quinta-feira, 8 de maio de 2025

Sede Vacante

Jorge Bergoglio faleceu. Constatar isto não faz impressão apenas aos muitos milhões de católicos por todo o mundo, também impressiona muitos irreligiosos nos vários continentes da Terra que viam no líder máximo da Igreja Católica um símbolo de transformação e novidade e uma voz poderosa que lançou discussão sobre assuntos que até então nunca tinham sido abordados pelas altas hierarquias da Igreja. Atrevo-me a dizer, inclusive, que o falecimento de Bergoglio terá mexido mais com agnósticos e ateus do que muitos cristãos evangélicos que odiavam a mensagem transformadora e progressista deste último bispo de Roma. 

Jorge Bergoglio é o seu nome, nascido em Buenos Aires, Argentina, em 1936. Descendente de italianos que emigraram para esta apaixonada nação sul-americana, Bergoglio formou-se em química, desempenhou profissão como técnico químico num laboratório, quase que se casou, até que a vida religiosa da Igreja Católica o convocou a um serviço em que ele acreditou mais do que outra coisa. Foi ordenado sacerdote em 1969, com 33 anos, e ingressou na Sociedade de Jesus. A ética, humildade e inclinação para a instrução popular próprias da cultura jesuíta acompanharam-no durante toda a sua vida, mesmo após muitos jesuítas terem sido violentamente perseguidos pela ditadura militar que havia tomado controlo do país em 1976 (até 1983). Os jesuítas foram perseguidos não por serem tradicionalistas ou reaccionários, mas sim pelo oposto, por serem próximos da governação peronista e de estarem ligados ao movimento da teologia da libertação: uma corrente política determinante do socialismo cristão. Ainda hoje se debate o papel que Bergoglio teve nesta época. Há quem afirme que ele falhou em proteger muitos padres e há quem diga que, nos bastidores, junto das chefias militares, Bergoglio ainda conseguiu salvar vidas. Bergoglio sempre afirmou que nunca colaborou com a ditadura militar. Mas será que naquele tempo fez o suficiente? Será que um certo sentimento de culpa mais tarde o tenha inspirado a procurar ainda mais a liberdade, a tolerância e o progresso?


Jorge Bergoglio eventualmente foi nomeado arcebispo de Buenos Aires, nos anos 90, e em 2001 o Papa João Paulo II (1978-2005) elevou-o a cardeal. Durante estes anos Bergoglio manteve-se como uma figura destacada da sociedade argentina, tendo tido, inclusive, implicações políticas que com o avançar dos anos se tornaram cada vez mais progressistas e conotadas com a Esquerda. Como toda a gente sabe, em 2013, na sequência da histórica abdicação do Papa Bento XVI (2005-2013), Jorge Bergoglio é eleito pelo Colégio de Cardeais, reunidos na Capela Sistina do Vaticano, bispo de Roma e o sumo-pontífice da Igreja Católica. Desde esse dia até hoje que Jorge Bergoglio ficou conhecido por outro nome: Francisco, em homenagem a São Francisco de Assis. Papa Francisco será como este homem ficará inscrito na História. Um papa que se aproximou do lugar terreno e dos mais simples devotos desta igreja, um sumo-pontífice carismático que inspirou seguidores em todo o mundo, mesmo fora da fé católica e do Cristianismo, e um líder político (enquanto chefe de estado e governo da Cidade do Vaticano) que procurou reformar a sua igreja, reagir aos abusos sexuais de menores dentro da mesma e combater a corrupção financeira dentro do Vaticano.


Na República Portuguesa foram decretados três dias de luto nacional em consequência do falecimento do sumo pontífice da Igreja Católica. Esses três dias de luto nacional, por coincidência (ou não), apanharam o dia 25 de Abril, condicionando o normal desenvolvimento da efeméride. Por mais inspirador que o Papa Francisco tenha sido, independentemente do seu humanismo cristão e da sua defesa do diálogo com as demais religiões, e outros pontos de vista relativamente ao divino e o transcendente, não obstante o facto do Papa Francisco ter aberto novas discussões relativamente ao divórcio, à sexualidade, à identidade de género, às alterações climáticas e o ambientalismo (em consonância, francamente, com São Francisco de Assis), sem querer menosprezar o legado e a memória do Papa Francisco em todas as suas dimensões, foi errado da parte do Governo da República decretar luto nacional durante três dias e foi ainda mais errado o Presidente da República promulgar o decreto. De acordo com a alínea 4 do artigo 41º da Constituição da República, o Estado é uma coisa e as religiões são outras coisas totalmente diferentes. É dever do Estado, à luz do artigo 41º, tratar todas as confissões religiosas de forma igual e imparcial. Não existe em toda a lei constitucional referências a deus ou a algo divino ou transcendente. A República Portuguesa não reconhece ou nega a existência de divindades e assim sendo a República Portuguesa é um estado secular, sem religião, na qual a sociedade organiza-se e, em liberdade, organiza e promove as suas fés, as suas religiões e os seus cultos. Portanto, no livre funcionamento da sociedade portuguesa, perante a lei e o Estado, a fé católica não pode ser mais importante que outras confissões religiosas, sejam estas cristãs ou não, e tampouco a fé católica pode ser mais importante que o primado do estado laico.


Há um argumento que poderá ser usado contra o meu relativamente ao estado laico. Poderão argumentar - e, na linha do decreto, este é o argumento oficial - que o luto nacional não é decretado pelo Papa Francisco ter sido líder supremo da Igreja Católica, mas sim por ser um chefe de estado falecido e um líder muito amigo de Portugal e dos portugueses. Mas já faleceram tantos estadistas amigos de Portugal sem se terem seguido lutos nacionais. Mesmo que se queira argumentar que o luto nacional se deve ao facto de milhões de portugueses verem no sumo-pontífice um líder e guia espiritual, aí temos o Estado a adoptar uma posição parcial face à religião. Alguma vez alguém decretaria luto nacional pelo falecimento do Dalai Lama? No final de contas, à semelhança do Papa Francisco, o Dalai Lama é uma referência no pensamento e na espiritualidade de muitos milhões em todo o mundo, muito para lá dos budistas (e só budistas seguidores da corrente tibetana são largos milhões). Mas claro que não. Nunca haveria luto nacional porque o Dalai Lama é um líder budista e não cristão católico. O governo demissionário esteve errado no decreto do luto nacional porque coloca o Estado a promover uma religião específica em detrimento de todas as outras e em detrimento da secularização da sociedade. Mais ainda: o governo demissionário, parecendo algo propositado, enfia o luto nacional nas celebrações da Revolução de Abril e faz das celebrações oficiais uma patetice pegada com o plagiador pimba à mistura. Atropelou-se o 25 de Abril e atropelou-se o princípio do estado laico. Não foi a primeira vez e não será a última. Nada disto é contra Jorge Bergoglio. Atrevo-me a dizer, até, que ele não ficaria satisfeito com aquilo que este governo fez da sua morte.


Pode dizer-se que nada disto tem importância. Lutos nacionais? Estado laico? São símbolos e roupagens de decoração que não implicam nenhuma consequência. Mas isso também não é verdade, pois estas coisas também importam. Podem não significar tanto como a justa remuneração salarial ou a saúde pública, mas também têm a sua importância. Os símbolos, o tecido cultural, a forma como o Estado se comporta relativamente à diversidade social, são parte importante da personalidade, da imagem, do rosto de uma sociedade e do seu estado-nação. E por isso este governo, como tantos outros, falhou à República. Falhou de tantas outras formas, mas não vou falar das negociatas e maroscas familiares do primeiro-ministro porque já está tudo dito. Resta saber quantos portugueses não vêem problema nenhum no triste espectáculo. Em matéria de símbolos há uma coisa, todavia, em que este governo acertou: foi em abolir aquele logotipo horroroso imposto pelo anterior governo do PS e restaurar à República Portuguesa um logotipo dignificante e de qualidade estética.

Visto que já tiveram lugar as cerimónias fúnebres do Papa Francisco, a Igreja Católica passou pelo período denominado sede vacante. É o raro período em que ninguém tem idoneidade para se sentar no trono de São Pedro como Vigário de Cristo. As portas do Conclave fecharam-se e os cardeais da Igreja elegerem, de entre eles, um que assumisse um novo pontificado. São quatro os cardeais portugueses que participaram no Conclave. De António Marto tenho pouco a dizer. Foi até há poucos anos o bispo de Leiria-Fátima. Américo Aguiar meteu na cabeça que é humorista. Provavelmente alguém certa vez lhe disse que tinha graça. Manuel Clemente e Tolentino de Mendonça têm em comum terem sido vocais opositores de José Saramago e da sua obra. Do cardeal-patriarca de Lisboa afirmo mesmo que é uma figura cinzenta. Lá veio o fumo branco e anunciaram que um norte-americano passou a ser o Papa Leão XIV. Para estes lados não se vislumbra evolução.


Joves, 18 de Floreal CCXXXIII

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Legislativas 2025: notas sobre o que se aproxima

No momento em que começo a escrever este texto, termino a visualização do debate entre André Ventura e Mariana Mortágua para as eleições legislativas. Representam, de certa forma, a antítese e a tese, respectivamente, do meu pensamento político na actual vida política portuguesa. Dois debatentes experientes com estilos diferentes, dois comunicadores eficientes com mensagens muito distintas. Este debate (e qualquer outro debate promovido pelas televisões) está muito longe de ser óptimo. 15 minutos para cada debatente é muito pouco. A falta de uma moderação presente e informada também prejudica o desenvolvimento e aproveitamento intelectual do debate. A falta de imaginação para as perguntas principais colocadas aos intervenientes também auxilia a alienar o português comum da política. Muitas vezes torna o debate aborrecido e esvaziado de interesse.


Neste debate, André Ventura prosseguiu a estratégia do costume, a mesma estratégia que ele aprendeu com os seus amigos Rui Gomes da Silva e Pedro Guerra e que com tanta entrega desenvolveu naqueles debates horríveis sobre football na televisão do Correio da Manhã. Foi aqui que o André criou o Ventura. Foi aqui que o Cofina lhe deu palco e tempo para ele criar seguidores e admiradores e foi aqui que André Ventura desenvolveu a sua personalidade política incendiária, paranoica e histérica. Não creio que André Ventura acredite em muito do que diz. O conteúdo da sua tese de doutoramento - em matéria do código penal e em matéria da relação entre a polícia e as minorias - contradiz imenso o que está estipulado no programa político do partido de Ventura. Contradiz aquilo que Ventura pela sua própria voz defende. Porque afirmaria Ventura todas estas enormidades? Quais enormidades, muitos poderão inquirir: todas aquelas em que Ventura procura grupos sociais específicos e usa-os como bode expiatório para justificar os males da sociedade portuguesa. Defende o Chega que o problema são os dependentes de subsídios quando os subsídios existem para manter tantas famílias acima da linha de pobreza. Defende o Chega que o problema são os ciganos quando esta etnia representa uma ínfima fatia da população portuguesa. Defende o Chega que o problema está em exportarmos da China, da Índia, do Paquistão, do Bangladesh, quando estes países juntos, como explicou Mortágua no debate, não representam juntos 7% das importações portuguesas. 75% das importações portuguesas já são feitas dentro da União Europeia. Diz o Chega que temos de defender a soberania portuguesa, mas por outro lado afirma que é excelente Portugal arregimentar-se nas fileiras dos interesses norte-americanos e que também está óptimo o estado português não possuir a companhia de energia que abastece tantas casas portuguesas. Diz o Chega que quer resolver o triste problema da habitação em Portugal mas não apresenta nenhuma solução. Diz sim à carta branca para os grandes negócios continuarem a controlar a habitação desta nação e nem quer ouvir falar de uma proposta tão normal como aplicar tectos às rendas. Mas porque haveria de Ventura defender tanta coisa em que não acredita?


Ventura, como tantos outros, infelizmente, ao longo dos tempos, não está na política para fazer reformas na nossa sociedade nem para tornar a República Portuguesa mais livre e próspera. Ventura está na política porque quer servir os seus próprios interesses, quer poder, quer deter controlo sobre as pessoas, e para tal tem de também servir os interesses capitalistas daqueles que o têm ajudado a crescer, e também tem de servir os interesses dos Estados Unidos do outro lado do Atlântico que procuram a miséria da Europa. Ventura admira a agenda política de Donald Trump e do complexo militar-industrial que o sustenta politicamente. Nenhum internacionalista ou nacionalista na Europa que se preze e que seja íntegro nos seus príncipios pode admirar o movimento trumpista. Como pode Ventura afirmar-se como patriota quando defende a agenda de um governante que procura atingir seriamente os europeus? Ventura e o seu partido para além de estarem contra aquilo que nesta república se construiu nos últimos 51 anos também não estão a favor da soberania portuguesa ou da prosperidade e liberdade na Europa.


A tragédia que coroa todo este filme dos horrores é que um milhão de portugueses são capazes de assistir a um debate em que André Ventura participa e deixarem-se enganar pelos slogans e pelos sound bites. Um milhão de portugueses são capazes de se deixar inspirar pela postura jocosa, trocista e berrante de um homem que nada disto leva a sério. Todas as tácticas de desestabilização e provocação, no decorrer do debate, são uma evidência da má fé de Ventura e da estrutura psicológica de um homem inseguro de si e do seu programa político. Mais de metade do trabalho de Ventura enquanto comunicador é a ofensa, o grito, as comparações injustas e a enunciação de máximas enquanto esconde o conteúdo concreto que vem no programa, programa esse que só é lido pela elite do partido, e só a elite sabe para que direcção é que o barco ruma.


Mariana Mortágua demonstrou estar à altura de Ventura. Não cedeu às pressões e manteve-se sempre firme e psicologicamente estável face às provocações e interrupções constantes do seu adversário. Devo até dizer que Mortágua, neste debate, defrontou Ventura como poucos fizeram até agora. Recordo-me de já há algum tempo Miguel Sousa Tavares ter demonstrado tenacidade e destreza semelhantes face às provocações e à argumentação reaccionária do líder do Chega, num debate que teve lugar na TVI. Mortágua brilhou, inclusive, quando Ventura a provocou afirmando que ela - uma mulher com um doutoramento em economia pela Universidade de Londres - não percebe nada de economia, e Mortágua, em resposta, quase que lhe fez um desenho usando legos para explicar a Ventura a realidade das importações da República Portuguesa. Já no debate com o secretário-geral do Partido Comunista, Ventura usou a mesma provocação afirmando que Paulo Raimundo também não percebe nada de economia. Admiro a compostura de Mortágua e Raimundo face às provocações torpes e imundas de Ventura. Será pertinente assinalar que Ventura só se atreve a fazer estes números em televisão porque está num debate muito controlado a nível de rumo e de tempo. Igualmente pertinente será afirmar que o que Ventura procura em usar esta retórica em televisão nacional é descredibilizar os candidatos políticos da Esquerda ante o eleitorado e ligar o ideário socialista, no que concerne a economia, a ignorância e incompetência intelectual, fazendo do pensamento capitalista o único caminho viável e inteligente. É um caso clássico da falácia ad hominem (com mais outras falácias à mistura). É dever de qualquer moderador responsável desmascarar o debatente que usa este tipo de tácticas desonestas em debate. Também é dever do debatente opositor não deixar que indivíduos do calibre de André Ventura escapem com estas falácias. A oposição ao Chega precisa de reagir mais, estar mais alerta, ser mais enérgica e, sem fazer recurso a falácias, demonstrar um grau equivalente de frieza que Ventura demonstra nos debates em que participa. Ventura acusa os seus adversários de responsabilidade sobre todas as calamidades imagináveis. Naquilo em que o adversário de Ventura precisa de se concentrar é demonstrar às pessoas, com eficácia, que André Ventura é um aldrabão num partido de aldrabões.


Não é segredo nenhum que eu admiro a coordenadora nacional do Bloco de Esquerda e também não faço segredo de que será no Bloco de Esquerda onde eu depositarei o meu voto. Faço-o por pura convicção e puro alinhamento ideológico, pois sei que no distrito onde votarei o BE não tem a mínima hipótese de eleger um único deputado. Mas também devo dizer que a minha convicção se encontra algo abalada. Foi a controvérsia das grávidas e têm sido as dissidências sistemáticas para fora da organização que primeiramente me abalaram a convicção, mas não ficou por aqui. O regresso de Francisco Louçã, Luís Fazenda e Fernando Rosas à luta política nas fileiras do BE podem ser excitantes, podem trazer muita força e experiência à campanha e podem apelar à nostalgia daqueles, como eu, que cresceram ainda no tempo em que Louçã era o coordenador nacional, desempenhando suas funções com excelência. Mas tal não significará também que as novas gerações falharam em manter o BE, enquanto projecto político, íntegro aos seus princípios fundacionais? Tal não poderá sugerir também um certo grau de desespero por parte dos decisores do partido? Não me interpretem mal! Considero excelente Francisco Louçã ser cabeça de lista por Braga, Luís Fazenda por Aveiro e Fernando Rosas por Leiria. Tenho grande estima por estes três homens. São três dos quatro fundadores do BE (falta-nos Miguel Portas), foram eles que no passado permitiram que um projecto político nacional como o BE fosse possível. Mas não será este recurso às velhas guardas um sinal de desespero perante a hecatombe que talvez se aproxima? Uma pergunta em aberto.


Se por ventura um apoiante do Chega ler este texto e se indignar ante o meu discurso altamente antagónico relativamente ao Chega e o seu líder supremo, eu farei uso das próximas linhas para deixar claro, mais uma vez, porque é que eu não dou tréguas ao projecto político do Chega. Este partido usa como alvo grupos sociais com base em etnias para explicar os defeitos da nossa sociedade, quando estes representam uma pequena parte da nossa demografia. Este partido quer minguar o Estado ainda mais. Não quer nacionalizar os CTT, nem a EDP, nem a REN, e, provavelmente, procura ainda mais privatizações, embora ainda não falem nisso. Antevejo um partido como o Chega querer privatizar a Caixa Geral de Depósitos, a RTP ou a Museus e Monumentos de Portugal. Na senda da diminuição do Estado, este partido procura cortar nos apoios sociais e procura também encontrar novas alternativas que substituam o Serviço Nacional de Saúde e a Escola Pública. Este partido quer esvaziar o Estado das suas responsabilidades socioeconómicas e reforçar o pulso do poder político nas forças policiais. O Chega não procura melhores condições laborais para os polícias mas antes procura a sua vassalagem. Este é um partido que procura pulverizar (ainda que não falem muito disso, por enquanto) a lei de separação entre Estado e Igreja. Este é um partido que quer instituir - à semelhança da Iniciativa Liberal - apenas dois escalões de tributação do IRS, com as consequências que isso importe para o Estado de Providência. O Chega procura também anular milhares de casamentos na República Portuguesa, entre os quais o meu casamento com o meu marido Filipe. Porquê? Porque o Chega é contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Depois de enumerar tudo isto, o que é que os seguidores do Chega estão à espera? Ouvir palavras amigas? Simpatia? Tréguas? Não, senhor. O Chega procura a desgraça da Europa e vender-nos aos Estados Unidos de Trump. O Chega procura fazer de Portugal uma segunda Hungria na União Europeia. André Ventura é a pior coisa que aconteceu a Portugal desde que Aníbal Cavaco Silva foi indigitado primeiro-ministro em 1985.


Nestas eleições legislativas há duas coisas que importam: a queda do Chega e o crescimento da Esquerda no Parlamento. Só assim está assegurada a integridade do Estado. Caso contrário, o Estado será continuamente esvaziado e a liberdade e prosperidade da República Portuguesa estarão comprometidas.


3 de Floreal CCXXXIII


sábado, 18 de janeiro de 2025

O Perigoso Caso da Gronelândia

A Gronelândia é uma das nações mais fascinantes, interessantes e apelativas para o meu imaginário. Há qualquer coisa de acolhedor, misterioso e reconfortante num país com cerca de 56 mil habitantes e cuja maior parte do território se encontra congelado. Um terço da população vive na capital Nuque (Nuuk na grafia gronelandesa), que é uma das urbes com o clima ‘menos frio’ do país. As pescas, o mar e a extracção de recursos naturais são os principais motores da economia gronelandesa. Quase toda a população vive nas zonas costeiras devido ao clima inóspito e gelado no interior e no norte. Em Dezembro é quase sempre noite e em Junho é quase sempre dia. Afinal, a Gronelândia, terra situada já dentro do Círculo Polar Ártico, está a uma distância próxima do Pólo Norte (que se situa no Oceano Glacial Ártico, a norte do país). Não existe nação na generalidade mais fria que a Gronelândia. 

Na capital existe a Universidade da Gronelândia com dezenas de docentes e centenas de pessoal administrativo e alunos, oferecendo cursos de licenciatura, mestrado e doutoramento em variadas áreas, desde as humanidades, ao direito e à medicina. Dividida em cinco municípios (apesar de ser uma área territorial superior a dois milhões de quilómetros quadrados, são apenas cinco porque a densidade populacional é extremamente baixa), a Gronelândia tem o seu próprio governo, chefiado por um primeiro-ministro, tem o seu próprio parlamento (unicameral) e o seu próprio sistema judicial. Todavia, como nas últimas semanas tem vindo a ser do conhecimento do público, a Gronelândia não é um estado soberano e independente. 


Ainda que tenha condição de nacionalidade e país autónomo, a Gronelândia pertence ao Reino da Dinamarca. A Gronelândia não é a Dinamarca (país escandinavo com metade do tamanho de Portugal em área), os gronelandeses não são dinamarqueses, mas a Gronelândia é, efectivamente, um território autónomo do estado dinamarquês. A Dinamarca reconhece aos gronelandeses o estatuto de nacionalidade; reconhece o gronelandês como idioma oficial na ilha (a maior ilha do mundo, por acaso), a par com o dinamarquês; os cidadãos gronelandeses, para além de serem cidadãos dinamarqueses, são também cidadãos da União Europeia; os órgãos do poder político gronelandês têm um elevado grau de autonomia; os cidadãos gronelandeses têm o direito de eleger dois deputados para o Parlamento da Dinamarca; e todos os anos, no orçamento de estado do Reino da Dinamarca, estão previstas milhões de coroas (moeda da Dinamarca, Gronelândia e Ilhas Faroé) para sustentar e financiar a Gronelândia. Escusado será dizer que o Rei da Dinamarca é também soberano da Gronelândia. 


Portanto, a relação que existe entre a Dinamarca e a Gronelândia é semelhante à relação que Portugal Continental tem com os arquipélagos da Madeira e dos Açores, com a diferença dos gronelandeses serem uma nacionalidade à parte, com uma língua própria, e com um grau de autonomia um pouco mais elevado. O representante do Rei na Gronelândia é o Alto Comissário da mesma forma que a Madeira e os Açores também têm Representantes da República. Eis então um sintético perfil de uma das nações que mais me tem fascinado nos últimos quinze anos e que, para grande transtorno dos gronelandeses e meu, se encontra agora numa situação política surreal e medonha. 


A História da Gronelândia, sendo muito pouco conhecida dos portugueses e tendo um peso insignificante na historiografia portuguesa, é muito interessante e ligeiramente complexa. O povo inuíte da Gronelândia (muitas vezes referidos como esquimós) habita a ilha há milhares de anos, tendo para aí migrado, durante uma glaciação, pelo actual Canadá. De acordo com as sagas nórdicas, no final do século X, durante a Idade dos Víquingues, marinheiros e guerreiros - liderados por Erik, o Vermelho, expulsos do Reino da Noruega e exilados na Islândia - viajaram para noroeste em busca de uma terra gelada e encontraram a Gronelândia. A etimologia do nome do país também é interessante e tem origem nesta época: Groenland, que significa “terra verde”, parecido em inglês, Greenland. Os exploradores víquingues terão dado tão irónico nome a uma terra tão gelada porque terão visto tudo verde quando chegaram a uma costa no sul da ilha. No idioma gronelandês o nome do país é Kalaallit Nunaat, que significa “terra dos kalaallit", que é o povo inuíte que habita o ocidente da ilha. Foi já no primeiro quartel do século XI que Leif Erikson (filho de Erik, o Vermelho) viajou da Gronelândia pelas ilhas canadianas até ao espaço continental da América do Norte, tendo chegado à actual Newfoundland. Esta campanha de Leif Erikson trouxe, portanto, os primeiros europeus às Américas. Não foi Cristóvão Colombo em 1492, quase meio milénio depois. Nesta época os reinos nórdicos da Escandinávia (Dinamarca, Noruega e Suécia) ainda abraçavam a sua autóctone cultura víquingue, maior parte da população ainda venerava a religião nórdica e o processo de cristianização da Escandinávia ainda estava numa fase inicial.


Foi já durante o século XIII que o Reino da Noruega passou a deter oficialmente a Gronelândia no seu território, após a população se ter submetido à soberania do Rei Magnus VI em 1261. Foi o início do período da primeira colonização da ilha, tendo a monarquia norueguesa tomado proveito das raízes escandinavas que já tinham sido instaladas mais de 200 anos antes. Também na Gronelândia o processo de cristianização já tinha começado. Estudos arqueológicos apontam a construção das primeiras igrejas para a primeira metade do século XII. Em 1397 é formalizada a União de Kalmar que congrega a Noruega, a Suécia e a Dinamarca numa única monarquia (até 1527), a única época na História em que a Escandinávia esteve unificada. Pelo facto da ilha gronelandesa estar reclamada pela Noruega, assim como a Islândia, a Gronelândia passou a pertencer a esta união monárquica. Todavia, ao que a historiografia nos indica, no século XVI, todas as comunidades e localidades escandinavas na ilha - com origem nos tais víquingues noruegueses do século X - tinham desaparecido do mapa e mal deixaram rasto para os historiadores e os arqueólogos. Ainda hoje não há certezas sobre o porquê da extinção destas comunidades. Causas apontadas vão desde as dificuldades económicas e perda de contacto com os nórdicos europeus até aos conflitos com a população inuíte. Sabemos que a Gronelândia voltou a ser exclusivamente habitada pelo povo inuíte e que os noruegueses, assim como toda a Europa, se esqueceram daquela colónia perdida no Ártico.


Após a dissolução da União de Kalmar, devido à secessão da Suécia, a Noruega e a Dinamarca mantiveram-se juntas num reino unido no qual a Dinamarca conseguiu alcançar hegemonia. Eventualmente, o fenómeno de expansão marítima iniciado por Portugal e Espanha no século XV havia de despertar o interesse dos escandinavos e também estes haveriam de se investir pelo mar fora como tinham feito no seu passado histórico. Foi, então, durante os séculos XVII e XVIII, que os dinamarqueses decidiram iniciar a segunda colonização da Gronelândia e evangelização protestante dos povos autóctones. Com a celebração do Tratado de Kiel em 1814, derivado das Guerras Napoleónicas, assinado pelo Reino Unido e a Suécia, por um lado, e a Noruega e Dinamarca (aliadas do Império Francês), pelo outro, ficou estipulado que as autoridades dinamarquesas entregariam a Noruega ao Reino da Suécia, podendo manter, em contrapartida, as possessões coloniais do Ártico - Ilhas Faroé e Gronelândia, nomeadamente. E é assim que chegamos ao século XXI e esses mesmos territórios ainda hoje pertencem ao Reino da Dinamarca. Evidentemente, nos dias presentes, e desde o século passado, que as configurações dessas pertenças territoriais não são as mesmas que no século XIX. Já não se trata de uma relação entre colónia e metrópole. Como referi no início deste texto, a Gronelândia é hoje uma região autónoma, com as suas leis e o seu próprio governo, sendo reconhecida como uma nação. Desta relação entre território autónomo e a coroa surgiu um conflito há algumas décadas que tem vindo a ganhar força durante este século. Esse conflito ideológico e político, que existe entre os gronelandeses e os dinamarqueses, está associado ao lugar da Gronelândia no mundo. Deve a Gronelândia recuar nas concessões de autonomia legisladas em 1979 e 2009? Deve a Gronelândia manter-se unida à Dinamarca, mantendo o actual nível de autonomia? Deve a Gronelândia declarar independência e proclamar uma república? A grande discussão política, na Gronelândia e na Dinamarca, divide-se precisamente entre a autonomia e a independência. O próprio primeiro-ministro da Gronelândia, Múte Bourup Egede, assim como o seu partido, Inuit Ataqatigiit (força política da esquerda socialista), defendem a independência gronelandesa. Não obstante haver um conflito ideológico, a discussão prossegue em plena paz e serenidade. A Gronelândia não é uma ilha conhecida pelo crime, a violência e a desordem. O povo gronelandês vive, e quer continuar a viver, em paz total. Contudo, uma outra dimensão do problema haveria de a seu tempo ser criada, uma dimensão com a qual ninguém contava: não contavam os dinamarqueses, nem os gronelandeses, nem eu, nem a maior parte das pessoas. Um novo capítulo na História do Imperialismo Americano, desta vez protagonizado por Donald Trump.


Quando ainda decorria o primeiro mandato presidencial de Trump, já este mencionava em viva voz, com o apoio da sua administração e da restante máquina política, o seu interesse em comprar a Gronelândia à Dinamarca. Recordo-me de já nessa altura, antes da pandemia, ter ocorrido essa polémica ainda que os media portugueses não lhe tenham dado grande relevo ou cobertura. Agora que Trump foi reeleito (toma posse dentro de dois dias), o assunto voltou à ordem do dia, pela boca do próprio, mas desta vez com meandros mais sinistros. O assunto não se tornou mediático por haver um presidente dos EUA com intenções de comprar território a outro estado. A Administração Jefferson fez a Compra da Louisiana (1803) à República Francesa, duplicando a área do país (implicando o que hoje são vários estados), e em 1867, durante a Administração de Andrew Johnson, o Alaska foi comprado ao Império Russo, território que um século depois foi admitido como o 49º estado da união. O que torna agora a situação bizarra é a reacção de Trump à recusa da Dinamarca em vender a Gronelândia e o facto dos gronelandeses não quererem para eles tão dantesco destino. E a reacção de Trump, no plano da sua estratégia subsequente, não coloca de lado a possibilidade de que a ilha seja tomada à força. Ordenar uma invasão militar de um território que pertence a um estado-membro da União Europeia (cujos países são aliados próximos dos EUA) e um estado-membro da NATO, aliança militar que os próprios EUA fundaram. Quase que me atrevo a dizer que se alguém tivesse escrito isto numa obra de ficção, muita boa gente teria dito que isso não faria sentido e que isso nunca aconteceria. Por vezes a realidade é mais absurda que a ficção. E é essa dimensão do absurdo que tornou o caso mediático. Um presidente norte-americano mencionar a vontade de comprar para os EUA um grande pedaço de território, o estado a que pertence esse território - e que ainda por cima é um aliado muito próximo e fundamental - afirma taxativamente que o território não está à venda, e esse mesmo presidente responde que esse território é fundamental para a segurança dos EUA e que a hipótese de invasão não está excluída - defender isto, justificar isto ou dar desculpas para esta afronta, esta atitude agressiva e repugnante, é ser cúmplice de um imperialismo que procura a servidão de todos, incluindo os europeus. Quem se apresenta como advogado de Donald Trump, afirmando que ele só procura proteger o seu país, tem de defender também a invasão da Ucrânia, a violência israelita contra os palestinianos, a invasão da Polónia em 1939 e, já agora, terá de também defender Trump caso um dia ele afirme que os Açores, situados no meio do Oceano Atlântico, são uma peça chave fulcral para os interesses dos EUA. E a pior parte é que de facto são. Quem vive com a paranoia dos russos a leste esquece-se da outra ameaça a ocidente, no outro lado do mar.


Será também pertinente perguntar porque é que os dirigentes norte-americanos, e, mais especificamente, a nova administração presidencial que em breve tomará posse, entendem que a obtenção da Gronelândia é muito importante para a segurança norte-americana. Muitos poderão afirmar que a Gronelândia é uma ilha gelada demasiado grande e muito desabitada, não chegando a ter 100 mil habitantes. Todavia, sucede que a Gronelândia, dada a sua localização geográfica e devido ao seu manto de gelo (derivado da sua localização), representa um el dorado para os interesses económicos e militares dos EUA. No que concerne ao âmbito militar, a detenção da Gronelândia significa mais 2 milhões de quilómetros quadrados, dentro do Ártico, com mais espaço marítimo e mais próximo da Rússia e da China. Os EUA já têm algumas bases militares instaladas na Gronelândia. Evidentemente, Trump e toda a máquina que está por trás dele ambicionam muito mais do que meia dúzia de bases militares. Quanto ao âmbito económico, devido ao progressivo degelo do manto de gelo gronelandês - o segundo maior no planeta a seguir ao manto de gelo antártico -, a ilha está a revelar uma mina gigantesca de recursos naturais não explorados e que agora estão a tornar-se acessíveis para a sua prospecção. Alguns desses recursos naturais são o cobre, minérios de terras raras (cuja extracção, presentemente, é dominada pela China), gás natural e petróleo. Historicamente já sabemos que qualquer nação com elevadas reservas de petróleo está na mira dos EUA.


É de extrema importância que o governo dinamarquês não faça mais concessões aos EUA e que não ceda perante as pressões e ameaças veladas que de agora em diante serão dirigidas pela Administração Trump. É também de igual importância que o povo gronelandês não se deixe ludibriar por promessas de independência, progresso e mais liberdade por parte do complexo militar-industrial norte-americano. É muito importante que o governo gronelandês compreenda que apoiar os EUA na sua missão de convencer a Dinamarca a vender a ilha significa comprometer todos os cidadãos gronelandeses e o próprio equilíbrio ambiental da Gronelândia e dos seus ecossistemas. Todavia, no que toca ao actual governo gronelandês, não há motivos para preocupações, ainda que haja ambição de um dia separarem-se da Dinamarca. O governo gronelandês e o seu povo preferem cem vezes pertencer à Dinamarca e não alcançar soberania do que pertencer ao império norte-americano.


Se o pior acontecer e Trump ordenar a invasão da Gronelândia - invadindo território de um estado-membro da União Europeia e da NATO - é muito importante que as nações europeias estejam preparadas para tomar decisões muito difíceis e drásticas. Uma dessas decisões seria deixar de se considerar os EUA como país amigo dos europeus. Outra seria fechar todas as bases militares norte-americanas em território europeu e ordenar a expulsão dos respectivos militares. Outra decisão seria expulsar os EUA da NATO, mantendo no território europeu o armamento nuclear da NATO, e constituir-se uma liga militar europeia para assegurar a paz na Europa. Compreendo que quem estiver a ler se indigne perante o meu apelo a que uma futura liga militar europeia conserve o armamento nuclear da NATO que se encontra na Europa. Se dependesse de mim, todo o armamento nuclear seria destruído. Mas nós vivemos num mundo em que potências rivais têm essas armas e não demonstram ter qualquer vontade de as destruir. Se assim é, é sensato que as nações europeias unidas não abram mão desse elemento dissuasor de hipotéticas agressões à Europa. É um mal necessário, infelizmente. Seria também importante que o Reino Unido e a Suíça compreendessem que, ainda que não sejam estados-membro da União Europeia, os britânicos e os helvéticos são europeus, tal como os dinamarqueses e os portugueses, e que portanto fechar os olhos aos abusos imperialistas dos EUA significa trabalhar contra os seus próprios interesses. Todas estas decisões são radicais mas seriam as únicas decisões possíveis face a uma agressão norte-americana. O cidadão português que não compreende porque se haveriam de tomar todos estes passos só precisa de substituir Gronelândia por Açores. O ocidente europeu aparentemente vive com receio da ameaça russa, mas, concretizando-se, a ameaça norte-americana seria muito mais grave e medonha. Esta perigosa situação é uma evidência de que há várias décadas aquilo que os EUA mais procuram na Europa é o semear de sentimentos nacionalistas e a divisão. Dividir para reinar, como já afirmava Machiavelli. No dia em que o Reino Unido abandonou a União Europeia - mediante um processo democrático, sublinho - os altos dirigentes norte-americanos (de ambos os partidos dominantes) festejaram. Mais razões terão para festejar se tiver início o fim da integração europeia.


Claro que todas essas decisões difíceis que enumerei só seriam tomadas se os EUA ocupassem a Gronelândia. Ainda tenho esperança que no Pentágono haja comandantes que percebem os riscos de elevado isolamento que a invasão da Gronelândia significaria e que, a seu tempo, algo ou alguém demova Trump de continuar a falar das suas ambições gronelandesas.


Quem diria que a Gronelândia, a ilha que eu quero tanto visitar um dia, seria assunto na boca da opinião pública internacional. Uma grande ilha que tem permanecido ignorada pelas sociedades e que, até há pouco tempo, muita gente nem imaginaria que tivesse localidades e fosse habitada por dezenas de milhar de pessoas que também têm cidadania europeia. Mas agora que o principal porta-voz da oligarquia norte-americana vira as suas atenções para norte, também as atenções do mundo focam-se, apreensivas, no coração do Ártico. A terra dos ursos polares, das auroras boreais, da Lua do meio-dia e do Sol da meia-noite. Protejam a terra onde é sempre Inverno.


Sábado, 28 de Nivoso CCXXXIII