encontro em equilíbrio psicológico pleno. Não. Este texto não é autoria de quem tenha perdido o juízo e tampouco foi escrito por um alienígena. Apesar de tudo, as minhas críticas ao Calendário Gregoriano e a minha defesa do Calendário Republicano Francês têm toda a coerência e, fundamentalmente, são um eco daquilo que já se tem dito e escrito desde finais do Século XVIII. Tendo isto escrito, notifico aqui que, de hoje em diante, no final de cada publicação no Pensatório, constará a data corrente segundo o Calendário Republicano. Não se assustem, contudo. Sempre que me abordarem e perguntarem o dia, eu irei continuar a usar o calendário que toda a gente usa, e o mesmo servirá para tudo o mais. De outra forma, quase ninguém me ia entender. Todavia, entre mim e os meus botões, está em vigor o Calendário Republicano adaptado ao sistema de dias com 24 horas, com 7 dias por cada semana, tendo esses dias as suas nomenclaturas próprias dos idiomas românicos, e mantendo a minha inalienável celebração do Natal e de todos os feriados civis nacionais e internacionais.


Quero por fim celebrar aqui o ano novo que começa hoje. Feliz ano 230 para todas as pessoas cidadãs que se considerem sementes da revolução tricolor!


Ano 230 do Calendário Republicano:

Vendemiário - 23 de Setembro (2021) a 22 de Outubro

Brumário - 23 de Outubro a 21 de Novembro

Frimário - 22 de Novembro a 21 de Dezembro

Nivoso - 22 de Dezembro a 20 de Janeiro (2022)

Pluvioso - 21 de Janeiro a 19 de Fevereiro

Ventoso - 20 de Fevereiro a 21 de Março

Germinal - 22 de Março a 20 de Abril

Floreal - 21 de Abril a 20 de Maio

Prairial - 21 de Maio a 19 de Junho

Messidor - 20 de Junho a 19 de Julho

Termidor - 20 de Julho a 18 de Agosto

Frutidor - 19 de Agosto a 17 de Setembro

Dia da Virtude - 18 de Setembro

Dia do Talento - 19 de Setembro

Dia do Trabalho - 20 de Setembro

Dia das Convicções - 21 de Setembro

Dia das Recompensas - 22 de Setembro


Para consultar o Calendário Republicano em contraste com o Calendário Gregoriano, pode-se aceder a este sítio perfeitamente seguro (e com idioma português) na Internet: https://calendar.zoznam.sk/french_revolution-po.php


Joves, 1 de Vendemiário CCXXX (230 em numeração romana)

sábado, 18 de setembro de 2021

Portalegre Sufragista na Encruzilhada: O que veio, O que está, O que aí vem

Portalegre e Eu


Portalegre, a Cidade Branca, como em tempos, que pertencem a uma memória esmorecida, costumava ser designada esta cidade no Alto Alentejo. Cidade dos lanifícios, nos históricos tempos do fomento industrial da governação do Marquês de Pombal, numa época em que Portalegre era um verdadeiro centro de produção industrial em Portugal. Cidade das tapeçarias, que permanecem ainda como um símbolo portalegrense, deslumbrando forasteiros portugueses e internacionais de igual forma. Cidade da cortiça, numa época em que as históricas torres fumosas expeliam a sua névoa industrial, que era, olhando em retrospectiva, uma garantia de que, numa forma ou outra, a cidade continuava a trabalhar, e casa laboral de muitos trabalhadores e trabalhadoras que, não obstante as dificuldades que atravessaram naquela fábrica, também tiveram a iniciativa proletária de reivindicar os seus direitos e a sua primordial importância no coração produtivo daquela fábrica, e portanto de Portalegre. A Fábrica Robinson. Os tapetes e os lanifícios. A cortiça. A Serra de São Mamede cercando Portalegre, sendo, em simultâneo, fronteira de um microclima citadino e um descomunal obelisco guardião duma cidade que sobe e desce, sobe e desce, sobe e desce... "Em Portalegre, cidade/Do Alto Alentejo, cercada/De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros", como escreveu José Régio, o poeta, que durante 40 anos brindou Portalegre com a sua vida, em cuja obra literária muitos dos problemas endémicos de Portalegre foram desenhados. 


O que será que deu na cabeça do Rei João III - aquele que trouxe a Inquisição - para fazer de Portalegre cidade, para que esta, volvidos quase 500 anos, esteja condenada a perder esse estatuto, mais tarde ou mais cedo? Claro que o beato monarca nada tem que ver com o fado portalegrense e tampouco podia prever o futuro. Ele fez aquilo que lhe competia, mediante Carta de Foral, dado o crescente estatuto socioeconómico que Portalegre estava a conquistar no Século XVI. Mas terá de o futuro ser tão agreste, tão deprimente, tão humilhante e tão desgraçado? Será possível que nada possa ser feito para combater o deserto galopante que desce sobre Portalegre como as leves azas da Morte rapinam sobre uma alma moribunda?


Eu nasci, cresci e vivi em Portalegre. Gosto de pensar que ainda é aí que vivo, embora o meu coração esteja repartido entre o amor que tenho à Cidade do Alto Alentejo e ao amor que encontrei na Cidade Património da Humanidade, Évora... também Alentejo. Em Portalegre sempre despertei para o dia como em mais nenhum outro sítio. Se estivesse Sol, eu contemplaria um radiante céu azul, cercado pela paz do Bairro das Carvalhinhas, com os pálidos prédios do Atalaião a uma boa distância, à minha direita, e, lá ao longe, lá estavam as altas chaminés e depois o Monte da Penha como um sentinela pacífico e eterno, ali permanecendo desde tempos muito anteriores à fundação da nacionalidade e ali permanecerá muito depois de ter morrido a última pessoa portalegrense. Se não houvesse Sol, o despertar era igualmente (ou ainda mais) bonito. Muita pouca coisa, para mim, foi tão boa como despertar para o nevoeiro e um dia cinzento e frio em Portalegre, o Monte da Penha oculto, e sentir-me abraçado por toda aquela névoa e aquele clima pluvioso. Só a neve poderia fazer do Inverno portalegrense algo ainda melhor. Tenho saudades de Portalegre, e do nevoeiro, e de tempos pretéritos, e tenho saudades de despertar, ainda muito jovem, e ao longe, direcção sudoeste, ver ainda as históricas torres fumosas, de noite, expelirem um fumo avermelhado. Mas, sobretudo, é do nevoeiro de Portalegre, da calçada molhada, das ruas, das paredes brancas e da Praça da República de que tenho saudades. E estas não são saudades de quem não vai a Portalegre há uma eternidade, são saudades de quem vê o tapete ser-lhe puxado por baixo dos pés e se apercebe que, por uma razão ou outra, tudo isso irá acabar um dia.


O que foi... antes daquilo que aí vem


No dia 26 do presente mês, os munícipes portalegrenses são convocados às urnas para aquilo que é um dos mais importantes inventos da Revolução de Abril - falo, pois, das Eleições Autárquicas. Historicamente, o Município de Portalegre é dos concelhos mais conservadores e mais desviados para a Direita em todo o Alentejo, sendo que, por sua vez, dos três distritos que compõem a quase totalidade da região alentejana, mais um pedaço do Distrito de Setúbal (o litoral alentejano), o Distrito de Portalegre esteve envolvido em fenómenos políticos bem diferentes daquilo que se passava em Setúbal, Évora e Beja. Por exemplo, o Partido Comunista nunca ganhou a Câmara Municipal de Portalegre. 


Desde a entrada em vigor da Constituição da República (1976) até ao início dos anos 90, aquando da retirada política de Álvaro Cunhal, o Partido Comunista Português (PCP) foi o mais bem sucedido, em todas as eleições, em Setúbal, Évora e Beja. Nas Eleições Autárquicas de 1982, o PCP, liderando a coligação Aliança Povo Unido (APU, também integrada pelo PEV e pelo MDP), alcançou mais de 1 milhão de votos de cidadãos e cidadãs portugueses, projectando uma épica cortina vermelha sobre a 'metade' sul da República Portuguesa. Em números ainda mais reveladores, o PCP/APU elegeu 55 presidentes de câmara. Hoje o PCP tem menos de metade desse número. Dizia eu que nessas Eleições de 1982, no Distrito de Portalegre, onde o Partido Comunista nunca exerceu o seu domínio político como nos demais sítios do Alentejo, dos 15 concelhos que compõem o mosaico distrital, o Partido Comunista saiu vitorioso em apenas 4 desses concelhos - Elvas, Avis, Ponte de Sôr e Nisa -, sendo que os demais concelhos (incluindo aquele que está sediado na Cidade de Portalegre) deram vitória eleitoral ao PS, com excepção de Sousel que deu uma vitória absolutamente isolada, em todo o Alentejo, ao PSD. Aliás, a sul do Rio Tejo, no Continente, o PSD só ganhou em mais dois concelhos para além de Sousel, e foi, claro está, no Distrito de Faro. Era isto a realidade outrora, hoje já não é assim, porque, como escreveu Luís de Camões, quando se mudam os tempos também se mudam as vontades. Hoje, em Portalegre Distrito, há apenas duas Câmaras Municipais detidas pelo PCP, Avis e Monforte, com maiorias absolutas. Para além disso, nem o PS tem a força no distrito que antes tinha, sendo que hoje quatro autarquias estão sob domínio do PSD (as Câmaras de Marvão, Castelo de Vide, Fronteira e Arronches são laranjas). E o Município de Portalegre?


Mais um pouco do que já foi


O Município sediado na capital de distrito, Portalegre, tem-se demonstrado particularmente conservador e direitista num distrito alentejano já de si atípico, politicamente. Aliás, de outra forma não se poderia explicar o mórbido carinho com que o projecto político do partido de André Ventura e Pacheco de Amorim foi recebido na minha terra. O Concelho de Portalegre foi dos primeiros municípios alentejanos a dar vitória ao PSD em Eleições Autárquicas. Não a deu em 1976 (aí foi PS) mas deu vitória pela sua primeira vez no sufrágio autárquico seguinte, em 1979, quando a Aliança Democrática (que se deve dizer é um pouco mais do que apenas PSD, embora o CDS e o PPM estivessem domados) ganhou a Câmara Municipal de Portalegre, tendo ficado em segundo lugar a nível nacional. Também entre 1989 e 1997 o Município de Portalegre teve executivo camarário do PSD, sendo que entre 1982 e 1989, e outra vez entre 1997 e 2001 o executivo camarário foi do PS. Todavia, um facto muito revelador do Município de Portalegre no Século XXI é que, desde as Eleições Autárquicas de 2001, que o executivo camarário está nas mãos da Direita, primeiro sob a forma do PSD, com a Presidência de José Mata Cáceres, empresário agrícola de profissão e, mais proeminentemente, o cangalheiro do Jardim da Corredoura e da saúde financeira da Câmara, e depois com Adelaide Teixeira, professora de profissão, que assumiu a presidência em 2011 após Mata Cáceres se ter demitido alegando razões de natureza pessoal. Adelaide Teixeira, tendo sido Vice-Presidente de Mata Cáceres e, portanto, também responsável pela políticas implementadas pelo autarca, sucedeu à Presidência, para terminar o mandato. Nas Eleições Autárquicas de 2013 (as primeiras das quais tenho viva, politicamente consciente e clara memória), Adelaide Teixeira voltou a pegar nas rédeas da Câmara, mas desta vez eleita para o cargo e com outra cara política: a Candidatura Livre Independente por Portalegre (CLIP), o movimento local que tem 'guiado' os destinos do Município de Portalegre desde então... e agora apresenta-se novamente nas urnas, com Adelaide Teixeira procurando o seu último mandato permitido por lei no concelho. 


O que aí vem, finalmente


Pondo de lado macro-análises ao contexto nacional das Eleições Autárquicas, e ignorando em absoluto aquilo que se vai passar na Capital da Nação - da qual os Media gostam tanto de falar, ao ponto de julgarem, talvez, que Portugal é Lisboa, e à qual até atribuem circunstâncias locais especiais para o debate entre os candidatos  -, o foco do texto daqui em diante será, somente, o Município de Portalegre. 

Apresentam-se 6 diferentes candidaturas, cada uma constituída por três listas correspondentes aos três níveis do poder autárquico, 5 das quais são candidaturas oficiais de partidos e a outra sexta apresenta-se a título independente, e já sabemos qual é. 


Começando pela candidatura encabeçada pela Presidente da Câmara, a CLIP é, essencialmente, uma amálgama entre gente resignada do PSD, mais algumas influências políticas do Centro-Direita, e mais uns quantos cidadãos não filiados e qualquer partido que caem na ingenuidade de pensar que a CLIP é um projecto político verdadeiramente livre e despegado de qualquer ideologia. Nada no espaço civil ou político está despegado de ideologia. Também a CLIP não é de facto livre porque, finda a carreira política de Adelaide Teixeira em Portalegre, também a CLIP perde a sua razão de existência, que é servir de plataforma política à actual Presidente da Câmara desde há 8 anos, quando se zangou com o PSD.


É com pesar que devo afirmar, ao contrário do que afirmei quando há 4 anos fiz parte da lista da CDU para a Câmara Municipal, que Adelaide Teixeira reúne todas as condições para ser reeleita para um último e agoniante mandato. A mais importante condição, devo afirmar, faz parte da estrutura mental de muitos cidadãos e cidadãs portalegrenses, que tem que ver com o seu conservadorismo endémico e, por consequência, com a sua resistência intrínseca em alterar o estado de coisas. É uma circunstância preocupante porque é este tipo de mentalidades que faz com que as pessoas deixam de ser meramente conservadoras e, portanto, adeptas da estática, e passem a ser verdadeiras reaccionárias e adeptas do retrocesso histórico. 


Enfim, a CLIP bem que pode falar: da diminuição da dívida camarária; da chegada do Burger King, primeiro, e depois do McDonald's (que, tenho eu a certeza, terá significado maravilhas para muita gente); dos imaginários projectos de desenvolvimento da zona industrial; do fogo de artifício em tempos de festa; da rotunda, que era dos dadores de sangue, depois passou a ser a do pau da bandeira e, agora sim, já é uma rotunda com uma patriótica e republicana bandeira; a verdade é que, no Município de Portalegre, não há um dia melhor que o outro, mas antes cada dia é pior que o outro. Que se meta os olhos na Rua do Comércio. Que se olhe para a Cidade de Portalegre à noite, e veja-se se há mais algum sítio acordado que não seja a Praça da República. Pois claro! Também sei que tudo isto de que falo é um problema endémico maior, relacionado com a desertificação demográfica e económica do Interior português, e que os meses de restrições e isolamento aplicados, por razão da pandemia, também contribuiu para que mais estabelecimentos tenham fechado, mas, mesmo apesar de tudo isto, até em comparação com os demais locais interiores da República Portuguesa, Portalegre está um desastre, e, por este caminho, não mais será Portalegre Cidade mas sim Portalegre Vila. 


No debate que foi transmitido pela RTP, medorado por um indivíduo intratável, Adelaide Teixeira foi mais do mesmo, no que concerne a sua pessoa. A estratégia foi exactamente a mesma de há quatro anos: esconder-se atrás da sua suposta obra feita e dos demais constrangimentos que impediram que a obra tivesse uma dimensão mais grandiosa. Talvez sirva para convencer o eleitorado portalegrense, mas perante o debate, a professora Adelaide esteve, como sempre, no seu pior.


A Candidatura do PSD, encabeçada pela ex-Presidente da Câmara de Arronches, Fermelinda Carvalho, apresenta-se como uma candidatura de juventude e de experiência autárquica extraordinariamente competente. Fermelinda Carvalho tem como estratégia de campanha - e foi este mesmo o principal argumento que utilizou em debate (debate no qual até esteve a altura) - usar a sua obra de reabilitação do Município de Arronches (que não me consta que tenha ficado qualquer coisa de especial), bramindo-o, afirmando: "Viram o que fiz com o deserto de Arronches? Eis o que vou fazer com o deserto de Portalegre, qual varinha mágica!". A pessoa leitora poderia agora afirmar que estou a ser injusto com Fermelinda, troçando dela, que ela ainda não fez mal nenhum a Portalegre, sendo ela uma portalegrense, inclusive - o que não a constitui como uma paraquedista. Bem, que afirme ter experiência autárquica a lidar com zonas em progressiva desertificação, é um argumento válido, aquilo que me incomoda, todavia, é o facto de no debate, e na campanha em geral, não apresentar umas quantas soluções concretas, para além de falar de um pouco de agricultura. Em Portalegre, o PSD, para além de um eleitorado estável e fiél (mas que muito mal consegue esconder o desagrado com o actual Presidente do partido), tem também o trunfo de uma JSD bem presente, à semelhança do trunfo que o PS tem com a sua JS, mas aquilo que seja fortemente representado em termos numéricos não implica, necessariamente, que seja uma congregação de muitas ideias e mentes que compreendem as coisas, e com a JSD de Portalegre de facto não é o caso - é uma massa de juventude a seguir a batuca do seu jovem presidente distrital, e o jovem presidente, por sua vez, segue a batuta das hierarquias superiores do seu partido, até ao dia em que, porventura, ele já não seja apenas um presidente distrital duma jota...


A candidatura do CDS... ah, que disparate. O CDS não se apresenta às urnas por estas bandas. Talvez tenha que ver com a diminuição de fundos implementada pelo Presidente Chicão ou talvez seja apenas o definhamento a céu aberto do mui conservador e católico partido. Tanta boa gente que perdeu uma oportunidade para ter protagonismo. Enfim, o CDS declara o seu apoio político à candidatura do PSD.


A candidatura do PS, encabeçada pelo actual Presidente da Assembleia Municipal de Portalegre e Deputado na Assembleia da República, Luís Moreira Testa, é uma candidatura em várias perspectivas diferente da candidatura apresentada há quatro anos. Para começar, não é encabeçada por José Correia da Luz (que consta ter-se zangado com o PS e agora concorre à Câmara do Crato pelo Nós, Cidadãos), o que, atendendo às péssimas características pessoais que assistem Correia da Luz, poderá ser uma melhoria modesta. Por outro lado, o estilo de campanha do PS para estas Eleições adoptou uma vertente diferente que ainda não consegui descortinar por completo. Será talvez Pós-modernismo? Talvez seja Pós-pós-modernismo, ou simplesmente demagogia. A verdade é que não compreendi aqueles cartazes, espalhados um pouco por toda a cidade, onde se lê que Portalegre é capital da juventude, do desporto, da indústria, do turismo, e de muito mais. Ora, eu compreendo que todos nós adoraríamos que Portalegre fosse isso tudo, mas não é. Portanto, assumir como uma boa ideia fazer campanha afirmando que Portalegre é capital de tudo e mais alguma coisa é um exercício de demagogia que só poderá enganar quem anda a viver debaixo de alguma montanha ou pessoas que nunca ouviram falar de Portalegre. Ou será esta campanha uma transmissão daquilo que o PS promete fazer de Portalegre? Bem, é demagogia na mesma, obviamente. Atenção, não quero tirar o crédito estético da campanha, mas em conteúdo não se aproveita grande coisa.


Tal como o PSD, como já tinha referido, também o PS tem uma estrutura sólida e organizada da sua JS em Portalegre, o que em campanha e actividade política é um grande trunfo. A diferença entre o PSD e o PS em Portalegre, no que concerne as suas organizações juvenis, é que a do PS tem uma dinâmica bem mais forte e, a títulos individuais, nos seus quadros, mais valiosa. Inclusive, as listas do PS que concorrem nas Eleições Autárquicas deste ano em Portalegre estão bem compostas por elementos jovens que vieram da JS, muitos dos quais são meus conhecidos e por alguns dos quais tenho estima enquanto pessoas. Por todas estas razões afirmo que as listas do PS que se apresentam este ano às urnas são melhores que as de há quatro anos, tendo, creio eu, grandes hipóteses de conquistar a Câmara, ainda que a vitória da CLIP seja quase uma inevitabilidade devido a condicionantes já anteriormente expostas.


Quanto à pessoa do Luís Testa, tenho apreço político pelo Deputado? Não. Possui o rasgo, a destreza e o mecanismo de ideias para tirar Portalegre do buraco em que está metido? Também não, e votar numa força política que já foi executivo camarário várias vezes seria uma insensatez, ainda que haja alternativas piores, assim como creio haver alternativas melhores. Vamos a elas daqui a pouco.


A candidatura do partido denominado Chega seria um motivo de comédia não fosse a máquina política altamente perigosa que a acompanha e supervisiona. Como já deveria ser do conhecimento comum, o Chega é um partido assente num pilar fundamental para o ideário que o circunscreve: o Culto de Personalidade. O que se quer geralmente dum partido - ou de outra qualquer organização política - é que seja um meio democrático, fiel a uma corrente ideológica (que em si pode albergar várias tendências e vertentes), e com uma riqueza de opiniões internas que possam fazer progredir a base de ideias do partido, no qual a pluralidade de posições deve ser respeitada. Uma coisa que, quanto a mim, não se quer num partido é que haja um chefe pessoal em torno do qual se cria toda uma estrutura para lhe servir como plataforma. Acontece que o Chega corresponde à última frase e não corresponde à frase antes dessa. Então e quem enviou a autocracia do Chega para se fazer representar na Eleições Autárquicas no Município de Portalegre? Bem, é aqui que acaba a tragédia e começa a comédia.


Luís Lupi, campeão nacional de obstáculos a certa altura da sua vida, veterinário e professor de profissão, é um vazio de ideias. Teria sido doloroso ver aquele desempenho no debate da RTP não estivesse eu rejubilante por o Chega ter desencantado um vácuo de soluções e ideário para os representar. É que nem se quer coisas alarmantes o indivíduo foi capaz de proferir (ainda que muito provavelmente as pense), como aquelas que André Ventura vai proferindo uma vez por outra. Mas não nos deixemos enganar nem baixemos a guarda. Lupi poderá ser quase inofensivo, do ponto de vista pessoal, mas a máquina ideológica que está por detrás dele não é, e Lupi conseguir a Câmara (para além de este ser um deserto mental) significaria o Chega conseguir o executivo camarário. Todavia, ainda que uma vitória do Chega em Portalegre, a este ponto, ainda seja virtualmente impossível (embora haja bases criadas, não são suficientes), não podemos descartar a dantesca possibilidade de Luís Lupi ser eleito Vereador, e isso já é mau o suficiente.


Outra coisa que tenho constatado na campanha do Chega é a ausência de informação sobre os membros das listas do partido. Não os consigo encontrar em lado algum e o Chega, por uma qualquer razão curiosa, parece determinado para que a coisa permaneça assim. Só conhecemos o Luís Lupi e o seu vazio de propostas, ideias e soluções.


A candidatura do Bloco de Esquerda, encabeçada por aquele que foi o cabeça de lista a nível distrital do BE nas últimas Eleições Legislativas, António Ricardo, septagenário e reformado, é uma candidatura com poucas perspectivas, não por estar esvaziada de ideias, mas porque em Portalegre o Bloco não consegue reunir forças nem uma base fiel de eleitores. Nas últimas Eleições Autárquicas, no Município de Portalegre, o BE não conseguiu chegar a 1% dos votos para a Câmara Municipal, e não será em quatro anos que o panorama vai mudar radicalmente, ainda que António Ricardo não seja um mau candidato. Devo dizer, inclusive, que apreciei imenso o seu desempenho no debate da RTP (apesar do boicote subliminar por parte do intratável jornalista). Revelou compreender os problemas estruturais do Município e de Portalegre Cidade, em concreto, e revelou, como deveria ser, posições altamente críticas ante o centralismo lisboeta que devasta a República e desertifica o Interior de Portugal. Desejo à candidatura do BE toda a sorte e mais afirmo que ponderei muito em votar no Bloco no sufrágio destinado à Câmara Municipal, mas não o vou fazer, ainda.


Antes de avançar gostaria de partilhar com as pessoas leitoras um curto rumor que, alegadamente, terá soprado na Cidade do Alto Alentejo sobre a minha pessoa e os meus endeavours políticos. De acordo com este rumor - e acreditando que ele de facto correu -, que a mim chegou através de um ancestral colega do Ensino Secundário, eu estaria a movimentar-me nos quadros concelhios do BE em Portalegre, e que integraria uma das suas listas na candidatura para as Eleições no Município de Portalegre. Segundo consta, esse rumor terá corrido entre os quadros da CDU, em Portalegre. São perspectivas bizarras, devo confesar, uma vez que, tirando o Paulo Cardoso (cabeça de lista distrital pelo BE nas Legislativas de 2009), nunca conheci pessoalmente ninguém no meu concelho que esteja filiado no Bloco, tanto quanto sei claro. É, portanto, com máximas certezas de mim próprio, e em plena auto-consciência, que garanto não fazer parte da candidatura do BE em Portalegre ou em qualquer outra parte da República Portuguesa. Acho fantástico como florescem estes rumores sem o mínimo fundamento. As opções políticas para as Eleições Legislativas muitas vezes são distintas das Autárquicas. Claro que todo este parágrafo perde razão de ser no caso de, na realidade, tudo isto ser invenção e o rumor não existir, mas, dada a fonte, eu estou disposto a crer. Enfim.


A candidatura da Coligação Democrática Unitária (Partido Comunista & Verdes) é encabeçada por Hugo Capote, médico e cirurgião de profissão, no Hospital de Portalegre, e com grande preponderância a nível regional. Com algumas alterações e substituições, a candidatura da CDU é uma reedição da candidatura de 2017, sendo que dos três cabeças de lista, dois deles são os mesmos - o Professor Amândio Valente na Assembleia Municipal e Vitor Miranda na Junta de Freguesia de Sé e São Lourenço. O cabeça de lista à Câmara há quatro anos, Luís Pargana, é este ano o mandatário da campanha. É uma candidatura em alguns aspectos diferente e é uma candidatura virtualmente tão boa como a de há quatro anos. É evidente que há, para mim, algumas surpresas, e uma delas (uma excelente surpresa) é a da integração do meu querido amigo Henrique Raposo na lista para a Freguesia da Sé e São Lourenço. É a integração de um jovem idealista, dinâmico, altamente inteligente, um óptimo guitarrista e uma pessoa verdadeiramente esquerdista, e que cultiva o seu intelecto, o que, nos dias que correm, falta muito à Esquerda internacional e nacional. 

Quanto à pessoa do Hugo Capote - para além de ser uma verdadeira referência em Portalegre - agrada-me a sua candidatura porque se trata de um indivíduo com garra, com irreverência no discurso e nas atitudes (que, por vezes, caem mal em algumas pessoas), que conhece Portalegre de lés a lés, conhecido pelos seus habitantes, militante do Partido Comunista, e que traz para a campanha, com os seus camaradas de candidatura, soluções reais para enfrentar os problemas que flagelam o Município de Portalegre: habitação, saúde ecológica das ruas e dos espaços públicos, o património da Robinson, firmeza com o Governo nacional, et cetera. Devemos ter presente nas nossas consciências que Portalegre não luta pelo desenvolvimento, mas por mais do que isso. Luta pela sobrevivência. Portalegre luta contra o seu próprio ocaso. Está na altura de Portalegre colocar preconceitos ideológicos de parte. Está na altura - e já estava há quatro anos, e há oito, e por aí fora - de os eleitores e eleitoras de Portalegre largarem o seu preconceito contra o Partido Comunista e apostarem numa solução que, até hoje, ainda não teve a sua oportunidade no executivo camarário.


Acredito que a vitória da CDU é possível? Não, não tenho esperanças para isso, mas ainda assim vou votar na CDU para os três níveis do poder autárquico. Voto na CDU porque é aí que está a melhor solução, voto CDU porque tenho esperança que (quem sabe?) um segundo vereador pela CDU possa ser eleito para o executivo camarário, voto CDU porque esta é uma força política que pode fazer frente às falanges reaccionárias, e voto CDU porque está aí a massa de pessoas em quem eu mais confio para ajudar Portalegre. 

Terminando o meu manifesto, para os candidatos e candidatas pela CDU que lerem este texto (e se até aqui chegaram tiro-vos o chapéu), e demais membros dos dois partidos que compõem a coligação, deixo duas mensagens. A primeira é não cometerem o mesmo erro que foi cometido há quatro anos, e engendrarem um acordo camarário com a Presidente - ainda que esse erro tenha sido corrigido por Luís Pargana, foi cometido ainda assim. A Presidente Adelaide Teixeira, politicamente, não é uma pessoa de fiar e, como o Doutor Capote bem afirmou, é uma personalidade mitómana. A segunda mensagem é terem precaução com a selecção de elementos que fazem para compor as listas. É do meu entender que pessoas que já pularam por uma panóplia de movimentos e partidos também não são de fiar. Um dia estão num sítio, no outro dia já estão no total oposto. Quando se recruta alguém para uma lista CDU, creio eu, deve-se ter a certeza que essa pessoa acredita verdadeiramente em coisas como: a República, o Estado de Direito, o Estado de Providência, a basilar importância da iniciativa estatal na economia, a saúde pública, a educação pública, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e a defesa dos direitos da Classe Trabalhadora ante a ferocidade das corporações económicas. Tem de ser uma pessoa à Esquerda, portanto.


Eleitoralmente, o maior desafio que Portalegre tem para superar é a actual presidência da Câmara. É crucial fazê-lo, e virar o tabuleiro. Num sentido mais profundo, o maior desafio que Portalegre tem em mãos é combater o seu próprio ocaso e desviar os portalegrenses de projectos políticas que se revelem infernais. E o tempo começa a esgotar-se.

Se eu tivesse de escolher uma causa específica, relacionada com estas Autárquicas em Portalegre, eu diria que é o património da Fábrica da Robinson. Quem me dera que um centro cultural e turístico fosse erguido naquele sítio histórico, e tantas seriam as potencialidades. Outras propostas benignas e complementares também são bem-vindas. Tudo menos a exploração privada, obviamente: se fizessem isso era como se pregassem com uma das chaminés em cima de mim. Esperemos que não caiam... nem nada disto caia.

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Feliz Aniversário, Avô

Hoje o meu avô materno completaria 80 anos de vida. Nunca os chegou a completar por uma quantidade intensiva de razões, umas tão diferentes das demais, todavia, no fundo, todas elas um átomo da irremediável e natural verdade à qual todos os seres estão sujeitos: haverá remédio para tudo, excepto para a morte. Tampouco foi o Outono da vida dele - isto é, os seus últimos anos de vida - uma estação digna de quem ele foi durante toda a sua vida. Não foi luminosa, ou alegre, ou propiciante a que a minha pessoa, em contínuo crescimento, pudesse aproveitar a sua companhia e beber da sua sabedoria, pelo menos como fora outrora, quando ainda não havia eu atingido a adolescência plena.


A realidade da doença pode ter sempre contornos assustadores e penosos - e, ainda vivendo nós tempos temperados por questões clínicas, a questão da doença vem tão a propósito -, contudo, haverá, ao longo prazo, realidade clínica mais devastadora e agoniante para o nosso balanço emocional do que ver um ente querido sucumbir à demência? O desfalecimento lento das faculdades mentais, deixando para trás uma concha do que a pessoa fora outrora, é tremendamente doloroso porque, ante os nossos olhos, todos os dias, sempre que vemos essa pessoa, constatamos que mais alguma coisa se foi embora daquela personalidade... e perdeu-se. Passou um dia e mais uma memória ficou esquecida, mais um nome que já não consta da alembradura, mais uma cara que se esvaneceu, mais uma reflexão que ficou sepultada num palácio mental em degradação, mais uma palavra que desapareceu do dicionário de vocábulos, mais um acto básico do quotidiano que se desaprendeu. Tudo isto eu vi acontecer com o meu avô João, ao longo de seis anos... ou mais porque, certamente, o processo de deleção cerebral terá principiado antes de vivalma ter reparado. Um ano e cinco meses antes do seu previsível falecimento, já quando o meu avô João tinha dado entrada definitiva no Lar Casa do Cruzeiro, em Arez, eu publiquei um texto no Pensatório, Princípio e Fim da Vida, onde, pelas minhas lentes de então, é possível ter uma outra perspectiva sobre toda esta injustiça da vida que sucedeu com o meu avô. Já agora, sobre a doença Alzheimer e o definhamento mental em idosos, recomendo a visualização de um fantástico filme que saiu este ano: The Father - um autêntico serviço público em formato de arte cinemática, e infelizes aqueles que ousem tirar a legitimidade da galardoação do Oscar ao Anthony Hopkins... este texto não é sobre cinema, nem arte, todavia.


Gostaria de ter desfrutado de mais tempo com o meu avô. Gostava de o ter tido numa fase da minha maturidade mental e emocional, e da minha evolução intelectual, em que poderia ter falado com ele sobre uma quantidade infindável de coisas das quais nunca chegámos a falar. Outras tantas chegaram a ser conversadas por nós, mas sinto hoje que a minha maturidade não estava à altura de tocar nos núcleos essenciais daquilo que discutíamos. Mas conversámos muito. Durante as tardes, em casa, ora em Portalegre, ora em Alpalhão, até em Lisboa (embora em Lisboa já tenha sido há muito tempo), enquanto passeávamos e eu ia convertendo as minhas passadas preguiçosas na passada larga que lhe era característica. Tanto que gostava de o ter acompanhado na Feira do Livro, em Lisboa - e mesmo depois de ele se ter reformado, em 2005, depois de tantos anos como funcionário da Editorial Verbo, ele continuaria a fazer trabalho voluntário com a Verbo, sempre que vinha o mês da Feira do Livro, pelo menos por mais uns poucos anos.


Sendo nefasta a realidade de que, aquando do dia da sua morte, já quase nada restava na sua memória - e se coisas restavam ele já tinha perdido as faculdades para as transmitir -, há algo fundamental em que a demência não conseguiu tocar: a memória que temos dele e tudo quanto teve que ver com ele - o semblante sério, os risos leves, o discurso ponderado e articulado, os seus passeios, as suas reclamações dirigidas à televisão (sobretudo se o canal fosse de empresa privada), a sua inabalável defesa do Sporting Clube de Portugal, os papéis organizados, os despertares cedíssimos, o pão vindo da padaria logo de manhãzinha, as suas sardinhas assadas, os milhentos de sapatos recuperados e remendados, os livros. 


Lembrar-me-ei, espero, de muita coisa, até à minha última expiração, e nunca esquecerei o último passeio que dei com ele. Foi, estou a crer, pouco antes de começar o Verão de 2019 (quiçá ainda antes da Primavera, não tenho a certeza). Eu e a minha mãe fomos almoçar a Alpalhão, em casa do meu avô e da minha avó, e durante a tarde, depois de devorada a refeição, eu e o meu avô optámos por ir dar um passeio pela vila, como, aliás, sempre foi costume de família. Apesar dos seus 77 anos e da sua mente em visível definhamento, a sua passada continuava óptima. Não conversámos muito (atendendo àquilo que conversávamos antes da demência), mas conversámos, garanto eu, mais do que tinha sido costume ultimamente. Falámos de como a vila tinha sido e de como agora era. Falámos da, passo a sua expressão "porcaria da calçada" da rua que, entretanto, já foi transformada e melhorada pelo município, e trocámos umas impressões sobre uma pessoa que nos tinha cumprimentado que não é para aqui chamada (e da qual eu francamente conheço muito pouco). Claro que a dinâmica de diálogo já não era aquilo que foi, por exemplo, há nove ou dez anos, todavia, confesso que na altura tinha ficado optimista relativamente ao estado dele e que, talvez, a medicação e a tranquilidade ainda o iriam conservar. Mas eu estava enganado. Uns meses depois, ainda nesse ano, tantas foram as faculdades motoras, psíquicas e comunicativas que perdeu, que não houve outra solução senão um lar (onde, devo afirmar, em Arez, ele foi cuidado com a mais alta e profissional excelência). Foi súbito e nem deu tempo para me consciencializar que havia feito o meu último passeio acompanhado pelo meu avô João.


Por tanta coisa lhe fico grato. Em parte, a pessoa que sou hoje também foi moldada por ele. As minhas primeiras luzes sobre ler, sobre inspeccionar a geografia deste nosso Mundo, sobre jogar ao dominó, jogar às cartas, sobre olhar o meio que nos rodeia, foram luzes que também vieram dele. Também o meu tio-avô Paulino me formou, numa dimensão muito semelhante e numa época idêntica da minha vida, e ironicamente também o meu tio tem a sua mente embrulhada pelo Alzheimer, todavia, ao menos, ainda hoje está cá connosco, em pessoa.

A primeira biografia que alguma vez escreverei, será a dele. E macacos me mordam, hei-de a escrever.

A sua inteligência, o seu domínio da palavra e da organização mental das frases que proferia, o seu conhecimento do idioma - e foram umas quantas as palavras que aprendi com ele - e a sua ponderação sensata daquilo que dizia, falando eu de um homem que não teve mais do que a 4ª Classe, são coisas que me impressionam. Não fosse o meio pobre onde nasceu, no tempo histórico de um Portugal atrasado, e não fosse uma montanha de impossibilidades materiais com as quais teve de lidar na sua juventude, tivesse sido outra a circunstância onde nasceu, é minha profunda convicção que o meu avô teria ido muito longe nos patamares hierárquicos intelectuais da nossa sociedade.


Independentemente (tenho a convicção que a minha mania dos advérbios de modo vem dele) de tudo isso, o meu avô foi uma pessoa muito especial e da qual sinto falta.


Feliz aniversário, Avô