Jorge Bergoglio faleceu. Constatar isto não faz impressão apenas aos muitos milhões de católicos por todo o mundo, também impressiona muitos irreligiosos nos vários continentes da Terra que viam no líder máximo da Igreja Católica um símbolo de transformação e novidade e uma voz poderosa que lançou discussão sobre assuntos que até então nunca tinham sido abordados pelas altas hierarquias da Igreja. Atrevo-me a dizer, inclusive, que o falecimento de Bergoglio terá mexido mais com agnósticos e ateus do que muitos cristãos evangélicos que odiavam a mensagem transformadora e progressista deste último bispo de Roma.
Jorge Bergoglio é o seu nome, nascido em Buenos Aires, Argentina, em 1936. Descendente de italianos que emigraram para esta apaixonada nação sul-americana, Bergoglio formou-se em química, desempenhou profissão como técnico químico num laboratório, quase que se casou, até que a vida religiosa da Igreja Católica o convocou a um serviço em que ele acreditou mais do que outra coisa. Foi ordenado sacerdote em 1969, com 33 anos, e ingressou na Sociedade de Jesus. A ética, humildade e inclinação para a instrução popular próprias da cultura jesuíta acompanharam-no durante toda a sua vida, mesmo após muitos jesuítas terem sido violentamente perseguidos pela ditadura militar que havia tomado controlo do país em 1976 (até 1983). Os jesuítas foram perseguidos não por serem tradicionalistas ou reaccionários, mas sim pelo oposto, por serem próximos da governação peronista e de estarem ligados ao movimento da teologia da libertação: uma corrente política determinante do socialismo cristão. Ainda hoje se debate o papel que Bergoglio teve nesta época. Há quem afirme que ele falhou em proteger muitos padres e há quem diga que, nos bastidores, junto das chefias militares, Bergoglio ainda conseguiu salvar vidas. Bergoglio sempre afirmou que nunca colaborou com a ditadura militar. Mas será que naquele tempo fez o suficiente? Será que um certo sentimento de culpa mais tarde o tenha inspirado a procurar ainda mais a liberdade, a tolerância e o progresso?
Jorge Bergoglio eventualmente foi nomeado arcebispo de Buenos Aires, nos anos 90, e em 2001 o Papa João Paulo II (1978-2005) elevou-o a cardeal. Durante estes anos Bergoglio manteve-se como uma figura destacada da sociedade argentina, tendo tido, inclusive, implicações políticas que com o avançar dos anos se tornaram cada vez mais progressistas e conotadas com a Esquerda. Como toda a gente sabe, em 2013, na sequência da histórica abdicação do Papa Bento XVI (2005-2013), Jorge Bergoglio é eleito pelo Colégio de Cardeais, reunidos na Capela Sistina do Vaticano, bispo de Roma e o sumo-pontífice da Igreja Católica. Desde esse dia até hoje que Jorge Bergoglio ficou conhecido por outro nome: Francisco, em homenagem a São Francisco de Assis. Papa Francisco será como este homem ficará inscrito na História. Um papa que se aproximou do lugar terreno e dos mais simples devotos desta igreja, um sumo-pontífice carismático que inspirou seguidores em todo o mundo, mesmo fora da fé católica e do Cristianismo, e um líder político (enquanto chefe de estado e governo da Cidade do Vaticano) que procurou reformar a sua igreja, reagir aos abusos sexuais de menores dentro da mesma e combater a corrupção financeira dentro do Vaticano.
Na República Portuguesa foram decretados três dias de luto nacional em consequência do falecimento do sumo pontífice da Igreja Católica. Esses três dias de luto nacional, por coincidência (ou não), apanharam o dia 25 de Abril, condicionando o normal desenvolvimento da efeméride. Por mais inspirador que o Papa Francisco tenha sido, independentemente do seu humanismo cristão e da sua defesa do diálogo com as demais religiões, e outros pontos de vista relativamente ao divino e o transcendente, não obstante o facto do Papa Francisco ter aberto novas discussões relativamente ao divórcio, à sexualidade, à identidade de género, às alterações climáticas e o ambientalismo (em consonância, francamente, com São Francisco de Assis), sem querer menosprezar o legado e a memória do Papa Francisco em todas as suas dimensões, foi errado da parte do Governo da República decretar luto nacional durante três dias e foi ainda mais errado o Presidente da República promulgar o decreto. De acordo com a alínea 4 do artigo 41º da Constituição da República, o Estado é uma coisa e as religiões são outras coisas totalmente diferentes. É dever do Estado, à luz do artigo 41º, tratar todas as confissões religiosas de forma igual e imparcial. Não existe em toda a lei constitucional referências a deus ou a algo divino ou transcendente. A República Portuguesa não reconhece ou nega a existência de divindades e assim sendo a República Portuguesa é um estado secular, sem religião, na qual a sociedade organiza-se e, em liberdade, organiza e promove as suas fés, as suas religiões e os seus cultos. Portanto, no livre funcionamento da sociedade portuguesa, perante a lei e o Estado, a fé católica não pode ser mais importante que outras confissões religiosas, sejam estas cristãs ou não, e tampouco a fé católica pode ser mais importante que o primado do estado laico.
Há um argumento que poderá ser usado contra o meu relativamente ao estado laico. Poderão argumentar - e, na linha do decreto, este é o argumento oficial - que o luto nacional não é decretado pelo Papa Francisco ter sido líder supremo da Igreja Católica, mas sim por ser um chefe de estado falecido e um líder muito amigo de Portugal e dos portugueses. Mas já faleceram tantos estadistas amigos de Portugal sem se terem seguido lutos nacionais. Mesmo que se queira argumentar que o luto nacional se deve ao facto de milhões de portugueses verem no sumo-pontífice um líder e guia espiritual, aí temos o Estado a adoptar uma posição parcial face à religião. Alguma vez alguém decretaria luto nacional pelo falecimento do Dalai Lama? No final de contas, à semelhança do Papa Francisco, o Dalai Lama é uma referência no pensamento e na espiritualidade de muitos milhões em todo o mundo, muito para lá dos budistas (e só budistas seguidores da corrente tibetana são largos milhões). Mas claro que não. Nunca haveria luto nacional porque o Dalai Lama é um líder budista e não cristão católico. O governo demissionário esteve errado no decreto do luto nacional porque coloca o Estado a promover uma religião específica em detrimento de todas as outras e em detrimento da secularização da sociedade. Mais ainda: o governo demissionário, parecendo algo propositado, enfia o luto nacional nas celebrações da Revolução de Abril e faz das celebrações oficiais uma patetice pegada com o plagiador pimba à mistura. Atropelou-se o 25 de Abril e atropelou-se o princípio do estado laico. Não foi a primeira vez e não será a última. Nada disto é contra Jorge Bergoglio. Atrevo-me a dizer, até, que ele não ficaria satisfeito com aquilo que este governo fez da sua morte.
Pode dizer-se que nada disto tem importância. Lutos nacionais? Estado laico? São símbolos e roupagens de decoração que não implicam nenhuma consequência. Mas isso também não é verdade, pois estas coisas também importam. Podem não significar tanto como a justa remuneração salarial ou a saúde pública, mas também têm a sua importância. Os símbolos, o tecido cultural, a forma como o Estado se comporta relativamente à diversidade social, são parte importante da personalidade, da imagem, do rosto de uma sociedade e do seu estado-nação. E por isso este governo, como tantos outros, falhou à República. Falhou de tantas outras formas, mas não vou falar das negociatas e maroscas familiares do primeiro-ministro porque já está tudo dito. Resta saber quantos portugueses não vêem problema nenhum no triste espectáculo. Em matéria de símbolos há uma coisa, todavia, em que este governo acertou: foi em abolir aquele logotipo horroroso imposto pelo anterior governo do PS e restaurar à República Portuguesa um logotipo dignificante e de qualidade estética.
Visto que já tiveram lugar as cerimónias fúnebres do Papa Francisco, a Igreja Católica passou pelo período denominado sede vacante. É o raro período em que ninguém tem idoneidade para se sentar no trono de São Pedro como Vigário de Cristo. As portas do Conclave fecharam-se e os cardeais da Igreja elegerem, de entre eles, um que assumisse um novo pontificado. São quatro os cardeais portugueses que participaram no Conclave. De António Marto tenho pouco a dizer. Foi até há poucos anos o bispo de Leiria-Fátima. Américo Aguiar meteu na cabeça que é humorista. Provavelmente alguém certa vez lhe disse que tinha graça. Manuel Clemente e Tolentino de Mendonça têm em comum terem sido vocais opositores de José Saramago e da sua obra. Do cardeal-patriarca de Lisboa afirmo mesmo que é uma figura cinzenta. Lá veio o fumo branco e anunciaram que um norte-americano passou a ser o Papa Leão XIV. Para estes lados não se vislumbra evolução.
Joves, 18 de Floreal CCXXXIII