sábado, 29 de janeiro de 2022

A Questão do Estado: Manifesto à República

Poucos poderão acreditar no que lerão neste texto, e gostaria de principiar com a frase que para muitos poderá ser a mais incrédula de todas as que aqui estão escritas: Atravessando uma das épocas mais decisivas para a vida desta nação desde há muito tempo, a República Portuguesa corre perigo. Não é certo que o perigo se concretize em destruição activa, também não é certo que aqueles que mais a ameaçam por cá durem durante longos anos, mas é certo que o perigo existe. 


As Eleições  Legislativas 2022 é um dos mais importantes sufrágios na História de Portugal. O antes e depois destas eleições, no que concerne a vida política portuguesa - que por conseguinte tem determinante influência sobre todos os demais aspectos da nossa sociedade -, será muito diferente. Que não se julgue que a política não tem influência sobre as nossas vidas. Que não se julgue que as propostas e deliberações dos deputados da Assembleia da República nada importam para nós, cidadãos e cidadãs. Que não se julgue que as propostas legislativas e as execuções das políticas do Governo da República nada nos dizem. Que não se julgue que as reformas do aparelho judicial em nada de facto nos afectam. Por que razão hão-de os salários serem aquilo que são? Por que razão hão-de os impostos estarem determinados assim e não assado? Por que razão não há-de haver mais ou menos liberdades e por que razão hão-de as tradições terem precedência sobre aquilo que são os propósitos últimos da República? Por que razão não têm, a saúde, a instrução pública e a segurança social, prioridade de financiamento público relativamente àqueles sectores que são as aranhas manipuladoras na organização socioeconómica da nossa sociedade? E eles nem precisam de se sentarem todos à mesa para engendrar essa manipulação.  A própria estrada de interesse, planos e clientelas os leva a esse porto. Por que razão acham que tudo isto assim é e não de outra forma? Porque a política, enquanto entidade abstracta administradora do Estado, assim o definiu. E quem determina como é a política? O sufrágio de toda a cidadania portuguesa. Perante a Constituição, as regras da nossa sociedade, e o contracto social a que todos (ou quase todos) nos comprometemos, são os votos, traduzidos em mandatos - que, francamente, em nada são obscuros no que concerne às motivações políticas das respectivas candidaturas - que definem a política. A abstenção de todo este processo de vital importância é uma ingratidão e uma irresponsabilidade da maior ordem.


A questão maior que hoje nos é colocada é a Questão do Estado. Qual deve ser o papel do Estado na organização da sociedade e como deve o Estado agir na sua relação orgânica com as pessoas que o compõem - nós - e com o meio que nos circunda? No sufrágio do dia 30, os programas e propostas para abordar esta questão geral são de grande variedade, e que não se pense que votar num partido que propõe uma resposta totalmente diferente da de outro é no fundo a mesma coisa. Os políticos não são todos iguais porque os programas políticos a que estão afectos são distintos.


Poderão existir duas formas de abordar as diferentes forças políticas que avançam para eleições - e eu mencionarei todas - neste quadro de responder à Questão do Estado. A primeira forma é mais simples, e (consciente ou inconscientemente para os partidos) prende-se com a posição do Estado no processo histórico: 1) deve o Estado conservar o estádio onde presentemente estamos, 2) deve o Estado recuar no processo de evolução histórica e recuperar um outro tempo histórico que pertence ao passado, 3) ou deve o Estado abraçar o progresso. 1 é a posição por muitos considerada a mais sensata e por princípio é a posição moderada. 2 e 3 defendem a transformação, embora de diferentes formas - 2 quer recuar no tempo histórico e 3 quer avançar no tempo histórico. Chamo a atenção para o seguinte: quando abordo a Questão do Estado e quando falo da relação de Estado e Sociedade com o tempo histórico, não estou a falar de aumentar o imposto ali e diminuir acolá, se é que me faço entender. Aqui o que se discute é uma questão de fundo: deve a Sociedade conservar o status quo, deve a Sociedade evoluir em direção ao passado ou deve a Sociedade evoluir para o futuro? De acordo com a minha estimativa, eis como poderemos agrupar todas as forças políticas, dentro e fora do Parlamento, de acordo com a resposta à posição do Estado no processo histórico: 1 - Partido Socialista, Partido Social Democrata, CDS Partido Popular, PAN, Iniciativa Liberal, Aliança, RIR, Partido da Terra, Nós Cidadãos, Alternativa Democrática Nacional, Juntos Pelo Povo e Partido Trabalhista Português; 2 - Chega e Ergue-te; 3 - Bloco de Esquerda, Coligação Democrática Unitária PCP/PEV, LIVRE, Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses MRPP, Volt e Movimento Alternativa Socialista.


A segunda forma de agrupar estas forças políticas nas diferentes respostas para a Questão do Estado cinge-se a uma natureza ideológica mais concreta relativamente à posição destas forças políticas no âmbito económico e no âmbito sócio-cultural. O espectro económico vai desde um Capitalismo desregulado até a um Socialismo massivo e o espectro sócio-cultural vai desde o mais extremo Autoritarismo até à total abolição do Estado: Anarquia, isto é. No que concernem as designações Esquerda e Direita, será mais fácil aplicá-las, sobretudo, quando abordamos o âmbito económico - sendo que Esquerda significa intervenção do Estado e Direita significa ‘ausência’ do Estado -, todavia, por agora deixemos de lado estes conceitos - que eu de nenhuma forma considero desfasados da realidade política do Século XXI. Devo deixar aqui a ressalva de que nenhuma das forças políticas que avança para estas eleições se encontra em qualquer um dos extremos dos espectros ideológicos, quer seja no âmbito económico ou no âmbito social. Assim sendo, enuncio então os diferente grupos ideológicos possíveis para este sufrágio: 1) Estado muito distante dos assuntos económicos & Estado constrangedor de liberdades sociais e culturalmente católico; 2) Estado muito distante dos assuntos económicos & Estado socialmente libertário e culturalmente laico; 3) Estado meramente árbitro dos assuntos económicos & Estado conservador do estádio de liberdades sociais e culturalmente católico; 4) Estado impulsionador de uma Economia Mista de Mercado & Estado conservador do estádio de liberdades sociais e culturalmente ambíguo; 5) Estado impulsionador de uma Economia Mista de Mercado & Estado socialmente libertário e culturalmente laico; 6) Estado interventivo e redistribuidor numa Economia Mista de Mercado & Estado socialmente libertário e culturalmente laico; 7) Estado super-interventivo e redistribuidor da riqueza numa Economia ligeiramente planeada & Estado constrangedor de liberdades sociais e culturalmente laico; 8) Estado super-interventivo e redistribuidor da riqueza numa Economia ligeiramente planeada & Estado conservador do estádio de liberdades sociais e culturalmente laico; 9) Estado super-interventivo e redistribuidor da riqueza numa Economia ligeiramente planeada & Estado socialmente libertário e culturalmente laico. As forças políticas que participam no sufrágio, quanto a mim, encaixam da seguinte forma em cada um dos seguintes grupos ideológicos: 1 - Chega e Ergue-te; 2 - Iniciativa Liberal; 3 - Partido Popular CDS e Aliança; 4 - Partido Socialista, Partido Social Democrata, RIR, Partido da Terra, Nós Cidadãos, Alternativa Democrática Nacional, Juntos Pelo Povo; 5 - PAN; 6 - Partido Trabalhista Português e Volt; 7 - Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses MRPP; 8 - Coligação Democrática Unitária PCP/PEV; 9 - Bloco de Esquerda, LIVRE e Movimento Alternativa Socialista.


Uma terceira forma de agrupar estas forças políticas - na qual francamente não me irei alongar porque considero não haver diversidade ideológica suficiente que justifique tal seca - seria através do método do Estado para conservar ou transformar a Sociedade, dependendo da motivação de cada força política. Todavia, afirmo categoricamente que quase nenhuma destas forças políticas abraça uma praxis que não seja reformista (BE, CDU, LIVRE, IL, PAN, NC, JPP, PTP, Volt) ou conservadora (PS, PSD, CDS, Aliança, RIR), com excepção de quatro forças políticas: o Chega e o Ergue-te que são reaccionários, embora o Chega tenha uma vertente mais reformista e portanto mais moderada que o outro partido; o PCTP-MRPP (que parece ainda manter uma veia revolucionária, embora altamente desgastada) e o Movimento Alternativa Socialista que é activamente revolucionário. (Enfim, o MRPP sempre foi e sempre será uma incógnita caótica.)


Há uma ausência histórica no sufrágio do dia 30 que quase me enche de nostalgia. Com a ausência do Partido Popular Monárquico pela primeira vez, desde as eleições para a Assembleia Constituinte (1975) inclusive, não existe nenhuma força política partidária da causa monárquica e que, portanto, se proponha a alterar a própria forma de regime do Estado… mas não é por aí que os cidadãos e cidadãs monárquicos se irão desmobilizar ou o seu contrário. Em todo caso, a título de mera curiosidade, se o PPM concorresse neste sufrágio, eu classificaria-o: no número 2 da primeira resposta à Questão do Estado (reaccionário no tempo histórico), no número 3 da segunda resposta à Questão do Estado e como conservador na praxis política, ainda que haja argumentário sólido que justifique o PPM como um partido reformista. Saliento que, no presente contexto, quando uso termos como reformista ou conservador, estes aqui devem ser entendidos sobretudo segundo o contexto específico aqui discutido, não tendo que ter algo a ver com as identidades políticas do Reformismo ou do Conservadorismo - embora também possam ser traçadas ligações.


Uma justificação pormenorizada do porquê de eu agrupar assim cada uma das forças políticas candidatas nas Legislativas 2022 seria, certamente, algo esclarecedor e pertinente, todavia, seria também um empreendimento intensivo e muito extenso, de forma que não a farei. Deixarei somente, em linhas gerais, um conjunto de considerações que julgo poderem dar alguma luz à minha análise. As diferenças, hoje, entre o PS e o PSD são as mesmas que entre um funeral e um enterro, daí eles surgirem sempre lado-a-lado nos diferentes grupos que eu mencionei. Arrisco-me a dizer que até em matéria de política ambiental eles são idênticos. Entre o BE e a CDU, o elemento decisivo que diferencia estas forças políticas - para além dos modelos de organização interna e do estilo retórico - é o facto de a CDU ser mais conservadora que o BE em matérias sociais e culturais. Valerá também a pena mencionar que o Partido Comunista - o lado dominante da coligação - está mais dentro das instituições e das vicissitudes do sistema que o BE. O LIVRE, tendo nascido a partir de uma secessão no BE, é uma outra versão do Bloco um pouco mais moderada nas atitudes e mais colada à União Europeia e tudo o que tal implica. Com isto não digo que o LIVRE não tem originalidades no seu programa. No que concerne aos elementos diferenciadores entre o CDS e o Chega, e o porquê do Chega não estar muito afastado do projecto político do Ergue-te (só espero que isto das interjeições e das palavrinhas como nomes de partido não pegue moda), o CDS é diferente porque escolhe ser conservador e não abertamente reaccionário no tempo histórico ou na praxis e porque não tem uma política económica tão radicalmente neo-liberal. Atenção: há uma ala no CDS, a TEM, que, caso lhe fosse dado poder, tornaria o CDS num partido muito idêntico ao Chega; e devo também afirmar que, apesar de tudo, há elementos ideológicos claros que ligam o CDS ao Chega. Quanto à relação entre o Chega e o Ergue-te, esta diferencia-se no âmbito do extremismo e do fanatismo nos quais o partido que antes se chamava PNR supera o partido Chega. A Iniciativa Liberal não é o maior adversário da Esquerda e qualquer esquerdista que assumir isso cai no engodo mental que tantos outros movimentos socialistas e comunistas caíram na História, e que tanto custaram - Alemanha nos anos 30. O mesmo serve para os liberais genuínos que perdem tempo com diatribes contra o Marxismo em vez de se concentrarem em quem ameaça a liberdade. O JPP e o Nós Cidadãos partem do mesmo espírito republicano e cívico - aglomerar cidadãos e cidadãs isentos - pretendendo abrir as eleições legislativas a listas de cidadãos independentes - sem dúvida um reforço da República e da Democracia -, e é isso que, essencialmente, os diferencia do PS e do PSD. O PTP teria um potencial político notável não fosse a panóplia de incompetência política endémica neste partido - é mais uma das capelas por onde a diáspora de sociais democratas está dispersa. O Volt é um fenómeno político altamente interessante. Trata-se de um movimento político supranacional cujo objectivo-chave é tornar a União Europeia numa formação política única: aquilo que muitos designam a título hipotético como Estados Unidos da Europa. E é por isso que eu claramente defino o Volt como um partido progressista. (A ver se eu sou claro na minha análise: quando defino um partido como progressista e outro reaccionário, parto apenas da linguagem marxista que tem determinante peso no meu pensamento. No fim de contas tudo o que quero dizer é que um partido defende o progresso constante como fonte de evolução na História e outro defende que a Sociedade é melhorada se recuarmos a um certo passado histórico. Neste ensaio, para este contexto, é só isto que é tratado.) Independentemente da absoluta integração europeia ser boa, má, bonita, feia, realista, irrealista, surrealista, utópica, distópica, et cetera, seria sem dúvida um projecto político sem precedentes na História - a UE de certa forma já o é - e que portanto reinventaria a História da Europa. A acrescentar a isto o Volt é socialmente libertário e tem claras tendências sociais democratas. O PCTP/MRPP é uma dor de cabeça quanto à sua classificação, francamente. Se assumirmos que o MRPP é um partido que defende um modelo autoritário de Socialismo, isso torná-lo-ia um partido que defende um modelo de transformação revolucionária assente em bases ditatoriais, contudo, também não é certo que o MRPP seja de facto isso. Havia quem afirmasse, no tempo do PREC, que o MRPP era na verdade uma entidade agente a soldo dos norte-americanos para em Portugal desestabilizar os próprios fundamentos do PREC.


De todas estas forças políticas, nove elegeram deputados para a Assembleia da República em 2019. Há possibilidades de que todos estes nove partidos voltem à Assembleia da República. Também há a possibilidade do CDS desaparecer da vida parlamentar ou a possibilidade do LIVRE não eleger ninguém. Há expectativas de que a CDU diminua ainda mais o seu número de deputados e de que o BE não consiga crescer. O Chega, infelizmente, irá crescer, elegendo certamente à volta de 15 deputados - e é aqui que está o perigo maior de que falava no início. A Iniciativa Liberal também tem todas as condições para crescer e se consolidar como uma força política de peso. É certo que seja o PS ou o PSD a eleger maior número de deputados e que seja em torno de um destes partidos que se vai formar o XXII Governo Constitucional - ou até mesmo estes dois partidos em conjunto, o Bloco Central, portanto. Maiorias absolutas não haverá. Das forças políticas fora do Parlamento, também poderá haver novidades - o Volt ou movimentos cívicos como o JPP ou o Nós Cidadãos poderão fazer a sua estreia parlamentar. É com base neste balanço de forças que o futuro da República Portuguesa será determinado, e é a partir daqui que toda a sorte de precedentes poderão ser desencadeados para alterar a própria natureza do Estado.


Estimo que o sentido de voto do eleitorado português é melhor compreendido quanto melhor se compreender o que a massa de cidadania portuguesa pensa do Estado, como deve ser o Estado, onde deve o Estado participar e intervir, e compreender quantas pessoas entendem mesmo o que é o Estado e para que serve. Nos tempos do Antigo Regime, na Europa, ao estilo do Rei de França Louis XIV, os monarcas absolutos, detentores a título pessoal e despótico dos Três Poderes, podiam afirmar com propriedade: o Estado sou eu. Toda a integridade e existência do Estado dependia da continuação monárquica e da autoridade real. A Revolução Francesa alterou o curso da História, mexeu com o processo histórico no Tempo e no Espaço, e a sociedade voltou a caminhar na longa marcha do progresso. O Estado tinha deixado de ser uma pessoa e passou a ser composto por todas as pessoas. Esse é o propósito de uma república - o Estado, e o rumo que o Estado deve tomar, depende de todas as pessoas, segundo os princípios helenistas da Isegoria, Isonomia e Isocracia. O Estado somos todos nós e nenhuma sociedade existe fora do Estado. Todos nós - com o nosso trabalho, com a nossa voz, com as nossas atitudes, com os nossos votos, com a nossa criação artística, intelectual e literária livre, com o nosso ócio - somos e moldamos o Estado. Todo o processo de intervenção, gestão e administração na relação simbiótica entre Estado e Sociedade tem um nome: política, termo este que vai muito além das circunscrições dos poderes legislativo, executivo e judicial. As correntes ideológicas que hoje detêm poder em grande parte das nações, incluindo na Europa e em Portugal especificamente, defendem que a relação simbiótica entre Estado e Sociedade deve ser interpretada no sentido de abordar os dois termos como duas entidades, defendendo que há o Estado e há a Sociedade. Ora, se é o Estado - um contracto social entre todas as pessoas de modo a garantir a gestão da Sociedade e a efectiva continuação do primado da Lei e do funcionamento democrático das instituições - o alicerce que garante a ordenada e pacífica integridade da Sociedade, e se é verdade que o Estado é composto por todos e todas - a Sociedade, ou seja, com todas as suas individualidades e colectividades -, porque haveríamos de querer diferenciar aquilo que é o Estado e aquilo que é a Sociedade? Não podemos partir do princípio que não há uma Sociedade possível sem um Estado a garantir a sua integridade, e depois afirmar que Estado e Sociedade são coisas distintas. Só os anarquistas podem defender tal coisa. 


E por falar em Anarquia, a época que hoje vivemos na República Portuguesa realça sintomas de deterioração da relação entre as pessoas e a figura do Estado. É muito comum hoje encontrarmos pessoas que encontram no Estado fonte de todos os males e problemas: "o Estado gere mal"; "o Estado é muito grande"; "o Estado é sufocante"; "o Estado é um ladrão". Não desvalorizando os problemas estruturais que existem no Estado e na administração pública, os problemas que existem não têm que ver com a existência do Estado, nem com as suas responsabilidades socioeconómicas,  nem com o facto de ser menos ou mais Estado. Os problemas que existem derivam das pessoas que têm responsabilidade sobre a administração do Estado e derivam do tipo de política que é praticada. Ter um Estado mais rápido na condução dos seus processos e mais eficiente no desenrolar do aparelho público não implica que se tenha de diminuir o tamanho do Estado nem o peso do Estado na economia. A era da digitalização abriu um universo de possibilidades para tornar o acesso e gestão das estruturas do Estado mais eficiente que nunca, independentemente do tamanho do Estado.


Algumas das forças políticas que se apresentam a sufrágio querem emagrecer o Estado a favor dessa outra coisa a que chamam Sociedade. Essa é a solução deles para a Questão do Estado. A solução do Chega, então, é a mais irónica de todas: esvaziar por completo o Estado das suas responsabilidades socioeconómicas, defendendo que tal dará mais liberdade à pessoa comum, e por outro lado munir o Estado de uma autoridade moral para voltar a controlar a vida social portuguesa de uma forma altamente tóxica. A Iniciativa Liberal, ao menos, é coerente no seu liberalismo sem fronteiras. O Chega não quer menos Estado, mas sim mais Estado. Todavia, o Chega não quer mais Estado naquilo que importa - no aparelho de produção económica e nas relações de trabalho - mas sim naquilo onde pode ditar, ou seja, na liberdade cívica das pessoas.


A pandemia revelou-nos algo que já tinha sido revelado por outras situações de crise internacional na História Contemporânea: a mão invisível do Mercado escangalha-se em tempos de grande aperto. Qual foi a resposta dos Estados para responder à crise? Intervir. Aumentar a despesa pública. Qual é a resposta dos Estados em tempo de guerra? Intervir. Aumentar a despesa pública. Se optássemos por encarar a situação da Classe Trabalhadora como uma crise de sustentabilidade da vida das pessoas, colocaríamos o Estado a intervir e a abraçar responsabilidades nos sectores da Sociedade onde entendo eu o Estado deve deter Monopólio sem mínima hipótese de participação privada - ensino, saúde, transportes, energia, indústria de matérias primas e de produção de fármacos, banca, segurança social, construção civil. 


Dois argumentos podem ser usados contra isto: o argumento da liberdade de participação económica e o argumento do Estado despesista que conduz à obliteração da balança orçamental e por fim à falência. Relativamente ao primeiro argumento eu coloco uma questão: porque hão-de ser os tribunais e as forças armadas sectores absolutamente fora do alcance da iniciativa privada e outros sectores, de igual importância para o bem-estar da Sociedade e a continuação do Estado, não hão-de ser considerados da mesma forma? Porque se há-de fazer um negócio com o ensino, a saúde ou o dinheiro das pessoas (a banca privada nada mais é que isso) e não fazer um negócio com a Justiça e a Defesa? O mais atordoante é que há pessoas e forças políticas - fora da República Portuguesa - que também disso querem fazer um negócio: são os anarco-capitalistas. Quanto ao argumento do Estado despesista, à partida, não se pode dizer que seja um argumento falacioso, mas será que tal significaria também falência? Quando o Estado multiplica o seu tamanho e assume uma determinante intervenção na economia, isso significa que o Estado irá ter de multiplicar as suas despesas com salários, infraestruturas, e todo o tipo de gastos associados aos diferentes sectores em que é crucial que o Estado intervenha, o que poderá dar a sensação de que o défice orçamental será descomunal, todavia, um Estado que maximize a sua intervenção económica é também um Estado que irá exponencializar as suas receitas. Tomando a banca como exemplo: se em vez de uma multitude de bancos privados houvesse um único banco público, todos os cidadãos e cidadãs iriam depositar no banco do Estado os seus ganhos e as suas poupanças. Aquilo que é do domínio público pertence ao domínio público. Jamais esse banco iria cair porque tal implicaria a queda de todos. Administradores públicos não se dariam ao luxo de gerir mal e a pessoa comum não se daria ao luxo de deixar que más gestões sucedessem sem consequências.


Deixando de lado aquilo que devia ser - porque, convenhamos, uma transformação económica como esta teria de ir além da economia portuguesa: seria necessário um processo que abrangesse toda a Europa -, aquilo que hoje é a necessidade mais premente para estas eleições é salvar a integridade do Estado. Muito do discurso político nos dias que correm refere-se à Alt-Right, como o Chega, como um movimento fascizante. Não digo que não seja, todavia, um outro aspecto não tanto abordado relativamente a estas forças políticas é o que pretendem fazer ao Estado. E, neste domínio, não são só os partidos de uma Direita dura que planeiam uma ofensiva contra o Estado. A anarquização económica da Sociedade é uma ameaça igualmente preocupante. Para quem não quer que o Estado seja vítima desta ofensiva, para quem quer que o Estado mantenha em si o ideário repúblicano e democrático, e para quem não quer que o Estado se desfaça das responsabilidades socioeconómicas que ainda restam (e venha a recuperar outras), e para quem quer que o Estado continue a proteger a pessoa humana contra o ódio racial ou étnico, a discriminação de género e as purgas heteronormativas então que vote no progresso histórico, vote num Estado economicamente determinista e interventivo e culturalmente libertário e vote num Estado com claras ambições reformistas… ou até mesmo revolucionárias.


Este é o momento para dar uma nova vida ao Estado republicano. Este é o momento para bater o pé à Organização do Tratado Atlântico-Norte e ao Pentágono dos EUA - que não haja uma única vida portuguesa ao serviço do teatro que se está a desenrolar no Leste. O Biden e o Putin que se lixem com os seus esquemas e a NATO que vá morrer longe. A Europa tem de se erguer sobre esta sede de sangue. Este é o momento para impedir a escalada reaccionária na República Portuguesa. Estou com muitas esperanças? Muito poucas. O perigo já tem um pé cá dentro e a Europa já diz que sim à loucura. Não mandem os novos morrer na frente de batalha, mandem os velhos que dinamitaram a paz que tinha sido construída há quase 80 anos.


Olavo de Carvalho morreu há cinco dias. Celebremos o fim do seu ódio numa morte irónica. O ar já se sente mais límpido e menos pesado. Quem me dera que fosse um presságio… mas eu não creio nessas coisas.


Sábado, 9 de Pluvioso CCXXX